Luciana Barreto

publicado na Ed_09_out/dez.2018 por

O meu combinado com Luciana Barreto era de chegar na TV Brasil antes das dez horas, para que eu pudesse acompanhar o fechamento do Repórter Brasil edição da manhã. Como cheguei bem cedo na cidade, decidi tomar um café e olhar no celular a distância até a emissora; vi que não ficava longe e resolvo ir de ônibus mesmo. É a minha primeira ida à Cidade Maravilhosa, estou sozinha e já me arriscando no transporte público. Às 8:59 já me encontro na portaria da TV Brasil, situado no bairro da Lapa, local escolhido para nossa conversa. Identifico-me na recepção informando com quem quero falar. A recepcionista pede meu RG, telefona para Luciana e diz que “a senhora Caroline de Jesus está aguardando”. A ligação é encerrada e ela tira uma foto minha para deixar nos registros de visitantes. Devolve meu documento e fala que “a dona Luciana disse que já está descendo para o estúdio e que a senhora pode ir para lá aguardá-la”. Flávio, produtor que está próximo, escuta e pede que eu o acompanhe. Ao chegarmos no estúdio ele diz para que eu fique à vontade, mostra onde os convidados costumam ficar, mas que antes seria melhor passarmos no camarim para a maquiagem. Nesse momento eu sorrio espantada e digo que não iria participar do jornal, que estava ali apenas como observadora.

Eles, uma equipe técnica de seis homens, assentem com a cabeça e dizem para que eu fique à vontade. Coloco minha mochila em um canto, sento-me em um sofá e sinto minhas mãos suarem. O celular apita em sinal de que a bateria está prestes a acabar; percebo então que um dos operadores de câmera que está sentado próximo a mim carrega seu celular em uma das tomadas do estúdio. “Aqui tem outra tomada para eu carregar meu celular?”, pergunto. Ele ergue a cabeça e, sorrindo, aponta para a entrada do estúdio dizendo: “atrás daquelas duas câmeras tem um espaço com tomadas disponíveis. Pode usar qualquer uma.” Deixo meu celular carregando.

No mesmo instante, um dos cinegrafistas chega próximo a mim com um banco para que eu possa ficar junto ao celular.  Agradeço e quando vou posicioná-lo melhor, avisto Luciana adentrando o estúdio e caminhando em minha direção. Com uma calça justa azul marinho, casaquinho pink e um sapato scarpin quase cinza; em mãos seu celular e uma garrafa floral. “Oi Carol, bom dia tudo bem?”, respondo que sim, nos abraçamos e ela continua falando devagar e em baixo tom: “Seja bem-vinda! Fique à vontade para acompanhar o programa, pode sentar mais perto se você quiser. Como estou me curando de uma crise de faringite, conversaremos uns trinta minutos após o término do jornal, para que eu não force tanto a minha voz, tudo bem?” Digo que por mim tudo bem, ela sorri piscando os dois olhos e dirige-se para frente das câmeras.

Estava inquieta, segurando um papel, caminhando de um lado para o outro. Os operadores de câmera já estavam posicionados. Luciana questiona onde deve ficar para gravar as escaladas[1] e um dos operadores, com o riso na voz, diz que ela poderia decidir o lugar. Com o semblante sério, Luciana encara uma das câmeras enxergando-se no reflexo, reprime uma tosse, começa a passar a mão em seus cabelos cacheados, como que os ajeitando, até que se posiciona e diz: “Gente, vamos fazer logo as escaladas, porque se algo der errado ainda temos tempo de chamar a Thaís para fazer o jornal no meu lugar.Em seguida, inicia exercícios vocais para aquecer a voz. “Brrrra brrree brrooo.” Toma sua garrafa fúcsia com flores, bebe um pouco de água e, mantendo o semblante sério, exclama: “Vamos lá pessoal.” Posicionada no centro do estúdio, inicia: “Em uma votação que invadiu a noite”, sua voz falha, ela abaixa a cabeça sinalizando negativamente “eu não vou conseguir. Não dá gente. Cadê Thais (Araújo)?” Dessa vez, sem conter, Luciana tosse. A frustração fica evidente no semblante da jornalista. Até que uma voz forte invade o estúdio “Luciana não tem condições, Luciana está sem voz. Lu, fica calma já estamos trazendo a Thais.” Toda a equipe fica agitada. Lucas, um dos operadores de câmera com aparência mais nova pergunta: “Você chegou até que bem, a voz estava okay. O que aconteceu?” Respirando fundo, como que controlando a tensão ela responde: “Eu estava bem melhor mesmo, gravei alguns offs hoje, mas foi só chegar na redação que piorei. Passaram um produto químico com cheiro muito forte na redação e na mesma hora comecei a tossir descontroladamente. Tentei não falar muito, mas não adiantou.” Bebe mais um gole de água.

Olho para o relógio, marcava 9:25. Chega Thaís, a substituta que estava fazendo uma externa próximo ao prédio da TV Brasil. Segurando uma agenda e alguns papéis, ainda ofegante, ela se aproxima de Luciana e pergunta: “O que aconteceu? Não vai dar?” Ao que Luciana responde negativamente com a cabeça enquanto caminha na direção da colega apanhando o que havia em suas mãos. Retira um lenço que estava no pescoço de Thaís e coloca tudo em uma mesa lateral.

Com o nervosismo aparente, Thaís diz que precisa estudar o texto, mas é alertada de que não há tempo suficiente, porque o jornal entra ao vivo às 9:30. Luciana se adianta, tira o microfone. Nesse instante, ouve-se, em um tom cético, que Thais estava de vestido. “Não vai dar pra colocar o microfone nela não.” A tensão quase toma conta do local, mas as duas encontram uma solução para fixar o equipamento. Cada movimento é cuidadosamente executado e embalado por palavras de incentivo e apoio. Luciana emite um som, limpando a garganta e evoca: “Thais, você sabe o que tem que fazer. Compreendo o nervosismo, mas você entende do negócio e vai conseguir. Fique tranquila, inspire e expire. Já deu certo.”  Thaís agradece, toma o posto frente à câmera. Luciana vai até a mesa, recolhe seus pertences, diz que não ficará no estúdio para que sua tosse não atrapalhe e vem em minha direção.  “Carol, venha comigo. Vamos subir para o camarim.”

Desconecto o meu carregador da tomada, pego minha bolsa e a sigo. Alguns lances de escada acima em silêncio, chegamos a um corredor; ela me olha e diz que “foram raras as vezes que isso aconteceu”. Ao entrar no camarim avisto duas mulheres, e ambas se espantam com a nossa presença. Mais com a dela do que com a minha. Claudia Carvalho e Nádia Pessanha são responsáveis por cabelo e maquiagem dos apresentadores e convidados. Nádia estava fazendo crochê acomodada no assento de um dos lavatórios. Claudia em uma cadeira defronte à um dos espelhos, dá um pulo quando vê Luciana e espantada pergunta “Lu, o que foi? Não deu?”. Nádia levanta a cabeça e, calada, encara a jornalista enquanto ajeita seus óculos de grau. “Foi o produto que jorraram na redação. Eu estava melhor, mas foi sentir aquele cheiro para desandar a tossir. Ainda tentei poupar, mas na hora de gravar a primeira escalada minha voz falhou. Ainda bem que foi na escalada, já pensou se é na cabeça[2]?”, aproxima-se do espelho e continua “Imagina, eu sem voz no ao vivo. Pelo menos Thais estava aqui perto e ciente de que poderíamos precisar de sua ajuda.” Ela dá as costas para o espelho e olhando para Claudia pede que ela desça para dar um suporte à Thais. A maquiadora concorda de pronto, pega alguns produtos e sai rapidamente.

Ainda de costas para o espelho e encostada na bancada da penteadeira, Luciana mexe em seu celular. Nádia se mostra preocupada: “Eu tenho um remédio bom, vou trazer e logo você fica boa. Beba água…” Sento-me ao lado de Nádia e vejo que Luciana está ficando mais tranquila. Ela percebe que a estou observando, sorri e me apresenta à Nádia. “Carol está se formando em Jornalismo e veio até o Rio (de Janeiro) para conversar comigo e agregar ao seu TCC. Infelizmente em um dia atípico.” Faz uma pausa, passa a mão direita na testa, comprime os lábios e respira fundo. No canto esquerdo do camarim há uma pequena televisão que está ligada, vemos Thais apresentar o Jornal da Manhã. Com os olhares fixos na tela, Luciana e Nádia tecem elogios à jovem apresentadora. Sinto-me à vontade para fazer o mesmo e digo que nem parece que ela chegou ali de última hora, pois
aparenta segurança e conhecimento. Ambas concordam e sou informada por Luciana de que Thais tem sido preparada para apresentação e que “isso foi essencial para sua boa desenvoltura nesta ocasião”.

Guardo meu carregador na mochila e começo a lamentar mentalmente por tudo de ruim que acontecera até ali. O Jornal da Manhã termina. Luciana pede licença para trocar de roupa, vai até o seu camarim e em poucos minutos retorna à área de maquiagem. Agora em um look todo preto, veste um macacão longo, botas coturno. Entra na sala já questionando “Carol como estão os seus horários?”, respondo que estou totalmente disponível para o nosso encontro. “Então venha comigo na redação, estamos finalizando a edição de um programa especial sobre Nelson Mandela que será exibido no Caminhos (da Reportagem). Me ajude a revisar, o que acha?” Sinto-me empolgada e a acompanho até o andar da redação. Assim que adentramos, somos atingidas pelo forte cheiro que a fez passar mal. “Tá sentindo? Agora tá bem melhor”, exclama. Sou apresentada aos profissionais que ali estão. Todos preocupados com Luciana e um deles diz que já pediu “para que esse produto não seja usado novamente, afinal é preciso cuidar da apresentadora e de seu objeto de trabalho, a voz”.

Revisamos parte do texto, partimos para um pequeno estúdio onde Luciana refaz um off e salva na pasta do programa que está em processo de edição e finalização. Saímos do estúdio e encontramos Luciana Góes, responsável pela produção do documentário. Ela carrega um caderno com anotações, roteiro e minutagem, trocam algumas palavras a respeito documentário. Sentamos de frente para um computador e Luciana me mostra dezoito minutos do documentário. Fico encantada e ansiosa para assisti-lo por completo. “Tudo certo por aqui, Carol. Agora podemos conversar. Bora lá no meu camarim”, diz sorrindo em tom amigável e já com uma voz melhor, se comparada a emitida no início da manhã. Descemos poucos lances de escadas e logo estamos no camarim. “É pequeno, mas cabemos aqui. Não repara a bagunça viu? Tem bastante coisa, livros que ganhei e ainda nem consegui desembalar”, fala isso enquanto recolhe algumas sacolas e peças de roupas. Faço o mesmo, apanho duas sacolas e as acomodo em cima de um móvel branco,
semelhante a um criado mudo, ajeito uma cadeira e sento-me de frente para ela, que está sentada em algo mais estreito que uma cama.

Âncora e editora-executiva do Repórter Brasil (edição da manhã), na TV Brasil, Luciana Barreto de Farias nasceu em 24 de fevereiro de 1976, na baixada fluminense, em Nova Iguaçu. É filha caçula, tem dois irmãos, um homem e uma mulher. O pai sempre exerceu a profissão de motorista de ônibus e caminhão e sua mãe, que já trabalhou em creches, é uma educadora e ativista social. Luciana conta que, por nascer na periferia, sempre foi uma inconformada com tudo relacionado aos direitos humanos. Apesar de não ter vivenciado tal experiência, o inconformismo se apresentou ainda na tenra idade com o triste fato de crianças saírem  de suas casas e serem expostas a corpos estirados no chão por conta do extermínio — isso quando não são elas as vítimas do fogo cruzado — algo comum em favelas do Rio de Janeiro e em diversas periferias do Brasil. Outra indignação era com o emprego do dinheiro público, pois ainda jovem percebia que a periferia não tinha acesso ao financiamento cultural se comparado ao orçamento destinado ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro, por exemplo. Essa inquietação se traduzia, então, nos movimentos de luta como o das Comunidades Eclesiais de base da Igreja Católica, onde começa a sua história.

Com muito estudo junto ao projeto social Pré-Vestibular Para Negros e Carentes, que hoje é a ONG Educafro, conseguiu aprovação em quatro universidades cariocas: PUC, UERJ, UFF e UFRJ. As aprovações não vieram de forma instantânea pois, assim como outros alunos do ensino público em nosso país, Luciana foi prejudicada com a ausência de professores. “Meu professor de Física morreu no primeiro ano do Ensino Médio e o Estado não contratou outro. Fiquei os três anos sem professor e o Estado botava a média sete como se estivéssemos tendo aula.” Não é difícil raciocinar o porquê a reprovação no vestibular é algo tão real na vida de um adolescente inserido nesse contexto. Após algumas reprovações, com o apoio do movimento social,  Luciana aprendeu Física, disciplina que tanto tinha dificuldade, e foi aprovada nos cursos de História e Jornalismo. Com os olhos fechados, engole a saliva e faz uma pausa, parece que a garganta ainda incomoda. Já com os olhos abertos, volta a me encarar: “Não me formei em História, porque fiz concomitante e depois de quase três anos eu já não estava aguentando, mas já tinha aprendido bastante do que eu acreditava ser importante de História para complementar o Jornalismo.”

Na minha casa, assistir programas de televisão significava estar junto com a família, talvez por morarmos em uma casa pequena que só tinha um aparelho de TV, nos reuníamos frente a ele, ríamos e conversávamos. Pensando nisso, pergunto a Luciana como era assistir TV em sua casa, como essa relação se dava e se ela conseguia imaginar-se ali. Muito observadora, compartilha que a ausência do negro na televisão foi mais um fator de indignação. Com os dois dedos indicadores, aponta para seus cabelos cacheados e começa dizendo que nunca fez nenhum processo químico de alistamento. Já com as mãos sobre seu colo, abre um sorriso e, projetando o corpo para frente, pontua que sempre foi um pouco militante e ativista desde criança. “Lembro, por exemplo, de me sentir muito agredida pelo programa da Xuxa, muito agredida. Não só pela ausência da figura do negro, mas por aquele café da manhã muito agressivo para uma criança pobre.” Não havia uma aproximação identitária, sua autoestima também era atacada, logo Luciana não se imaginava naquele espaço.

Contudo, essa percepção de que era algo relacionado à autoestima só lhe veio à tona durante a graduação quando ela começou a trabalhar no GNT, porque quando tentaram colocá-la no vídeo sua resposta foi “não, eu não quero fazer vídeo”. É, então, nesse momento que Luciana compreende o centro da questão: a ausência de representatividade negra. Não existir na televisão uma figura semelhante a ela resultou em um processo de autoestima que foi violado por décadas, e fez com que não encarasse como algo possível estar na telinha. Entendendo isso, nasce uma ativista na questão da mídia. “Eu percebi que precisava falar sobre a importância da presença do negro na TV e só vim falar anos depois, mas já no início eu me posiciono. Quando eu venho para a televisão, eu percebo que eu tinha um problema de autoestima muito grande e que esse problema tinha uma raiz, que era uma raiz da infância.”

Com o objetivo de ter seu próprio dinheiro, ou ajudar nas despesas de casa, o jovem negro de periferia começa a trabalhar muito cedo. Com Luciana não foi diferente, aos quinze anos de idade já realizava alguns trabalhos informais para  complementar a renda familiar. Logo no início da graduação, a fim de garantir a passagem do transporte e poder frequentar as aulas na faculdade, iniciou um estágio não permitido em que as atividades se assemelhavam ao ofício de uma secretária e fazia faxina. Do terceiro período em diante já conseguiu estagiar no jornalismo, mas nenhuma dessas experiências foi em jornal impresso; seu sonho era trabalhar no antigo Jornal do Brasil. E, apesar de encarar o trabalho em televisão como uma questão temporária, a vida se encarregou de desenvolver e solidificar essa relação, então Luciana trabalhou no Canal Futura, no GNT, Band News, Band, TVE e TV Brasil. Em meio a uma risada e com os olhos pequeninos por conta dela, diz: “Eu passei  dez anos acreditando que iria pro impresso”, emite uma risada e continua dizendo que não sabe em que momento uma voz surgiu em sua cabeça dizendo: “oi, acorda! Você realmente é de televisão.” Fato é que o desejo de trabalhar no impresso resultou em sua habilidade com a escrita e produção de conteúdo, entrando em notável consonância com o a imagem em vídeo.

No que diz respeito ao preconceito e à discriminação, após longa e dramática pausa, a jornalista confirma que, sim, já sofreu com tais atos de violência tanto no trabalho quanto nos processos seletivos e destaca aquele tipo de preconceito que é subjetivo e você não detecta de cara, consequência de uma sociedade que se pauta na pigmentocracia. Esse termo refere-se ao ato de, em diversas situações, selecionar ou escolher uma pessoa a partir do tom de sua pele ao invés de analisar competências intelectuais e profissionais. Luciana pontua que existem emissoras que querem profissionais negros, mas se pautam na pigmentocracia e, muitas vezes, recusam um negro retinto e de cabelo mais crespo. Tendo o tom de pele um pouco mais claro e os cabelos menos crespos, ela tem consciência de seu privilégio, que muitas vezes foi “ajudada” — fazendo sinal de aspas com os dedos — e que já cansou de escutar: “Ah, eu queria ter uma repórter assim, entendeu? Um perfil assim, magra com a pele mais clara, com os traços menos negroides.” Vendo o quão subjetivo e perverso é o racismo no Brasil, Luciana decidiu estudá-lo academicamente no intuito de entender como esse sistema funciona, tendo como foco a descoberta e desenvolvimento de elementos para combatê-lo.

Sem contar que o racismo é uma ideologia  que faz vítimas de ambos os lados, agressor e agredido, pois ao mesmo tempo que ele coloca o indivíduo negro numa condição de inferioridade, acaba por deixar o branco numa posição de superioridade quando, na verdade, estão em posição de igualdade. Para o branco, pode ser difícil e até um choque reconhecer que essa relação não se trata de superioridade e inferioridade. O mesmo ocorre nas universidades, estudantes beneficiados pelo sistema de cotas são preteridos pelo simples fato de estar naquele ambiente, isso quando não questionam a legitimidade de suas boas notas nas disciplinas do curso – o que aconteceu comigo durante todo o currículo escolar.

Ainda no que tange a discriminação, existe o processo de intersecção e nele é possível mensurar a difícil luta das mulheres negras, porque além de lidar com o racismo e o machismo, também observamos que, falando de Brasil, os piores indicadores sociais estão diretamente apontados para esse grupo de mulheres. Para exemplificar, Luciana traz dois dados: o genocídio de jovens negros e a população carcerária. “Oito em cada dez jovens assassinados no Brasil são negros, né?! E sobre a população carcerária, sete em cada dez são negros. Aí você vai imaginar quem é esse jovem: ou é filho da mulher negra ou é o marido da mulher negra, ou é o companheiro da mulher negra ou é o irmão da mulher negra.” Sem dúvidas, a mulher negra, como base da pirâmide social, é triplamente discriminada, atingida a todo o momento e em todos os ângulos na sociedade.

Agora a par do que Luciana enfrentou durante os processos seletivos e sobre a inserção no mercado de trabalho do jornalismo, fico curiosa para saber qual é a sua percepção quanto a essa ausência, ou inexpressiva presença, de mulheres negras nos telejornais brasileiros. Com as pernas cruzadas, une as mãos na altura do joelho, começa a estralar os dedos em sinal de nervosismo e confessa que esse tema é um tanto quanto duro para ela. Logo que iniciou sua carreira na televisão, percebeu uma diferença na maneira com que a equipe tratava as jornalistas na leitura do teleprompter, tratava-se de um embelezamento do vídeo. Mas, como assim? Simples, a profissional estava ali somente para ler os textos produzidos por outra pessoa, dos quais ela não participou do processo de criação; vez por outra esse ciclo era quebrado pelas âncoras, sempre mulheres brancas.

Apesar de ser uma produtora de conteúdo e não se encaixar no papel de ler o que era escrito por um homem branco, Luciana entendia que não poderia chegar querendo modificar o sistema. Essa mudança aconteceu de maneira gradativa: “Eu dizia ‘olha, eu escrevo, eu faço e entendo do conteúdo’. Com o tempo fui produzindo o que tem muito a ver com os Direitos Humanos, que é mais uma lacuna na televisão brasileira, com a questão étnico-racial, ganhei um telejornal e tornei-me editora executiva com o poder de decisão do que é pauta e sua relevância, socialmente falando.” Além disso, identifica, atualmente, um movimento de resistência de todas as profissionais na televisão em quebrar o embelezamento de estúdio, principalmente em programas esportivos. Acredita na importância da representatividade, a figura negra na televisão sendo assistida por uma criança negra já é uma revolução, mas aponta que ainda carecemos de avanços, tal figura não pode ser uma representatividade muda. Ao contrário, que seja engajada e efetiva. “É importante estar ali, é fundamental”, com as sobrancelhas arqueadas e em tom de alerta: “NÃO SAIA DALI, pelo amor de Deus”, conclui.

Nesse instante, Luciana faz um adendo bastante pertinente sobre pessoas que estão em grandes emissoras e ainda não assumem esse papel participativo na construção do que será apresentado ao público. Sabe como é difícil estar em determinados espaços vivendo todo o tipo de situação nos bastidores, então exclama que “jamais poderão falar algo que desqualifique tais lideranças”, porque é preciso dar o primeiro passo, conquistar espaço e colocar pautas e discussões fundamentais para o Brasil e para o povo negro. “A gente sonha em ter um âncora negro que se posicione, que fale e que comande um programa de entrevistas.” Movimentando as mãos transparecendo uma empolgação e com um largo sorriso, conclui: “A gente quer isso e quer mais ainda, entendeu?”. Concordo, pois é um desejo compartilhado, eu também quero isso.

Antes que nossa conversa siga o caminho das amenidades, indago sobre as mulheres negras que estão em processo de formação jornalística e busco saber o que ela, Luciana Barreto, diria a essas estudantes. Imediatamente vejo seu rosto iluminar-se e as palavras serem proferidas com bastante entusiasmo. Única aluna negra e moradora da periferia no curso de Jornalismo da PUC, Luciana cita a força e a importância de coletivos negros dentro das universidades, e quase que lamenta por isso não existir enquanto ainda estava na graduação. Para ela, tais coletivos são fundamentais, pois as pessoas que participam deles possuem consciência social, organização, protegem uns aos outros e modificam os espaços. No entanto, se mostra preocupada com o fato de que o mercado de trabalho não acompanhou a evolução da sociedade brasileira, sobretudo com formulação de políticas públicas e expressa: “A gente formulou política pública para esse jovem entrar na universidade e, talvez, a gente tenha criado o maior índice de frustração do Brasil, porque não adianta entrar, se formar no ensino superior e ficar desempregado. É preciso mudar a percepção do mercado de trabalho para que esse recém formado ingresse nele e modifique a estrutura de nossa sociedade.” Os empregadores precisam despadronizar seu olhar para, enfim, enxergar esse perfil que é tão bem qualificado quanto qualquer outro. Com o otimismo ganhando a forma de um sorriso, deixa um recado para as futuras colegas de profissão: “Tenham paciência, noção de sua qualidade e especificidade, pois é o que vocês tem melhor e com o que irão trabalhar. Assim irão longe!”

[1] Manchete do telejornal. Tem a função de prender a atenção do telespectador e informar as principais notícias da edição.
[2] Texto lido pelo apresentador para anunciar uma matéria.

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Crédito das imagens: Âncora e editora-executiva do Repórter Brasil (Foto: Arquivo Pessoal)

Capítulo do livro: “Além de Glória Maria: a representatividade da mulher negra no telejornalismo brasileiro atual”

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