A luz do camponês é de lamparina

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De pé em frente ao quadro negro com um giz na mão está Ranulfo Peloso. Aos 68 anos, pele avermelhada, roupas simples e com sandálias de couro, hábito que herdou do tempo em que andava com os noviços franciscanos de Recife, escreve uma sopa de letras: Meb, Ceb, Jac, Jec, Jic, Joc, Juc, STR, OFM. Para ele, essas letras são as marcas do mapa de sua vida.

Filho de seringueiro nasceu em Santarém, no Pará. Estava na escola primária quando seu pai foi para Belterra, na Amazônia, trabalhar para as Indústrias Ford. Parte da família não pôde acompanhar o pai devido à falta de escola em seu novo destino.

Aos dezoito anos, estava no Tiro de Guerra de Santarém e foi atingido por uma notícia: o exército se levantaria contra a desordem que estava por vir. Era dia 02 de abril de 1964. Ele e os demais 189 soldados que estavam no quartel foram para o estande de tiros. Treinaram com 10 fuzis descalibrados. Era o que se tinha disponível.

Depois de cumprir o período obrigatório militar, foi dispensado. Ingressou com afinco nos estudos, logo partiria para Sirinhaém, em Pernambuco, estudar Teologia no Convento Franciscano.

Iniciou seus estudos teológicos em 1965. O local era bem próximo da Usina Trapiche. Foi lá que um de seus orientadores, o franciscano José Caio Feitosa o chamou para um passeio.

Caminharam alguns metros em direção a uma nuvem negra formada por urubus, quando o frade apontou em direção a um monte de ossos, Ranulfo percebeu que se tratava de cadáveres humanos. José Caio explicou que aqueles eram os restos de camponeses que teriam feito oposição ao Golpe Militar.

Ele foi tomado por um sentimento que o mudou. Não apoiaria mais os militares. Dali em diante, como diria anos depois, não rezaria mais para o santo errado.

Os franciscanos mantinham um espaço destinado a estudos religiosos na PUC (Pontifícia Universidade Católica) de Recife. Da proximidade com o Grêmio acabou se tornando líder do diretório estudantil da UNE (União Nacional dos Estudantes). O seu grupo se intitulava JUC (Juventude Universitária Católica). A igreja renegou o grupo, pois enquanto o clero apoiava o Golpe, eles se mantinham contra.

Talvez tenha sido por isso que logo no inicio da década de 1970 foi convidado por Dom Helder Câmara para participar da Operação Esperança, que consistia fazer a reforma agrária no Engenho Taquari, em Pernambuco. Foi nesse projeto que conheceu Antonio Vieira, de quem se tornou grande amigo.

Era Antonio que encabeçava a operação de Dom Helder, mas faltava uma orientação religiosa, Ranulfo congregava a religião com ação política. Seria sua responsabilidade educar na base, para que os camponeses entendessem o que estava acontecendo, o que era cidadania e Direitos Humanos.

Por algum motivo, que mesmo Ranulfo não sabe, os militares prenderam diversos amigos seus que participavam dos mesmos projetos que ele e levaram todos para o Dói-Codi de Recife, ele nem ao menos foi ameaçado.

Lá, durante cinco meses, seus amigos foram torturados. Ranulfo tentava visita-los e sempre levava a bíblia. Quando conseguia permissão para falar com eles lia trechos que significavam recados de Dom Helder, de advogados e familiares.

Depois que Antonio Vieira foi solto, resolve que já é hora de voltar para Santarém. Era 04 de março de 1974 e a realização de uma promessa se cumpria, pois sempre dizia a quem quisesse ouvir que quando se formasse voltaria para seu lar.

Encontrou trabalho no STR (Sindicato dos Trabalhadores Rurais) como secretário. Com os ideais adquiridos em Pernambuco não tardou querer colocar em prática os mecanismos que possibilitassem conscientizar os afiliados. Mas no sindicato a presença de um interventor adiaria seus planos.

Junto com o pelego havia uma maioria que temia uma possível repressão do Governo e por isso não iria aceitar mudanças na gestão. A estratégia agora era tomar o sindicato de volta, mas como?

Organizou uma oposição, seria a Chapa 2. Em sua primeira eleição, perderam por uma diferença estrondosa. Não conseguiram nem 10% dos votos.

Mas a palavra de ordem era não desistir, no ano seguinte outra derrota, desta vez receberam 40% dos votos. Isso animou a oposição, que mesmo com as seguidas derrotas, continuava realizado o trabalho de base, indo até as fazendas e semeando as informações e leis sobre direitos trabalhistas e política.

Na terceira tentativa ganharam o sindicato. Desta vez com 80% dos votos a favor. As primeiras medidas foram: dar continuidade aos trabalhos que já vinha realizando e desenvolver uma cartilha que explicava com detalhes como funcionava cada peça desta grande engrenagem ruralista.

Idealizou uma publicação quinzenal que batizou de Lamparina. Que era um jornal popular de 10 páginas, com fotos, ilustrações e artigos direcionados a informar o camponês sobre qualquer assunto do campo, principalmente os crimes contra os direitos que eles tinham. Além de usar como instrumento de denuncia e registro histórico da região.

Como essa manobra foi pacifica e com o sucesso obtido no sindicato de Santarém, recebeu convite para visitar outros sindicatos e desbancar outros interventores, isso lhe rendeu a fama de especialista em derrubar pelego.

Continuou com seu trabalho de base e expandiu para outros setores e organizações. Escreveu e organizou livros sobre o assunto que hoje são referencia para qualquer educador popular.

Hoje mora em São José dos Campos, São Paulo, mas sua rotina ainda é visitar os locais afastados dos centros urbanos para ensinar educação de base para os trabalhadores rurais, afinal Ranulfo Peloso é um educador popular.

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Crédito da imagem: Montagem do autor

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