Os cemitérios estão vivos

publicado na Ed_07_abr/jun.2018 por , e

A primeira vez que coloquei meus pés em um cemitério, não foi por vontade própria. Lembro-me da sensação de não querer voltar nunca mais naquele lugar e, quanto mais longe estivesse dele, melhor. Infelizmente, tive que voltar outras vezes e sempre pelo mesmo motivo. Aliás, creio que a maioria das pessoas só vai a um cemitério quando se depara com a morte de alguém querido.

Naquela época, não reparei na diversidade dos jazigos e nem na diferença gritante entre um cemitério e outro. E não fazia ideia que existisse uma área de pesquisa acadêmica séria que se dedica exclusivamente a estudar os cemitérios e os seus impactos na sociedade. Nem eu sabia, nem minhas duas companheiras de turma – juntas, fizemos este livro-reportagem sobre cemitérios e suas múltiplas histórias, inclusive História com H maiúsculo.

Começar a estudar um cemitério não é tão fácil, afinal, lidar com a morte é algo delicado, as pessoas estranham, cansamos de ouvir “cemitério? Mas por quê? O que tem de tão interessante lá?”.

Bom, o objetivo dos Estudos Cemiteriais, um dos assuntos deste livro-reportagem, é pesquisar inúmeros aspectos dos cemitérios, da arquitetura às diferenças sociais. Não se limita apenas ao cemitério como um lugar de morte e pesar, vai além (para usar expressão que remete aos céus) e procura entender realmente a diferença cultural, social, histórica e até sanitária destes locais.

Para se ter uma ideia da pertinência e permanência dessas pesquisas, em 2004 foi fundada em Curitiba a Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (ABEC) que reúne historiadores, antropólogos, fotógrafos, sociólogos e jornalistas de todas as partes do país para discutir as novas vertentes dos Estudos Cemiteriais.

Assim, em julho deste ano, aconteceu no Rio de Janeiro a sétima edição do Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais, realizado na UNIRIO. Foi o nosso primeiro contato direto com os pesquisadores de Estudos Cemiteriais e estávamos bastante receosas com o que poderíamos encontrar lá; afinal de contas, o tema nos remete a algo muito sério e contido. Na capital fluminense, aproveitamos também para visitar o famoso cemitério São João Batista, conforme contaremos no livro-reportagem.

Durante o encontro, ao contarmos que era a nossa primeira vez num evento daqueles, fomos recebidas com um grande sorriso e um aviso:

— O pessoal aqui não é muito normal, viu?

Durante três dias, tivemos a boa perspectiva de como os Estudos Cemiteriais vem crescendo no Brasil. Em Ponta Grossa, por exemplo, será fundado em breve o Museu Haas, o primeiro museu fúnebre do país. A cidade que sediará o museu fica próxima à capital paranaense, Curitiba.

Mas as pesquisas vão de Norte a Sul do país, explorando não apenas o curioso e o mórbido, mas de fato as histórias por trás dos túmulos, como os relatos sobre as mortes no garimpo de diamantes na Serra do Tepequém, em Roraima, ou a análise sobre os rituais fúnebres católicos de Uberlândia, Minas Gerais, nos séculos 19 e 20.

O leitor ainda pode estar achando meio estranho falar sobre esse lugar presumivelmente tão mórbido, mas o cemitério ainda provoca outras grandes questões a serem discutidas, como o alto custo de jazigos e enterros — você sabia que uma família pode ter que desembolsar mais de 30 mil reais para pagar um jazigo?

Em cemitérios luxuosos ainda é possível escolher o tipo de velório, com várias denominações ainda mais exclusivas, entre elas, o velório tipo luxo e o superluxo. Enquanto isso, em outros cemitérios, a única opção é um caixão de ripas de madeira.

A ideia deste livro-reportagem é mostrar essas e outras vertentes do mundo dos cemitérios e das pesquisas sobre eles. Nesse sentido é que afirmamos: os cemitérios de fato exalam vida, ou pelo menos alimentam a memória dos vivos, processo interessante o suficiente para despertar a curiosidade de historiadores, sociólogos, antropólogos e muitos outros, entre os quais, claro, os jornalistas — no caso específico deste livro-reportagem, três graduandas concluindo o curso e curiosíssimas com os mistérios bem palpáveis dos campos santos.

“Soluços, lágrimas, casa armada, veludo preto nos portais, um homem que veio vestir o cadáver, outro que tomou a medida do caixão, caixão, essa, tocheiros, convites, convidados que entravam, lentamente, a passo surdo, e apertavam a mão à família, alguns tristes, todos sérios e calados, padre e sacristão, rezas, aspersões d’água benta, o fechar do caixão a prego e martelo, seis pessoas que o tomam da essa, e o levantam, e o descem a custo pela escada, não obstante os gritos, soluços e novas lágrimas da família, e vão até o coche fúnebre, e o colocam em cima e traspassam e apertam as corrêas, o rodar do coche, o rodar dos carros, um a um… Isto que parece um simples inventário, eram notas que eu havia tomado para um capítulo triste e vulgar que não escrevo.”

Capítulo 45, “Notas”, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis.

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Crédito da imagem: CC0 Creative Commons

Capítulo do livro:Desenterrando a História

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