Cemitério São João Batista e suas histórias fantásticas

publicado na Ed_07_abr/jun.2018 por , e

O Rio de Janeiro com certeza é um lugar especial, mas não apenas do ponto de vista turístico com o qual estamos tão acostumados. É obvio que o Pão de Açúcar, as praias e o Cristo Redentor são lindos, mas os turistas deveriam incluir em seu roteiro uma visita ao cemitério São João Batista.

O último dia do XII Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais nos prometia uma visita guiada pelo São João Batista. Saímos de nosso hostel e seguimos em direção a UNIRIO, onde pegaríamos o ônibus que nos levaria ao cemitério. O trajeto entre a faculdade e o cemitério é relativamente rápido, cerca de 15 minutos, mas estar dentro de um ônibus com outros estudiosos da área já nos fez sentir um pouco mais imersas no tema.

A fachada do cemitério é bem imponente e cheia de detalhes, bem típica das construções do século passado. O tamanho do cemitério também impressiona: à primeira vista, não consegui ver o final do muro que o rodeava.

O São João Batista é o segundo cemitério público do Rio de Janeiro, inaugurado em 1852 pelo imperador Dom Pedro II numa tentativa de melhorar as condições de salubridade — até então, o costume era enterrar as pessoas dentro das igrejas, o que gerava um grande transtorno, devido ao espaço e as condições sanitárias em que eram expostos.

Com 163 anos de história, o cemitério se tornou um dos principais pontos de observação dos pesquisadores dos Estudos Cemiteriais. Ele possui mais de 183 metros quadrados e, com esse tamanho, é até possível colocar o estádio do Maracanã dentro dele.

Assim que entramos, fomos apresentados à Pedro, nosso guia durante o passeio. Muito interessante observar a relação de cada pessoa com o cemitério: uns tiravam fotos sem parar, enquanto outros apenas observavam meio perplexos a imensidão e a beleza do lugar.

Nos primeiros minutos de visita, tivemos a clara impressão de porque o São João Batista é chamado de “cemitério das estrelas’: em poucos minutos, passamos pelos jazigos de políticos desde a época do Império até a Ditadura.

Ao todo, estão enterrados no cemitério nove ex-presidentes brasileiros, entre eles Emílio Garrastazu Médici, Marechal Floriano Peixoto, Marechal Eurico Gaspar Dutra e General Ernesto Geisel.

Também passamos por outros grandes nomes da história brasileira, alguns de enorme destaque, como o compositor Ary Barroso, o pintor Candido Portinari e o inventor do avião, Santos Dumont.

A cada sepultura que observávamos, eu lembrava das aulas de História que tive na escola e o sentimento de conhecer aquelas pessoas que estavam enterradas seguia comigo.

Fomos até a sepultura da cantora Clara Nunes, morta em 1983, a mais visitada do cemitério. Diferente da maioria das outras sepulturas, a da cantora é de mármore branco, bem simples, sem nenhuma estátua, apenas uma pequena foto para identifica-la, uma cruz e os dizeres: “… Ela se foi pra cantar para além do luar, onde moram as estrelas… adeus, meu sabiá, até um dia…”. A sepultura ainda estava repleta de flores e placas de agradecimento por graças alcançadas.

O mesmo acontece com as sepulturas de Cazuza e da pequena notável, Carmen Miranda, separadas por poucos metros. Segundo Pedro, é muito comum encontrar grupos em volta dos jazigos fazendo homenagens e cantando as músicas dos cantores enterrados.

A lembrança das pessoas que fizeram parte da história do Brasil permanece viva nesse lugar, e é bonito perceber que mesmo a morte, que é algo tão definitivo, não impede as pessoas de expressarem os seus amores.

Continuamos andando pelos outros mausoléus do cemitério e entre uma foto e outra, percebi que ao fundo havia uma escadaria enorme, e que não era intenção do nosso guia nos levar até lá.

Decidimos então nos afastar do nosso grupo e seguir em direção a tal escadaria. Não poderíamos ter feito escolha melhor.

A escada nos levou até uma espécie de mirante de onde pudemos ver todo o cemitério, uma vista realmente muito bonita. Pudemos entender realmente o conceito do que é a arte tumular. Ficamos paradas por uns bons minutos naquele mirante, quando fomos surpreendidas por um senhor vestido de azul nos falando que não poderíamos estar lá.

— Essa parte aqui não faz mais parte do cemitério não meninas, é particular!

— Ah, não sabíamos. O que é aqui?

— Aqui é a parte do mausoléu da Academia Brasileira de Letras, não faz parte do cemitério, não.

Admito que não sabia que dentro do São João Batista existia essa parte da Academia Brasileira de Letras e acho que nossa cara de surpresa fez com que ele continuasse.

— Trabalho aqui há mais de 30 anos, sou eu que cuido de tudo esse povinho aí, não me ajuda em nada, não.

Percebemos que estávamos diante de uma figura e tanto.

— Qual é o nome do senhor?

Francisco — disse enquanto acendia um cigarro.

E como se nos conhecêssemos há anos, começamos a conversar com Francisco. Ele nos confidenciou que acha seu trabalho bem simples, basicamente varrer entre os jazigos e atender as famílias que veem visitar os imortais da ABL. São poucas as vezes que os grandes nomes da literatura são visitados

— Só quando alguém morre mesmo, que vem gente, e nos finados também, aí isso aqui lota.

Segundo Francisco, o mausoléu só é aberto para visitação no dia 2 de novembro, feriado de Finados, então são poucos aqueles que têm a chance de visitar esse lugar tão exclusivo dentro do São João Batista.

Estávamos praticamente nos despedindo de Francisco quando, mais uma vez, ele nos surpreende.

— Vocês não querem descer e ir lá não? Eu mostro tudinho.

Descemos e seguimos em direção à entrada do mausoléu, que até então tinha passado totalmente despercebida aos nossos olhos. A fachada é de granito com minúsculas entradas de ar espalhadas por toda sua extensão; na frente, uma porta de ferro com uma placa escrita em letras maiúsculas MAUSOLÉU DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS.

Francisco abre a porta, pega uma pequena vassoura e nos dá passagem, deixando claro que somos suas convidadas. Assim que entramos, damos de cara com o jazigo do escritor e fundador da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis. O tumulo é totalmente feito de granito preto com apenas os nomes de Machado e de sua esposa, Carolina, em dourado; ao fundo, ainda há uma lápide com um poema escrito pelo próprio Machado em homenagem a sua amada, após seu falecimento.

À direita há a entrada para uma espécie de capela, onde acontecem os velórios. Nela estão dispostas apenas bancos de madeiras e na parede o brasão da academia, nada que remeta a algo religioso. Na capela ainda há outra porta que nos leva em direção às criptas dos imortais.

Todo o mausoléu é feito de mármore com uma cor areia. Esperávamos mais glamour dado ao status do lugar, mas a simplicidade surpreendeu de forma positiva. As criptas dos imortais são exatamente iguais, feitas de mármore, assim como as paredes e o chão, com apenas com o nome de identificação. Ao entrarmos, Francisco apontou nomes conhecidos.

— Aqui tá o Guimarães Rosa — disse enquanto passava a vassourinha para tirar as teias de aranha.

Andávamos olhando os detalhes daquele lugar, seu Francisco continuava a falar, animado:

— Alí ó, Manuel Bandeira, grande poeta — apontando para as gavetas que estavam no fundo do mausoléu.

— Esses aqui, continuou… estão aqui no fundo por que já foram exumados ai dão vaga pros outros que vão chegando, sabe?

Ele deixava claro o quanto gostava de estar lá, e mais, que ele considera aquelas pessoas que estão enterrados seus amigos.

Passamos pela cripta de João Ubaldo Ribeiro, morto em julho de 2014, na época de nossa visita fazia exatamente um ano de sua morte e Francisco não deixou passar:

— Esse aí — disse encostando-se à cripta e tirando o pó com a sua vassourinha — foi o último que chegou, coitado. Já faz um ano, e isso aqui ficou lotado.

Aparentemente, seu Francisco gostou da gente. Enquanto nos despedíamos, ele deixou escapar que não deixa qualquer um entrar assim para conhecer; da última vez que ele fez isso, foi com um homem que veio de Minas Gerais porque queria muito conhecer o túmulo de Machado de Assis.

Assim que saímos pela porta do mausoléu, encontramos algumas pessoas do nosso grupo que, assim como nós, tinham desviado do caminho principal.

Não deu tempo de Francisco fechar a porta: o grupo começou a tirar fotos instantaneamente e com uma cara contrariada ele acenou e os guiou para dentro do mausoléu.

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Crédito da imagem: CC0 Creative Commons

Capítulo do livro:Desenterrando a História

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1 Comentário

  1. Parabéns pela “simbologia” que criaram sobre o cemitério São João Batista . Realmente a matéria, levou a criação de enredo e personagem de maneira clara e simples na minha leitura.

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