André Gabriel

publicado na Ed_09_out/dez.2018 por e

“À arte de sorrir cada vez que o mundo diz não”

As nuvens deram trégua e o sol passou a predominar naquela tarde de sábado. As ruas com constante movimento: pessoas, carros, motos e crianças andando de bicicleta, sorrindo incansavelmente. Neste dia aconteceria nosso primeiro contato com um homem trans. Estávamos tomados pela ansiedade e vontade de mergulhar nessa história, para tentar compreender o universo e realidade de André, que sempre se mostrou prestativo e atencioso desde o primeiro contato. Realizaríamos apenas uma pré-entrevista a princípio, apresentaríamos o projeto e entenderíamos melhor algumas questões especificas da realidade trans.

Conseguimos alinhar nosso encontro, tudo estava caminhando como esperado. Saímos no tempo certo para chegarmos no horário marcado: 14h30 no Parque Central em Santo André, cidade localizada na região do ABC de São Paulo. Mas o trânsito saiu do script e ficamos parados por 15 minutos na Avenida dos Estados. O rádio tocava “o tempo não para”, música de Cazuza. Cantamos em tom baixo, como se só nós pudéssemos ouvir nossas vozes. As notas preencheram o carro e segundos depois se misturaram ao som das buzinas, que eram incessantes. Até que, por fim, os carros aceleraram e deram continuidade a seus caminhos. Seguimos um pouco mais ansiosos e preocupados por levar mais tempo para a chegada.

Ao estacionar o carro, caminhamos até a entrada principal do parque e logo avistamos André, que nos sorriu. Em seu olhar vimos acolhimento, um homem de estatura baixa, shorts largos, regata e boné, roupas confortáveis para uma tarde de sol no parque. Além dele, teríamos uma ótima companhia, seu cachorro Joy, que também veio nos receber calorosamente. Nos abraçamos e fomos caminhando pelo parque, conversando sobre o dia, o atraso e a movimentação no local. “Adoro vir aqui com Joy, o contato com a natureza é libertador”, disse André enquanto caminhávamos por uma pequena trilha ao lado de um grande lago. Segundos depois, Joy correu e mergulhou no lago. Ele nadava feliz enquanto ficava atento a cada movimento de André, para não ser deixado para trás.

Caminhamos por um longo tempo, até avistarmos uma grande árvore. Fazia uma sombra convidativa e dava vista para um outro lago, desta vez menor, mas não intimidava Joy, que se mostrou feliz e com um pulo se jogou novamente. As crianças riam e vibravam ao ver aquele pequeno cachorro, dos pelos marrons e focinho curto, brincando. As crianças jogavam pedaços de galhos das árvores que caiam ao redor do lago, só para verem o companheiro de André se animar ainda mais com a brincadeira.

A conversa se iniciou e André se mostrou entusiasmado com o projeto e disposto a nos ajudar de todas as formas possíveis, contando suas experiências de vida.

“Que a tensão que me corrói por dentro, seja um dia recompensada”

Recentemente deixou uma empresa onde trabalhou durante um ano e três meses. Lá foi alvo de constante preconceito e discriminação. Por mais que a empresa tentasse desenvolver campanhas de diversidade, ainda assim muitas pessoas agiam de forma agressiva com palavras e atitudes, tanto com relação ao seu antigo nome (de nascimento), quanto a sua transição de gênero. André iniciou o processo de transição enquanto ainda trabalhava lá. Os colegas de trabalho puderam acompanhar a transformação de seu corpo e comportamento. Muitos o julgavam e falavam pelas costas apenas por ele ser quem é.

Durante o processo de transição, André teve problemas até no momento de usar o banheiro. Em um certo momento ele parou de ir no feminino e passou a usar o masculino. Mas todas as vezes ele olhava para os lados, se certificando de que ninguém estava no banheiro. Assim ele se sentiria à vontade e não correria o risco de tentarem olhar por baixo da porta, como já aconteceu.

O banheiro para pessoas com deficiência chegou a ser uma alternativa, pois era escondido e discreto, mas o deixava desconfortável e inseguro.

Enquanto falava, André tirou seu boné algumas vezes ao lembrar dessa situação que era obrigado a enfrentar, remetendo à irritação e à indignação. Ele caiu, levantou, esbravejou e chorou durante todo tempo vivido a mercê do cenário criado para ele, até chegar ao seu limite. A queda resultou em um processo judicial. André recebeu uma carta da Defensoria Pública pedindo sua presença no Fórum.

Chegou no horário e local agendado. Quando entrou, avistou as mulheres que faziam dele uma mira de preconceito, ódio e discriminação e não se surpreendeu ao olhar para elas e perceber os comentários ofensivos e as risadas descaradas. O promotor chegou até ele perguntando “está preparado?”. De imediato André respondeu “não”, o medo bateu a porta e se acomodou. A força se fez presente e o fortaleceu para que ele pudesse enfrentar outro momento difícil em sua vida.

Assinaram vários papéis, minutos depois um advogado questionou se ele sabia o motivo de estar ali, explicou sobre a carta e da forma como a Defensora Pública chegou até ele. Havia se queixado de que não gostaria de estar passando por tudo isso. Seu desabafo foi ouvido sem ele perceber. Uma mulher da Defensoria Pública o ouviu e o aconselhou, a processar quem o deixava daquela forma todos os dias. André refletiu e, após uma insistência da parte dela, acabou aceitando, pois assim buscaria seus direitos.

Uma fala tanto quanto importante, acabou o convencendo ainda mais. A promotora de Justiça, com certa energia, falou para ele: “imagina estarmos em uma roda de amigos e você sofre preconceito e nós não fazemos nada. Estaremos sendo coniventes com a situação. Então, mesmo que você não quisesse, ainda assim o faríamos. Você ainda comentou que a empresa ganhou prêmio internacional de diversidade. Pior ainda, porque agora vai ser o Estado contra eles”. Ao terminar a fala, André sorria. Falou por duas vezes seguidas “eu fiquei muito feliz” e mostrou euforia com essa conquista.

Havia provas o suficiente para conseguir incriminar os profissionais e a empresa. A principal delas é seu nome no sistema: mesmo com a troca do nome de nascimento para o nome social, insistiam em manter o feminino, além dos próprios colaboradores o tratarem por seu nome de registro.

“Mas é isso, a empresa fala e prega a diversidade, mas não ensinam para os colaboradores, que todos os dias lidam com você, o que é diversidade. Eles só pregam isso, mas não expõem e tentam explicar aos funcionários de forma que possa compreender e respeitar a diferença.”

A atual empresa onde trabalha implantou campanhas promovendo diversidade sexual e de gênero, inclusive realizando uma semana da diversidade. Os colaboradores participariam de palestras por meio de um sorteio, não seria possível a presença de todos. Mesmo com essas limitações, André diz que dá para perceber que estão se esforçando.

Ainda existem barreiras a serem quebradas. Mesmo em um novo trabalho, André se deparou com comentários impróprios de um dos funcionários: “ eu sou homem mesmo”, intensificando a sua masculinidade como superior à de André. Ao falar, seu olhar revirou como reprovação.

 “Você verá que é mesmo assim, que a história não tem fim”

O preconceito sempre o acompanhou. Não é à toa que suas duas carteiras de trabalho estão cheias. As pessoas não o respeitavam. Para se defender, André revidava a essas agressões e acabou rompendo contratos de trabalho “para não baixar a cabeça e bater de frente”. Enquanto contava essa história, André gesticulava com às mãos e seu olhar refletia sua revolta e tristeza com relação a sua trajetória profissional.

Em todos os lugares que frequentou desde trabalho, faculdade e até a casa espirita, onde ia com frequência, encontrou discriminação. “Na outra vida eu devo ter sido um filho da puta, um tirano, porque não é possível”. Resistente a todos julgamentos e sem entender a causa de todos eles, se mantem firme e em sua bolha. Afim de não ser notado e se deparar com todo esse sentimento de intolerância por parte de outras pessoas. “ Nos centros espiritas que já fui as entidades falam que vim para terra com provas”.

Ao falar passou as mãos sobre os braços, os pelos se arrepiaram e nos mostrou como aquilo mexe com ele. Mesmo sem entender quais provas são essas, ainda acredita que muitas coisas virão a acontecer. Sua fé é o que fortalece e o ergue para enfrentar todos os obstáculos.

Quando questiona seus amigos trans sobre o preconceito, percebe que para ele é sempre algo mais excessivo. “Tem preconceito sim, mas o meu é sempre maior chega a ser exagerado”. Quem convive ao seu lado, repara em todo sofrimento vivido por ele. Sua mãe chegou a dizer que ele era o culpado da situação, como se ele ocasionasse a intolerância das pessoas a sua volta.

Mas, com todo seu entendimento, não se culpa por algo que não é seu, mas do outro. “A impressão que dá é que as pessoas meio que tem medo de mim, eu gostaria que me tratassem normalmente, isso me chateia demais”. O silêncio se instalou naquele momento, uma pausa para reflexão e respeito ao sentimento de André.

Joy vem até nós e se joga entre as folhas caídas por toda a grama. Traz na boca um pequeno galho, entrega a seu dono na expectativa de correr e abocanha-lo novamente – essa cena se repetiu durante parte de nossa conversa. Mas, dessa vez, ele recebeu carinho em seus pelos molhados e deitou entre nós, repousou por alguns minutos até avistar outros cachorros e sair correndo e latindo de novo. Paramos a conversa para observar todo carisma daquele pequeno cachorro, conseguindo despertar em todos a alegria em vê-lo feliz.

A tarde estava caindo, anunciando uma queda de temperatura. Andamos um pouco por todo aquele verde e contemplamos todas as vistas possíveis daquele lugar até chegarmos ao momento de despedida. Abraços sinceros e sorrisos de gratidão pela oportunidade de conhecer alguém tão especial e disposto a nos mostrar seu mundo.

“Pela longa estrada eu vou, estrada eu sou”

Entramos no condomínio de André. Os carros estacionados embaixo de um pequeno telhado planejado para protegê-los. Moradores circulavam e algumas crianças brincavam em um pequeno playground cercado de grades de proteção e revestido com gramas e pedrinhas. Logo que entramos ele veio nos receber e orientar onde os visitantes podem estacionar. A faixa amarela sinalizava a vaga e lá estava ele sorrindo para nos receber.

Os comprimentos dessa vez foram menos tímidos, pois estávamos mais familiarizados uns com os outros. Trocamos palavras sobre o trajeto e o quanto era bom revê-lo. Ele se mostrou feliz com nossa presença. Joy veio logo atrás solto, livre para correr. Mas segundos depois seu dono o prendeu na guia para percorrermos alguns metros do condomínio afim de encontrar um lugar tranquilo para conversarmos.

Chegamos em frente a quadra onde tinha um homem e um garotinho chutando uma bola. Nos acomodamos no fundo da quadra, em uma grande área gramada. André se acomodou no banco de cimento em frente ao local onde nos sentamos. Joy se mexia na coleira afim de ser solto e explorar todo o ambiente. Quando foi solto, correu por toda a grama e abocanhou uma pequena pinha e a mordia com força. “Ele adora pinha, nunca vi igual” disse André enquanto fazia carinho na cabeça de seu cachorro.

Enquanto estávamos nos preparando para iniciar a conversa, o rapaz jogou a bola forte na quadra, com tom de incômodo. “Ele acabou de mudar para cá, aí já fizeram fofocas sobre mim e ele começou a ‘causar’ comigo. Ele me provoca mesmo, tento passar e ele fica literalmente na minha frente e o filho dele também”, desabafou. Ele não é o único do condomínio a tratá-lo dessa forma, já houve ameaças e até tentativa de homicídio, quando um morador jogou o carro em cima dele, mas por sorte ele desviou e não foi atingido.

A intolerância atinge não só André, mas também a sua mãe que vive com ele no pequeno apartamento em São Bernardo do Campo. Não pode nem andar com seu cachorro por lá. Sua insistência resulta em multas e discussões por meio dos moradores e da síndica do prédio. “O Joy é bonzinho, não saio com ele porque falam que vai fazer sujeira, mas ele não faz eu ensino tudo para ele”. Seu semblante mudou e podemos notar a tristeza por não possuir os mesmos direitos. “Não é por causa dele, é por minha causa”, desviou os olhos por alguns segundos, alcançou o animalzinho deitado na grama ao seu lado.

Muitos dos seus amigos pararam de fazer visitas por serem muitas vezes xingados por moradores. “É viado e sapatão”, dizem seus vizinhos. Isso o ofendia, por não poder levar pessoas que gosta e ficar em paz. “Eu falo para minha mãe: a gente paga condomínio para viver em uma prisão dentro de casa?”.

Mas isso acontece desde sua infância. No colégio onde estudava, desde a primeira série, André era alvo de preconceito dos alunos. Alguns tentaram agredi-lo e outros utilizavam xingamentos “Maria homem, você é Maria homem”. Essa cena foi vista por ele repetidas vezes. Só passaram a ter respeito quando André saiu em um jornal do colégio como representante da escola.

Mesmo depois do clima mais ameno, uma aluna, querendo o agredir, alegou que não queria ter nada relacionado a ele, já que tinham o mesmo nome. Afim de se defender, André ameaçou ir até a sala e pegar uma tesoura. Ela o jogou no chão e chutou por várias vezes enquanto falava “está querendo se defender com uma tesourinha? ”. André não reagiu e, depois de diversos golpes, ela foi embora. Tempos depois a mãe dessa menina descobriu a atitude da filha e chegou até André, se desculpou e disse belas palavras a ele. “Me dá até vontade de chorar”, dizia enquanto tentava mudar de assunto.

“ Você verá que a emoção começa agora”

Ao retratar seu vínculo familiar, ele fala com cautela. A saudade do pai ainda surge com frequência.  O perdeu antes que o visse como homem. “Nossa, ele ficaria feliz em ver o homem que me tornei”. Seus olhos brilhavam e ele sorria com emoção. Com a sua mãe não foi tão fácil a aceitação em todo período de transição. Ainda caminhava a passos lentos. Explicava sempre com carinho e atenção, para que ela compreendesse e respeitasse quem ele é. “Ela me reconhece como homem quando alguém fala meu nome ou que sou bonito, se referindo ao masculino”.

Mas na rotina diária, quando estavam sozinhos, ainda encontrava bloqueios. Apenas em meio a outras pessoas se sentia respeitado por ela. “Agora quando falam mal de mim, ela também concorda e eu fico sem entender”. A opinião das pessoas influencia firmemente em sua posição e relação com o filho. O preconceito acaba tomando espaço em alguns momentos.

Esses preconceitos aconteceram antes da transição, quando se descreve como “uma mulher masculina”. Depois das mudanças no corpo, notou uma diferença por parte daqueles que não o conheciam. “Só por você ter aspecto masculino as pessoas te tratam diferente”, afirma. Quando ainda não tinha as características masculinas, André percebia os olhares e “torcidas de nariz”. Muitas vezes os ônibus se recusavam a abrir a porta ou, quando abriam, fechavam as portas rapidamente para ele não entrar.

Depois da transição, situações como essa não se repetiram. Os motoristas chegavam a cumprimentá-lo quando entrava no ônibus. O privilégio por ser homem era perceptível, as pessoas o tratavam melhor. “Os homens passam a ter mais respeito, as mulheres agem normalmente”, explica André. A transição possibilitou a experiência desses dois universos. “É bom ter noção de como funciona esses dois mundos e ver qual a diferença entre eles. E entender que o homem tem muito mais privilégios”.

Procura se encontrar e não deixar que os boicotes venham te prejudicar, embora em alguns momentos seja difícil lidar com eles. “Percebo que tudo gira em torno de um órgão genital e querem te definir mais ou menos homem por isso”. André se sente à vontade usando seu packer[1], mas para ele isso não o define mais homem. “ Me sinto à vontade e uso na maior parte do tempo, é como alguém que perde um braço, eu sinto falta e desde criança sinto falta de algo aqui em baixo, é estranho”.

Quando se reconheceu como homem trans, por volta de 2010, através de um documentário encontrado no Youtube chamado “Meu eu secreto”, André estudou e analisou as possíveis mudanças de seu corpo. Ele estava determinado a enfrentar todas elas, afim de se reconhecer como quem ele realmente é. Por isso, realizou todas as pesquisas necessárias para ‘se encontrar’. “Foi um alívio. Pensei: nossa, que bom que não sou lésbica! Não estou sendo homofóbico, jamais! É que eu nunca me via no meu corpo e aí quando eu descobri que era trans, foi uma libertação”.

“Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe”

Mas só em 2015 André iniciou sua transição. Todo seu tratamento é feito pelo SUS[2] na Vila Mariana, bairro de São Paulo. E lá fez o exame de sangue para analisar a funcionalidade do fígado, já que a testosterona acaba afetando o órgão. Os hormônios influenciaram na sua saúde, passou a ficar menos doente e mais resistente e mexeu também com o apetite sexual.

Passado um ano, usando o medicamento, foi aumentando a libido. “Você pensa: homem é tudo tarado, mas é a testosterona”, tirou o boné enquanto dava risada. O cheiro também se modificou com o passar do tempo, notou sua pele com um toque mais masculino e o cheiro de um menino adolescente. Sua masculinidade o deixava feliz e era nítido até em sua forma de falar.

O medicamento por um curto período foi banido. Descobriram a venda do remédio por homens trans que retiravam no ambulatório e vendiam para aqueles que não tinham cadastro e que passavam também pela transição. Assim eles cortaram a facilidade de retirar e levar para casa. Atualmente, para tomar o medicamento deve-se comparecer no local, seguido de assinatura comprovando a presença do paciente.

Para realizar a cirurgia de mastectomia[3], André não conseguiu pelo SUS. As filas quilométricas o assustaram e o fizeram recorrer a um procedimento fora da lei, em Curitiba. Encontrou um especialista com facilidade no pagamento e não cobrava autorização necessária como na maioria das cirurgias, comprovando se o paciente era homem trans.

Dessa forma conseguiu realizar o seu sonho como ele mesmo define: “fazer a cirurgia com certeza foi um sonho, uma libertação em tirar aquilo lá”. Ele se refere aos seios como uma parte que nunca pertenceu ao seu corpo, então quando conseguiu fazer o procedimento, se libertou e o enxergou da forma que verdadeiramente é.

Os resultados demoraram a aparecer, mesmo depois de três anos de transição. A barba ainda é falhada e os pelos estão crescendo lentamente. O medicamento minoxidil[4] poderia ser uma alternativa, afim de acelerar seu metabolismo e conseguir as transformações desejadas. Mas em seu caso, sua médica o aconselhou a não utilizar. O medicamento poderia afetar o coração e ao invés de ajudá-lo, poderia prejudicar sua saúde.

O seu corpo já está desenvolvido, talvez se tivesse realizado a transição ainda criança, teria adquirido as características masculinas com mais facilidade, porque ainda estaria em fase de crescimento. Mas aos 34 anos, o corpo já tem seu formato e leva mais tempo para as mudanças aparecerem. O conselho que recebeu foi buscar especialistas e fazer exames para a uma cirurgia de retirada do útero, assim os medicamentos se potencializariam e trariam os resultados com mais agilidade.

A muito custo e com a ajuda da empresa onde trabalha, André conseguiu uma médica para atendê-lo. Ao entrar no consultório, a médica o recebeu e estudou o seu caso, questionando algumas informações necessárias para solicitar os exames. Mas, entre um questionamento e outro, ela olha e pergunta: “você acha que vale a pena tudo isso? Esse sofrimento todo, trocar de nome e fazer cirurgia?”. Em seguida, André disparou: “sofrimento era antes, hoje isso aqui é um alívio para mim”.

Os obstáculos existiam por toda parte. Ele se deparou com inúmeras situações constrangedoras e, quando foi fazer os exames, não foi diferente. Chegando no laboratório indicado, foi até a recepcionista, entregou seus documentos, ela o mediu com os olhos e disse “não tem nenhuma consulta marcada com esse nome”. André questionou: “como não, eu agendei”. Ela averiguou mais uma vez para ter certeza “quem é fulana? É você? ”.

Na hora o sangue subiu pelo corpo de André que disse: “olha não é mais meu nome, meu nome agora é André”. Só depois de algumas ameaças, ela o encaminhou para outra atendente. Ao se direcionar a ela e explicar a situação, foi ainda pior, pois ela falava em alto e bom som: “quem é essa mulher?”. Já irritado, André passou a ser duro com as palavras, não teria como ser gentil em uma situação como aquela, ainda assim ela não se calou. “Você vai no espaço para mulher, tá? ”, disse a atendente. A essa altura ela estava gritando e todos olhavam para eles, sem entender o motivo da gritaria. André se retirou e foi até o espaço mulher e para o seu alívio não tinha só mulheres, alguns homens acompanhavam suas esposas e isso o deixou menos constrangido e mais seguro. Chamaram seu nome e entrou na sala. Duas meninas cordeais o receberam e fizeram nele o exame de ultrassom. Elas o trataram com respeito, da maneira desejada por ele.

André mora com a mãe atualmente. Foi casado durante alguns anos com uma mulher. Ainda não tinha iniciado sua transição, quando o relacionamento estava prestes a terminar, ele estava iniciando o tratamento.

Hoje ainda é um obstáculo quando o assunto é relacionamento, “Não consigo me relacionar com ninguém, a maioria só me procura por curiosidade não porque gosta e também pela minha não aceitação com meu corpo”. Os aplicativos de relacionamento não foram boas experiências para ele. Quando o match[5] acontece e André fala que é homem trans, os matchs se desfazem. Inúmeras vezes passou por isso. Já existe um aplicativo nos Estados Unidos voltado as pessoas trans. “Eu acho ridículo, porque somos seres humanos e outras pessoas também se interessam por nós”.

“É preciso paz pra poder sorrir”

Voltamos ao Joy, que ganha a cena novamente. Ele latia sem parar e corria pela grama olhando em direção das árvores em cima de um morro atrás de onde sentamos. Se soltou da coleira e correu até alcançar o alto, com latidos incessantes e andando para todos os lados com suas patinhas ligeiras, tão pequenas que parecia impossível tamanha velocidade. Passados alguns minutos, conseguimos visualizar o que tanto o incomodava, a presença de um urubu voando por entre as árvores. O pássaro voou para longe, não o vimos mais e o pequeno cachorro foi se acalmando e latindo mais devagar, mas ainda olhando na direção para, se caso a ave voltasse, ele estaria mais perto para alcançá-lo. Mas, perdeu as esperanças e veio descendo em nossa direção e logo se dispersou com uma nova pinha que encontrou no caminho. Deitou sobre a grama e voltou a sua diversão.

A conversa voltou a fluir, todos descontraídos e envolvidos em cada detalhe de sua história. Em meio a todo mundo de caos em que muitas vezes ele mesmo diz, encontra sua paz e serenidade quando coloca seus pés descalços sobre a grama e pode se despir de todas suas angustias. A estrada velha de santos é o lugar onde pode sentir seu contato com Deus, natureza e eu interior.

Ao fundo, o seu celular inicia as notas de sua música preferida, brincar de viver de Maria Bethania. “Ela fala muito do lado espiritual, sobre reencarnar”, arrisca cantar algumas frases da música para identificarmos a letra e melodia. “Pra retornar e enfrentar o dia-a-dia, reaprender a sonhar”. Sorria e o semblante transmitia serenidade a sensação que a música o trazia pairou sobre o ar.

E em meio a todas as perguntas direcionadas a ele. Notamos em seu semblante o sentimento que o dominava ao responder. E quando perguntamos “Quem é a pessoa que mais ama? ”. Não levou nem um segundo para responder. Como se estivesse a todo momento esperando aquela pergunta. Nos disse “Joy”. Sorriu e passou a mão sobre os pelos marrons do pequeno cachorro. Que estava deitado em seus pés.

O amor de André, dedicação e atenção hoje tem nome. Joy. É quem o fortalece e motiva para dias mais leves e melhores. Quando está em silêncio despido de todas as amarras e dores. Joy está contigo. Em momentos alegres e de realizações. Ele está ao seu lado. É onde encontra refúgio e força. Paz e acalanto. Em quem pode confiar e ser quem é. Não existe dor, tristeza e medo. Só amor.

Ser quem ele é, hoje é o seu maior desafio. Provar que a sua existência não fere a ninguém e que ser ferido, também não é o caminho.

[1] Prótese peniana
[2] Sistema único de saúde
[3] Cirurgia de retirada da mama
[4] Medicamento hormonal que estimula o crescimento dos pelos.
[5] Dar Match nesse aplicativo, significa que uma pessoa curtiu a outra. Após isso acontecer automaticamente abre o bate papo para iniciar a conversa.

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Crédito das imagens: Thales Manzano

Capítulo do livro: “Sempre foi ele: histórias de homens trans”

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