Os Sertões – A terra

publicado na Ed_10_jan/mar.2019 por
Preliminares

O Planalto Central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e desata‑se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas. Mas ao derivar para as terras setentrionais diminui gradualmente de altitude, ao mesmo tempo que descamba para a costa oriental em andares, ou repetidos socalcos, que o despem da primitiva grandeza afastando‑o consideravelmente para o interior.

De sorte que quem o contorna, seguindo para o norte, observa notáveis mudanças de relevos: a principio o traço contínuo e dominante das montanhas, precintando‑o, com destaque saliente, sobre a linha projetante das praias; depois, no segmento de orla marítima entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, um aparelho litoral revolto, feito da envergadura desarticulada das serras,   riçado de cumeadas e corroído de angras, e escancelando‑se em baias, repartindo‑se em ilhas, e desagregando‑se em recifes desnudos, à maneira de escombros do conflito secular que ali se trava entre os mares e a terra; em seguida, transposto o 15° paralelo, a atenuação de todos os acidentes — serranias que se arredondam e suavizam as linhas dos taludes, fracionadas em morros de encostas indistintas no horizonte que se amplia; até que em plena faixa costeira da Bahia, o olhar, livre dos anteparos de serras que até lá o repulsam e abreviam, se dilata em cheio para o ocidente, mergulhando no âmago da terra amplíssima lentamente emergindo num ondear longínquo de chapadas…

Este facies geográfico resume a morfogenia do grande maciço continental.

Demonstra‑o análise mais íntima feita por um corte meridiano qualquer, acompanhando à bacia do S. Francisco.

Vê‑se, do fato, que três formações geognósticas díspares, de idades mal determinadas, aí se substituem, ou se entrelaçam, em estratificações discordantes, formando o predomínio exclusivo de umas, ou a combinação de todas, os traços variáveis da fisionomia da terra. Surgem primeiro as possantes massas gnaissegraníticas, que a partir do extremo sul se encurvam em desmedido anfiteatro, alteando as paisagens admiráveis que tanto encantam e iludem as vistas inexpertas dos  forasteiros. A princípio abeiradas do mar progridem em sucessivas cadeias, sem rebentos laterais, até as raias do litoral paulista, feito dilatado muro de arrimo sustentando as formações sedimentárias do interior. A terra sobranceia o oceano, dominante, do fastígio das escarpas; e quem a alcança como quem vinga a rampa de um majestoso palco, justifica todos os exageros descritivos — do gongorismo de Rocha Pita às extravagâncias geniais de Buckle — que fazem deste país região privilegiada, onde a natureza armou a sua mais portentosa oficina.

É que, de feito, sob o tríplice aspecto astronômico, topográfico e geológico a nenhuma se afigura tão afeiçoada à Vida.

Transmontadas as serras, sob a linha fulgurante do trópico, vêem‑se, estirados para o ocidente e norte, extensos chapadões cuja urdidura de camadas horizontais de grés argiloso, intercaladas de emersões calcárias, ou diques de rochas eruptivas básicas, do mesmo passo lhes explica a exuberância sem par e as áreas complanadas e vastas. A terra atrai irresistivelmente o homem, arrebatando‑o na própria correnteza dos rios que, do Iguaçu ao Tietê, traçando originalíssima rede hidrográfica, correm da costa para os sertões, como se nascessem nos mares e canalizassem as suas energias eternas para os recessos das matas opulentas. Rasgam facilmente aqueles estratos em traçados uniformes, sem talvegues deprimidos, e dão ao conjunto dos terrenos até além do Paraná a feição de largos plainos ondulados, desmedidos.

Entretanto, para leste a natureza é diversa.

Estereografa‑se, duramente, nas placas rígidas dos afloramentos gnáissicos; e o talude dos planaltos dobra‑se do socalco da Mantiqueira, onde se encaixa o Paraíba, ou desfaz‑se em rebentos que, após apontarem as alturas de píncaros centralizados pelo Itatiaia, levam até o âmago de Minas as paisagens alpestres do litoral. Mas ao penetrar‑se este Estado nota‑se, malgrado o tumultuar das serranias, lenta descensão geral para o norte. Como nos altos chapadões de São Paulo e do Paraná, todas as caudais revelam este pendor insensível com derivarem em leitos contorcidos e vencendo, contrafeitas, o antagonismo permanente das montanhas: o rio Grande rompe, rasgando‑a com a força viva da corrente, a serra da Canastra, e, norteados pela meridiana, abrem‑se adiante os fundos vales de erosão do rio das Velhas e do S. Francisco. Ao mesmo tempo, transpostas as sublevações que vão de Barbacena a Ouro Preto, as formações primitivas desaparecem, mesmo nas maiores eminências, e jazem sotopostas a complexas séries de xistos metamórficos, infiltrados de veeiros fartos, nas paragens lendárias do ouro.

A mudança estrutural origina quadros naturais mais imponentes que os da borda marítima. A região continua alpestre. O caráter das rochas, exposto nas abas dos cerros de quartzito, ou nas grimpas em que se empilham as placas do itacolomito avassalando as alturas, aviva todos os acidentes, desde os maciços que vão de Ouro Branco a Sabará, à zona diamantina expandindo‑se para nordeste nas chapadas que se desenrolam nivelando‑se às cimas da serra do Espinhaço; e esta, apesar da sugestiva denominação de Eschwege, mal sobressai, entre aquelas lombadas definidoras de uma situação dominante. Dali descem, acachoantes, para o levante, tombando em catadupas ou saltando “travessões” sucessivos, todos os rios que do Jequitinhonha ao  Doce procuram os terraços inferiores do planalto arrimados à serra dos Aimorés; e volvem águas remansadas para o poente os que se destinam à bacia de captação do S. Francisco, em cujo vale, depois de percorridas ao sul as interessantes formações calcárias do rio das Velhas, salpintadas de lagos, solapadas de sumidouros e ribeirões subterrâneos, onde se abrem as cavernas do homem pré‑histórico de Lund, se acentuam outras transições na contextura superficial do solo.

De fato, as camadas anteriores, que vimos superpostas às rochas graníticas, decaem, por sua vez sotopondo‑se a outras, mais modernas de espessos estratos de grés.

Novo horizonte geológico reponta com um traço original e interessante. Mal estudado embora, caracteriza‑o notável significação orográfica, porque as cordilheiras dominantes do sul ali se extinguem, soterradas, numa inumação estupenda, pelos possantes estratos mais recentes, que as circundam. A terra, porém, permanece elevada, alongando‑se em planuras amplas, ou avultando em falsas montanhas de denudação, descendo em aclives fortes, mas tendo os dorsos alargados em plainos inscritos num horizonte de nível, apenas apontoado a leste pelos vértices dos albardões distantes, que perlongam a costa.

Verifica‑se. assim, a tendência para um aplainamento geral.

Porque, neste coincidir das terras altas do interior e a depressão das formações arqueanas, a região montanhosa de minas se vai prendendo, sem ressaltos, à extensa zona dos tabuleiros do norte.

A serra do Grão Mogol raiando as lindes da Bahia, é o primeiro espécimen dessas esplêndidas chapadas imitando cordilheiras, que tanto perturbam aos geógrafos descuidados; e as demais que a convizinham, da do Cabral mais próxima, à da Mata da Corda alongando‑se para Goiás, modelam‑se de maneira idêntica. Os sulcos de erosão que as retalham são cortes geológicos expressivos. Ostentam em plano vertical, sucedendo‑se a partir da base, as mesmas rochas que vimos substituírem em alongado roteiro pela superfície: embaixo os rebentos graníticos decaídos pelo fundo dos vales, em cômoros esparsos; à meia encosta, inclinadas, as placas xistosas mais recentes; no alto, sobrepujando‑as, ou circuitando‑lhes os flancos em vales monoclínicos, os lençóis de grés, predominantes e oferecendo aos agentes meteóricos plasticidade admirável aos mais caprichosos modelos. Sem linhas de cumeadas, as maiores serranias nada mais são que planuras altas, extensas rechãs terminando de chofre em encostas abruptas, na molduragem golpeante do regímen torrencial sobre o terreno permeável e móvel. Caindo por ali há séculos as fortes enxurradas, derivando a princípio em linhas divagantes de drenagem, foram pouco a pouco reprofundando‑as, talhando‑as em quebradas que se fizeram cañons, e se fizeram vales em declive, até orlarem de escarpamentos e despenhadeiros aqueles plainos soerguidos. E consoante a resistência dos materiais trabalhados variaram nos aspectos: aqui apontam, rijamente, sobre as áreas de nível, os últimos fragmentos das rochas enterradas, desvendando‑se em fraguedos que mal relembram, na altura, o antiqüíssimo “Himalaia brasileiro”, desbarrancado, em desintegração contínua, por todo o curso das idades; adiante, mais caprichosos, se escalonam em alinhamentos incorretos de menires colossais, ou em círculos enormes, recordando na disposição dos grandes blocos superpostos, em rimas, muramentos desmantelados de ciclópicos coliseus em ruínas ou então, pelos visos das escarpas, oblíquos e sobreanceando as planuras que, interopostos, ladeiam, lembram aduelas desconformes, restos da monstruosa abóbada da antiga cordilheira, desabada…

Mas desaparecem de todo em vários pontos.

Estiram‑se então planuras vastas. Galgando‑as pelos taludes, que as soerguem dando‑lhes a aparência exata de tabuleiros suspensos, topam‑se, a centenas de metros, extensas áreas ampliando‑se, boleadas, pelos quadrantes, numa prolongação indefinida, de mares. É a paragem formosíssima dos campos gerais, expandida em chapadões ondulantes —grandes tablados onde campeia a sociedade rude dos vaqueiros…

Atravessêmo-la.

Adiante, a partir de Monte Alto, estas conformações naturais se bipartem: no rumo firme do norte a série do grés figura‑se progredir até ao plateau arenoso do Açuruá, associando‑se ao calcário que aviva as paisagens na orla do grande rio, prendendo‑as às linhas dos cerros talhados em diáclase, tão bem expressos no perfil fantástico do Bom Jesus da Lapa; enquanto para nordeste, graças a degradações intensas (porque a serra Geral segue por ali como anteparo aos alísios, condensando‑os em diluvianos aguaceiros), se desvendam, ressurgindo, as formações antigas.

Desenterram‑se as montanhas.

Reponta a região diamantina, na Bahia, revivendo inteiramente a de Minas, como um desdobramento ou antes um prolongamento, porque é a mesma formação mineira rasgando, afinal, os lençóis de grés, e alteando‑se com os mesmos contornos alpestres e perturbados, nos alcantis que irradiam da Tromba ou avultam para o norte nos xistos huronianos das cadeias paralelas de Sincorá.

Deste ponto em diante, porém, o eixo da serra Geral se fragmenta, indefinido. Desfaz‑se. A cordilheira eriça‑se de contrafortes e talhados de onde saltam, acachoando, em despenhos, para o levante, as nascentes do Paraguaçu, e um dédalo de serranias tortuosas, pouco elevadas mas inúmeras, cruza‑se embaralhadamente sobre o largo dos gerais, cobrindo‑os. Transmuda‑se o caráter topográfico, retratando o desapoderado embater dos elementos, que ali reagem há milênios entre montanhas derruídas, e a queda, até então gradativa, dos planaltos começa a derivar em desnivelamentos consideráveis. Revela‑os o S. Francisco, no vivo infletir com que torce para o levante, indicando do mesmo passo a transformação geral da região.

Esta é mais deprimida e mais revolta.

Cai para os terraços inferiores, entre um tumultuar de morros, incoerentemente esparsos. Último rebento da serra principal, a da Itiúba reúne‑lhe alguns galhos indecisos, fundindo as expansões setentrionais das da Furna, Cocais e Sincorá. Alteia‑se um momento, mas descai logo para todos os rumos: para o norte, originando a corredeira de quatrocentos quilômetros à jusante do Sobradinho; para o sul, em segmentos dispersos que vão até além do Monte Santo; e para leste, passando sob as chapadas de Jeremoabo, até se desvendar no salto prodigioso de Paulo Afonso.

E o observador que seguindo este itinerário deixa as paragens em que se revezam, em contraste belíssimo, a amplitude dos gerais e o fastígio das montanhas, ao atingir aquele ponto estaca surpreendido…

 A entrada do sertão

Está sobre um socalco do maciço continental, ao norte.

Demarca‑o de uma banda, abrangendo dois quadrantes, em semicírculo, o rio de S. Francisco: e de outra, encurvando também para sudeste, numa normal a direção primitiva, o curso flexuoso do Itapicuru‑açu. Segundo a mediana, correndo quase paralelo entre aqueles, com o mesmo descambar expressivo para a costa, vê-se o traço de um outro rio, o Vaza‑Barris, o Irapiranga dos tapuias, cujo trecho de Jeremoabo para as cabeceiras é uma fantasia de cartógrafo. De fato, no estupendo degrau, por onde descem para o mar ou para jusante de Paulo Afonso as rampas esbarrancadas do planalto, não há situações de equilíbrio para uma rede hidrográfica normal. Ali reina a drenagem caótica das torrentes, a naquele da Bahia facies excepcional e selvagem.

 Terra ignota

Abordando‑o, compreende‑se que até hoje escasseiem sobre tão grande trato de território, que quase abarcaria a Holanda (9º 11’ — 10º 20’ de lat. e 4° —  3° de long. O.R.J. ), notícias exatas ou pormenorizadas. As nossas melhores cartas, enfeixando informes escassos, lá têm um claro expressivo, um hiato, Terra ignota, em que se aventura o rabisco de um rio problemático ou idealização de uma corda de serras.

E que transpondo o Itapicuru, pelo lado do sul, as mais avançadas turmas de povoadores estacaram em vilarejos minúsculos — Maçacará, Cumbe ou Bom Conselho — entre os quais o decaído Monte Santo tem visos de cidade: transmontada a Itiúba, a sudoeste, disseminaram‑se pelos povoados que a abeiram acompanhando insignificantes cursos de água, ou pelas raras fazendas de gado, estremados todos por uma tapera obscura — Uauá, ao norte e a leste pararam às margens do S. Francisco, entre Capim Grosso e Santo Antônio da Glória.

Apenas naquele último rumo se avantajou uma vila secular, Jeremoabo, batizando o máximo esforço de penetração em tais lugares, evitados sempre pelas vagas humanas, que vinham do litoral baiano procurando o interior.

Uma ou outra o cortou, rápida, fugindo, sem deixar traços.

Nenhuma lá se fixou. Não se podia fixar. O estranho território, a menos de quarenta léguas da antiga metrópole, predestinava‑se a atravessar absolutamente esquecido os quatrocentos anos da nossa história. Porque enquanto as bandeiras do sul lhe paravam à beira e envesgando, depois, pelos flancos da Itiúba, se lançavam para Pernambuco e Piauí até o Maranhão as do levante, repelidas pela barreira intransponível de Paulo Afonso, iam procurar, no Paraguaçu e rios que lhe demoram ao sul, linhas de acesso mais praticáveis, Deixavam‑no de permeio, inabordável, ignoto.

É que mesmo trilhando o último daqueles rumos, adstritas a itinerário menos longo, as salteava impressionadoramente o aspecto estranho da terra repontando em transições imprevistas.

Deixando a orla marítima e seguindo em cheio para o ocidente, tinham, transcorridas poucas léguas, amolentada ou desinfluída a atração das “entradas” aventurosas, e extinta a miragem do litoral opulento. Logo a partir de Camassari as formações antigas cobrem‑se de escassas manchas terciárias, alternando com exíguas bacias cretáceas, revestidas do terreno arenoso de Alagoinhas que mal esgarçam, a leste, as emersões calcárias de Inhambupe. A vegetação em roda transmuda‑se, copiando estas alternativas com a precisão de um decalque. Rarefazem‑se as matas, ou empobrecem. Extinguem‑se, por fim, depois de lançarem rebentos esparsos pelo topo das serranias; e estas mesmo, aqui e ali, cada vez mais raras, ilham‑se ou avançam em promontório nas planuras desnudas dos campos, onde uma flora característica — arbustos flexuosos entrechassados de bromélias rubras — prepondera exclusiva em largas áreas, mal dominada pela vegetação vigorosa irradiante da Pojuca sobre o massapé feraz das camadas cretáceas decompostas.

Deste lugar em diante, reaparecem os terrenos terciários esterilizadores, sobre os mais antigos que, entretanto, depois, dominam em toda a zona centralizada em Serrinha. Os morros do Lopes e do Lajedo aprumam‑se, à maneira de disformes pirâmides de blocos arredondados e lisos; e os que se sucedem, beirando de um e outro lado as abas das serras da Saúde e da Itiúba, até Vila Nova da Rainha e Juazeiro, copiam‑lhes os mesmos contornos das encostas estaladas, exumando a ossatura partida das montanhas.

O observador tem a impressão de seguir torneando a truncadura malgradada da borda de um planalto.

Calca, de fato, estrada três vezes secular, histórica vereda por onde avançavam os rudes sertanistas nas suas excursões para o interior.

Não a alteraram nunca.

Não a variou, mais tarde, a civilização, justapondo aos rastos do bandeirante os trilhos de uma via férrea.

Porque o caminho em cuja longura de cem léguas, da Bahia ao Juazeiro, se entroncam numerosíssimos desvios para o poente e para o sul, jamais comportou, a partir de seu trecho médio, variante apreciável para leste e para o norte.

Calcando‑o, em demanda do Piauí, Pernambuco, Maranhão e Pará, os povoadores, consoante vários destinos, dividiam‑se em Serrinha. E progredindo para Juazeiro, ou volvendo à direita, pela estrada real do Bom Conselho que, desde o século 17, os levava a Santo Antônio da Glória e Pernambuco — uns e outros contorneavam sempre, evitando‑a sempre, a paragem sinistra e desolada, subtraindo‑se a uma travessia torturante.

De sorte que aquelas duas linhas de penetração, que vão interferir o S. Francisco em pontos afastados — Juazeiro e Santo Antônio da Glória —, formavam, desde aqueles tempos, as lindes de um deserto.

Em caminho para Monte Santo

No entanto quem se abalança a atravessá‑lo, partindo de Queimadas para nordeste, não se surpreende a princípio. Recurvo em meandros, o Itapicuru alenta vegetação vivaz; e as barrancas pedregosas do Jacurici debruam‑se de pequenas matas. O terreno, areento e chão, permite travessia desafogada e rápida. Aos lados do caminho ondulam tabuleiros rasos. A pedra, aflorando em lajedos horizontais, mal movimenta o solo, esgarçando a tênue capa das areias que o revestem.

Vêem‑se, porém, depois, lugares que se vão tornando crescentemente áridos.

Varada a estreita faixa de cerrados, que perlongam aquele último rio, está‑se em pleno agreste, no dizer expressivo dos matutos: arbúsculos quase sem pega sobre a terra escassa, enredados de esgalhos de onde irrompem, solitários, cereus rígidos e salientes, dando ao conjunto a aparência de uma margem de desertos. E o facies daquele sertão inóspito vai‑se esboçando, lenta e impressionadoramente…

Galga‑se uma ondulação qualquer — e ele se desvenda ou se deixa adivinhar, ao longe, no quadro tristonho de um horizonte monótono em que se esbate, uniforme, sem um traço diversamente colorido, o pardo requeimado das caatingas.

Intercorrem ainda paragens menos estéreis, e nos trechos em que se operou a decomposição in situ do granito, originando algumas manchas argilosas, as copas virentes dos ouricurizeiros circuitam — parêntesis breves abertos na aridez geral — as bordas das ipueiras. Estas lagoas mortas, segundo a bela etimologia indígena, demarcam obrigatória escala ao caminhante. Associando‑se às cacimbas e “caldeirões”, em que se abre a pedra, são‑lhe recurso único na viagem penosíssima. Verdadeiros oásis, têm contudo, não raro, um aspecto lúgubre: localizadas em depressões, entre colinas nuas, envoltas pelos mandacarus despidos e tristes, como espectros de árvores; ou num colo de chapada, recortando‑se com destaque no chão poento e pardo, graças à placa verde‑negra das algas unicelulares que as revestem.

Algumas denotam um esforço dos filhos do sertão. Encontram‑se, orlando‑as, erguidos como represas entre as encostas, toscos muramentos de pedra seca. Lembram monumentos de uma sociedade obscura. Patrimônio comum dos que por ali se agitam nas aperturas do clima feroz, vêm em geral, de remoto passado. Delinearam‑nos os que se afoitaram primeiro com as vicissitudes de uma entrada naquelas bandas. E persistem indestrutíveis, porque o sertanejo, por mais escoteiro que siga, jamais deixa de levar uma pedra que calce as suas junturas vacilantes.

Mas transpostos estes pontos — imperfeita cópia das barragens romanas remanescentes na Tunísia — entra‑se outra vez nos areais exsicados. E avançando célere, sobretudo nos trechos em que se sucedem pequenas ondulações, todas da mesma forma e do mesmo modo dispostas, o viajante mais rápido tem a sensação da imobilidade. Patenteiam‑se‑lhe uniformes, os mesmos quadros, num horizonte invariável que se afasta à medida que ele avança. Raras vezes, como no povoado minúsculo de Cansanção, larga emersão de terreno fértil se recama de vegetação virente.

Despontam vivendas pobres; algumas desertas pela retirada dos vaqueiros que a seca espavoriu; em ruínas, outras, agravando todas no aspecto paupérrimo o traço melancólico das paisagens…

Nas cercanias de Quirinquinquá, porem, começa a movimentar‑se o solo. O pequeno sítio ali ereto alevanta-se já sobre alta expansão granítica, e atentando‑se para o norte divisa‑se região diversa — riçada de vales e serranias, perdendo‑se ao longe em grimpas fugitivas. A serra de Monte Santo, com um perfil de todo oposto aos redondos contornos que lhe desenhou o ilustre Martins, empina-se, a pique, na frente, em possante dique de quartzito branco, de azulados tons, em relevo sobre a massa gnáissica que Constitui toda a base do solo. Dominante sobre seu enorme paredão, vincado pelas linhas dos estratos, expostas pela erosão eólia, afigura‑se cortina de muralha monumental. Termina em crista altíssima, estremando‑lhe o desenvolvimento no rumo de 13° NE, a cavaleiro da vila que se lhe erige no sopé. Centraliza um horizonte vasto. Observa‑se, então, que atenuados para o sul e leste, os acidentes predominantes da terra progridem avassalando os quadrantes do norte.

O sítio do Caldeirão, três léguas adiante, ergue‑se à margem dessa sublevação metamórfica; e alcançando‑o, e transpondo entra‑se. afinal, em cheio, no sertão adusto…

Primeiras impressões

 É uma paragem impressionadora

As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regímen torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas, e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando‑lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando‑se ou entrelaçando‑se, repontando duramente a cada passo, mal cobertos por uma flora tolhiça — dispondo‑se em cenários em que ressalta predominante, o aspecto atormentado das paisagens.

Porque o que estas denunciam — no enterroado do chão, no desmantelo dos cerros quase desnudos, no contorcido dos leitos secos dos ribeirões efêmeros, no constrito das gargantas e no quase convulsivo de uma flora decídua embaralhada em esgalhos — é  de algum modo o martírio da terra, brutalmente golpeada pelos elementos variáveis, distribuídos por todas as modalidades climáticas. De um lado a extrema secura dos ares, no estio, facilitando pela irradiação noturna a perda instantânea do calor absorvido pelas rochas expostas às soalheiras, impõe‑lhes a alternativa de alturas e quedas termométricas repentinas: e daí um jogar de dilatações e contrações que as disjunge, abrindo‑as segundo os planos de menor resistência. De outro, as chuvas que fecham, de improviso, os ciclos adurentes das secas, precipitam estas reações demoradas.

As forças que trabalham a terra atacam‑na na contextura íntima e na superfície sem intervalos na ação demolidora, substituindo‑se, com intercadência invariável, nas duas estações únicas da região.

Dissociam-na nos verões queimosos; degradam‑na nos invernos torrenciais. Vão do desequilíbrio molecular, agindo surdamente, à dinâmica portentosa das tormentas. Ligam‑se e completam‑se. E consoante o preponderar de uma e outra, ou o entrelaçamento de ambas, modificam‑se os aspectos naturais. As mesmas assomadas gnáissicas caprichosamente cindidas em planos quase geométricos, à maneira de silhares, que surgem em numerosos pontos, dando, às vezes, a ilusão de encontrar‑se, de repente, naqueles ermos vazios, majestosas ruinarias de castelos — adiante se cercam de fraguedos, em desordem, mal seguros sobre as bases estreitas, em ângulos de queda, incombentes e instáveis, feito loghans oscilantes, ou grandes desmoronamentos de dolmens; e mais longe desaparecem sob acervos de blocos, com a imagem perfeita desses “mares de pedra” tão característicos dos lugares onde imperam os regímens excessivos. Pelas abas dos cerros, que tumultuam em roda — restos de velhíssimas chapadas corroídas —, se derramam, ora em alinhamentos relembrando velhos caminhos de geleiras, ora esparsos a esmo, espessos lastros de seixos e lajens fraturadas, delatando idênticas violências. As arestas dos fragmentos, onde persistem ainda cimentados ao quartzo os cristais de feldspato, são novos atestados desses eleitos físicos e mecânicos que, despedaçando as rochas, sem que se decomponham os seus elementos formadores, se avantajaram ao vagar dos agentes químicos em função dos fatos meteorológicos normais.

Deste modo se tem a cada passo, em todos os pontos, um lineamento incisivo de rudeza extrema. Atenuando‑o em parte, deparam‑se várzeas deprimidas, sedes de antigos lagos, extintos agora em ipueiras apauladas, que demarcam os pousos dos vaqueiros. Recortam‑nas, no entanto, abertos em caixão, os leitos as mais das vezes secos de ribeirões que só se enchem nas breves estações das chuvas. Obstruídos, na maioria, de espessos lastros de blocos entre os quais, fora das enchentes súbitas, defluem tênues fios de água, são uma reprodução completa dos oueds que marginam o Saara. Despontam‑lhes em geral, normais às barrancas, estratos de um talcoxisto azul‑escuro em placas brunidas reverberando a luz em fulgurar metálico — e sobre elas, cobrindo extensas áreas, camadas menos resistentes de argila vermelha, cindidas de veios de quartzo, interceptando‑lhes, discordantes, os planos estratigráficos. Estas últimas formações, silurianas talvez, cobrem de todo as demais à medida que se caminha para NE e apropriam‑se a contornos mais corretos. Esclarecem a gênese dos tabuleiros rasos, que se desatam, cobertos de uma vegetação resistente, de mangabeiras, até Jeremoabo.

Para o norte, porém, inclinam‑se mais fortemente as camadas. Sucedem‑se cômoros despidos, de pendores resvalantes, descaindo em quebradas onde enxurram torrentes periódicas, solapando-os; e pelos seus topos divisam‑se, alinhadas em fileiras, destacadas em lâminas, as mesmas infiltrações quartzosas, expostas pela decomposição dos xistos em que se embebem.

À luz crua dos dias sertanejos aqueles cerros, aspérrimos rebrilham, estonteadoramente — ofuscante, num irradiar ardentíssimo.

As erosões constantes quebram, porém, a continuidade destes estratos que ademais, noutros pontos, desaparecem sob as formações calcárias. Mas o conjunto pouco se transmuda. A feição ruiniforme destas, casa‑se bem a dos outros acidentes. E nos trechos em que elas se estiram, planas, pelo solo, desabrigadas de todo ante a acidez corrosiva dos aguaceiros tempestuosos, crivam‑se, escarificadas, de cavidades circulares e acanaladuras fundas, diminutas mas inúmeras, tangenciando‑se em quinas de rebordos cortantes, em pontas e duríssimos estrepes que impossibilitam as marchas.

Deste modo, por qualquer vereda, sucedem‑se acidentes pouco elevados mas abruptos, pelos quais tornejam os caminhos, quando não se justapõem por muitas légua aos leitos vazios dos ribeirões esgotados. E por mais inexperto que seja o observador — ao deixar as perspectivas majestosas, que se desdobram ao Sul, trocando‑as pelos cenários emocionantes daquela natureza torturada, tem a impressão persistente de calcar o fundo recém‑sublevado de um mar extinto, tendo ainda estereotipada naquelas camadas rígidas a agitação das ondas e das voragens…

Um sonho de geólogo

É uma sugestão empolgante.

Acompanha-se de bom grado a um naturalista algo romântico imaginando-se que por alli turbilhonaram, largo tempo, na edade terciaria, as vagas e as correntes.

Porque, a despeito da escassez de dados permitindo uma dessas profecias retrospectivas, no dizer elegante de Huxley, capaz de esboçar a situação daquela zona em idades remotas, todos os caracteres que sumariamos reforçam a concepção aventurosa.

Alentam‑na ainda: o estranho desnudamento da terra; os alinhamentos notáveis em que jazem os materiais fraturados, orlando, em verdadeiras curvas de nível, os flancos das serranias; as escarpas dos tabuleiros terminando em taludes a prumo, que recordam falaises; e, até certo ponto, os restos da fauna pliocena, que fazem dos caldeirões enormes ossuários de mastodontes, cheios de vértebras caldeirões desconjuntadas e partidas, como se ali a vida fosse, de chofre, salteada e extinta pelas energias revoltas de um cataclismo.

Há também a presunção derivada de situação anterior, exposta em dados positivos. As pesquisas de Fred. Hartt, de fato, estabelecem, nas terras circunjacentes a Paulo Afonso, a existência de inegáveis bacias cretáceas; e sendo os fósseis que as definem idênticos aos encontrados no Peru e México, e contemporâneos dos que Agassiz descobriu no Panamá — todos estes elementos se acolchetam no deduzir‑se que vasto oceano cretáceo rolou as suas ondas sobre as terras fronteiras das duas Américas, ligando o Atlântico ao Pacífico. Cobria, assim, grande parte dos Estados setentrionais brasileiros, indo bater contra os terraços superiores dos planaltos, onde extensos depósitos sedimentários denunciam idade mais antiga, o paleozóico médio.

Então, destacadas das grandes ilhas emergentes, as grimpas mais altas das nossas cordilheiras mal apontavam ao norte, na solidão imensa das águas…

Não existiam os Andes o Amazonas, largo canal entre altiplanuras das Guianas e as do continente, separava‑as, ilhadas. Para as bandas do sul o maciço de Goiás — o mais antigo do mundo — segundo a dedução dedução de Gerber, o de Minas e parte do Planalto Paulista, onde fulgurava, em plena atividade, o vulcão de Caldas, constituíam o núcleo do continente futuro…

Porque se operava lentamente uma sublevação geral: as Nassas graníticas alteavam‑se ao norte arrastando o conjunto geral das terras numa rotação vagarosa em torno de um eixo, imaginado por Em. Liais entre os chapadões de Barbacena e a Bolívia. Simultaneamente ,ao abrir‑se a época terciária, se realiza o fato prodigioso do alevantamento dos Andes; novas terras afloram nas águas: tranca‑se, num extremo, o canal amazônico, transmudando‑se no maior dos rios; ampliam‑se os arquipélagos esparsos, e ganglionam‑se em istmos, e fundem‑se; arredondam‑se, maiores, os contornos das costas; e integra‑se lentamente, a América.

Então os terrenos da extrema setentrional da Bahia, que se resumiam nos cachopos de quartzito de Monte Santo e visos de Itiúba, esparsos pelas águas, avolumaram‑se, num ascender contínuo. Elas nesse vagaroso altear-se, enquanto as regiões mais altas recém‑desvendadas, se salpintavam de lagos, toda a parte média daquela escarpa permanecia imersa. Uma corrente impetuosa, de que é forma decaído a atual da nossa costa, enlaçava‑a. E embatendo‑a longamente, domina enquanto o resto do país, ao sul, se erigia já constituído, e corroendo‑a, e triturando‑a, remoinhando para oeste e arrebatando todos os materiais desagregados, modelava aquele recanto da Bahia até que ele emergisse de todo, seguindo o movimento geral das terras, feito informe amontoado de montanhas derruídas.

O regímen desértico ali se firmou, então, em flagrante antagonismo com as disposições geográficas: sobre uma escarpa, onde nada recorda as depressões sem escoamento dos desertos clássicos.

Acredita‑se que a região incipiente ainda está preparando‑se para a Vida: o líquen ainda ataca a pedra, fecundando a terra. E lutando tenazmente com o flagelar do clima, uma flora de resistência rara por ali entretece a trama das raízes, obstando, em parte, que as torrentes arrebatem todos os princípios exsolvidos — acumulando‑os pouco a pouco na conquista da paragem desolada cujos contornos suaviza — sem impedir, contudo, nos estios longos, as insolações inclementes e as águas selvagens, degradando o solo.

Daí a impressão dolorosa que nos domina ao atravessarmos aquele ignoto trecho do sertão — quase um deserto — quer se aperte entre as dobras de serranias nuas ou se estire, monotonamente, em descampados grandes…

Capítulo II

Golpe de vista do alto de Monte Santo

Dalto da serra de Monte Santo atentando‑se para a região, estendida em torno num raio de quinze léguas, nota‑se, como num mapa em relevo, a sua conformação orográfica. E vê‑se que as cordas de serras, ao invés de se alongarem para o nascente, medianas aos traçados do Vaza‑Barris e Itapicuru, formando‑lhes o divortium aquarum, progridem para o norte.

Mostram‑no as serras Grande e do Atanásio, correndo, e a princípio distintas, uma para NO e outra para N e fundindo‑se na do Acaru, onde abrolham os mananciais intermitentes do Bendegó e seus tributários efêmeros. Unificadas, aliam‑se às de Caraíbas e do Lopes e nestas de novo se embebem, formando‑se as massas do Cambaio, de onde irradiam as pequenas cadeias do Coxomongó e Calumbi, e para o noroeste os píncaros torreantes do Caipã. Obediente à mesma tendência, a do Aracati, lançando‑se a NO, à borda dos tabuleiros de Jeremoabo, progride, descontínua, naquele rumo e, depois de entalhada pelo Vaza‑Barris em Cocorobó, inflete para o poente, repartindo‑se nas da Canabrava e Poço‑de‑Cima, que a prolongam. Todas traçam, afinal, elítica curva fechada ao sul por um morro, o da Favela, em torno de larga planura ondeante onde se erigia o arraial de Canudos — e daí para o norte, de novo se dispersam e decaem até acabarem em chapadas altas à borda do S. Francisco.

Deste modo, no ascender para o norte, procurando o chapadão que o Parnaíba escava, aquele talude dos planaltos parece dobrar‑se num ressalto, perturbando toda a área de drenagem do S. Francisco abaixo da confluência do Patamuté, num traçado de torrentes sem nome, inapreciáveis na mais favorável escala, e impondo ao Vaza‑Barris um curso tortuoso do qual ele se liberta em Jeremoabo, ao infletir para a costa.

Este é um rio sem afluentes. Falta‑lhe conformidade com o declive da terra. Os seus pequenas tributários, o Bendegó e Caraíbas, volvendo águas transitórias, dentro dos leitos rudemente escavados, não traduzem as depressões do solo. Têm a existência fugitiva das estações chuvosas. São, antes, canais de esgotamento, abertos a esmo pelos enxurros — ou correntes velozes que, adstritas aos relevos topográficos mais próximos, estão, não raro, em desarmonia com as disposições orográficas gerais. São rios que sobem. Enchem‑se de súbito; transbordam; reprofundam os leitos, anulando o obstáculo do declive geral do solo; rolam por alguns dias para o rio principal; e desaparecem, volvendo ao primitivo aspecto de valos em torcicolos, cheios de pedras, e secos.

O próprio Vaza‑Barris, rio sem nascentes em cujo leito viçam gramíneas e pastam os rebanhos, não teria o traçado atual se corrente perene lhe assegurasse um perfil de equilíbrio através de esforço contínuo e longo. A sua função como agente geológico é revolucionária. As mais vezes cortado, fracionando‑se em gânglios estagnados, ou seco, à maneira de larga estrada poenta e tortuosa, quando cresce, empanzinado, nas cheias, captando as águas selvagens que estrepitam nos pendores, volve por algumas semanas águas barrentas e revoltas, extinguindo‑se logo em esgotamento completo, vazando, como o indica o dizer português, substituindo‑lhe com vantagem a antiga denominação indígena. É uma onda tombando das vertentes da Itiúba, multiplicando a energia da corrente no apertado dos desfiladeiros, e correndo veloz entre barrancos, ou entalada em serras, até Jeremoabo

Vimos como a natureza, em roda, lhe imita o regímen brutal — calcando‑o em terreno agro, sem os cenários opulentos das serras e dos tabuleiros ou dos sem‑fins das chapadas — mas feito um misto em que tais disposições naturais se baralham, em confusão pasmosa: planícies que de perto revelam séries de cômoros, retalhados de algares; morros que o contraste das várzeas faz de grande altura e estão poucas dezenas de metros sobre o solo, e tabuleiros que em sendo percorridos mostram a acidentação caótica de boqueirões escancelados e brutos. Nada mais dos belos efeitos das denudações lentas, no remodelar os pendores, no despertar os horizontes e no desatar —  amplíssimos   —   os gerais pelo teso das cordilheiras, dando aos quadros naturais a encantadora grandeza de perspectivas em que o céu e a terra se fundem em difusão longínqua e surpreendedora de cores…

Entretanto, inesperado quadro esperava o viandante que subia, depois desta travessia em que supõe pisar escombros de terremotos, as ondulações mais próximas de Canudos.

Do alto da Favela

Galgava o topo da Favela. Volvia em volta o olhar para abranger de um lance o conjunto da terra. E nada mais divisava recordando‑lhe os cenários contemplados. Tinha na frente a antítese do que vira. Ali estavam os mesmos acidentes e o mesmo chão, embaixo, fundamente revolto, sob o indumento áspero dos pedregais e caatingas estonadas… Mas a reunião de tantos traços incorretos e duros — arregoados divagantes de algares, sulcos de despenhadeiros, socavas de bocainas, criava‑lhe perspectiva inteiramente nova. E quase compreendia que os matutos crendeiros de imaginativa ingênua, acreditassem que “ali era o céu…”.

O arraial, adiante e embaixo, erigia‑se no mesmo solo perturbado. Mas vistos daquele ponto, de permeio a distância suavizando‑lhes as encostas e aplainando‑os  —  todos os serrotes breves e inúmeros, projetando‑se em plano inferior e estendendo‑se, uniformes, pelos quadrantes, davam‑lhe a ilusão de uma planície ondulante e grande.

Em roda uma elipse majestosa de montanhas…

A Canabrava, a nordeste, de perfil abaulado e simples; a do Poço de cima, próxima, mas íngreme e alta; a de Cocorobó, no levante, ondulando em seladas, dispersa em esporões; as vertentes retilíneas do Calumbi ao sul; as grimpas do Cambaio, no correr para o poente; e, para o norte, os contornos agitados do Caipã —ligam‑se e articulam‑se no infletir gradual traçando, fechada, a curva desmedida.

Vendo ao longe, quase de nível, trancando‑lhe o horizonte, aquelas grimpas altaneiras, o observador tinha a impressão alentadora de se achar sobre plateau elevadíssimo, páramo incomparável repousando sobre as serras.

Na planície rugada, embaixo, mal se lobrigavam os pequenos   cursos d’água, divagando, serpeantes…

Um único se distinguia, o Vaza‑Barris. Atravessava‑a, torcendo-se em meandros. Presa numa dessas voltas via‑se uma depressão maior, circundada de colinas… E atulhando-a, enchendo‑a toda de confusos tetos incontáveis, um acervo enorme  de casebres…

Capítulo III

O clima

Dos breves apontamentos indicados, resulta que os caracteres geológicos e topográficos, a par dos demais agentes físicos, mutuam naqueles lugares as influências  características de modo a não se poder afirmar qual o preponderante.

Se, por um lado, as condições genéticas reagem fortemente  sobre os últimos, estes, por sua vez, contribuíram para o agravamento daquelas; e todas persistem nas influência recíprocas. Deste perene conflito feito num círculo vicioso indefinido, ressalta a dignificação mesológica do local. Não há abrangê‑la em todas modalidades. Escasseiam‑nos as observações às coisas desta terra, com uma inércia cômoda de mendigos fartos.

Nenhum pioneiro da ciência suportou ainda as agruras daquele rincão sertanejo, em prazo suficiente para o definir.

Martius por lá passou, com a mira essencial de observar o aerólito, que tombara à margem do Bendegó e era já, desde 1810, conhecido nas academias européias, graças a F. Mornay e Wollaston. Rompendo, porém, a região selvagem, desertus austral, como a batizou, mal atentou para a teria recamada de uma flora extravagante, sylva horrida, no seu latim alarmado. Os que o antecederam e sucederam palmilharam, ferretoados da canícula, as mesmas trilhas rápidas, de quem foge. De sorte que sempre evitado, aquele sertão, até hoje desconhecido, ainda o será por muito tempo.

O que se segue são vagas conjeturas. Atravessamo‑lo no prelúdio de um estio ardente e, vendo‑o apenas nessa quadra, vimo‑lo sob o pior aspecto. O que escrevemos tem o traço defeituoso dessa impressão isolada, desfavorecida, ademais, por um meio contraposto à serenidade do pensamento, tolhido pelas emoções da guerra. Além disto os dados de um termômetro único e de um aneróide suspeito, misérrimo arsenal científico com que ali lidamos, nem mesmo vagos lineamentos darão de climas que divergem segundo as menores disposições topográficas, criando aspectos díspares entre lugares limítrofes. O de Monte Santo, por ex., que é, ao primeiro comparar, muito superior ao de Queimadas, diverge do dos lugares que lhe demoram ao norte, sem a continuidade que era lícito prever de sua situação intermédia. A proximidade das massas montanhosas torna‑o estável, lembrando um regímen marítimo em pleno continente: escala térmica oscilando em amplitudes insignificantes; firmamento onde a transparência dos ares é completa e a limpidez inalterável; e ventos reinantes, o SE no inverno e o NE no estio —  alternando‑se com rigorismo raro. Mas está insulado. Para qualquer das bandas, deixa‑o o viajante num dia de viagem. Se vai para o norte, salteiam‑no transições fortíssimas: a temperatura aumenta; carrega‑se o azul dos céus; embaciam‑se os ares; e as ventanias rolam desorientadamente de todos os quadrantes  —  ante a tiragem intensa dos terrenos desabrigados, que dali por diante se estiram. Ao mesmo tempo espelha‑se o regímen excessivo: o termômetro oscila em graus disparatados passando, já em outubro, dos dias com 35° à sombra para as madrugadas frias.

No ascender do verão acentua‑se o desequilíbrio. Crescem a um tempo as máximas e as mínimas, até que no fastígio das secas transcorram as horas num intermitir inaturável de dias queimosos e noites enregeladas.

A terra desnuda tendo contrapostas, em permanente conflito, as capacidades emissiva e absorvente dos materiais que a formam, do mesmo passo armazena os ardores das soalheiras e deles se esgota, de improviso. Insola‑se e enregela‑se, em 24 horas. Fere‑a o sol e ela absorve‑lhe os raios, e multiplica‑os e reflete‑os, e refrata‑os, num reverberar ofuscante: pelo topo dos cerros, pelo esbarrancado das encostas, incendeiam‑se as acendalhas da sílica fraturada, rebrilhantes, numa trama vibrátil de centelhas; a atmosfera junto ao chão vibra num ondular vivíssimo de bocas de fornalha em que se pressente visível, no expandir das colunas aquecidas, a efervescência dos ares; e o dia, incomparável no fulgor, fulmina a natureza silenciosa, em cujo seio se abate, imóvel, na quietude de um longo espasmo, a galhada sem folhas da flora sucumbida.

Desce a noite, sem crepúsculo, de chofre — um salto da treva por cima de uma franja vermelha do poente —  e todo este calor se perde no espaço numa irradiação intensíssima, caindo a temperatura de súbito, numa queda única, assombrosa…

Ocorrem, todavia, variantes cruéis. Propelidas pelo nordeste, espessas nuvens, tufando em cúmulos, pairam ao entardecer sobre as areias incendidas. Desaparece o sol e a coluna mercurial permanece imóvel, ou, de preferência, sobe. A noite sobrevém em fogo; a terra irradia como um sol escuro, porque se sente uma dolorosa impressão de faúlhas invisíveis; mas toda a ardência reflui sobre ela, recambiada pelas nuvens. O barômetro cai, como nas proximidades das tormentas; e mal se respira no bochorno inaturável em que toda a adustão golfada pela soalheira se concentra numa hora única da noite.

Por um contraste explicável, este fato jamais sucede nos paroxismos estivais das secas, em que prevalece a intercadência de dias esbraseados e noites frigidíssimas, agravando todas as angústias dos martirizados sertanejos.

Copiando o mesmo singular desequilíbrio das forças que trabalham a terra, os ventos ali chegam, em geral, turbilhonando revoltos, em rebojos largos. E, nos meses em que se acentua, o nordeste grava em tudo sinais que lhe recordam o rumo.

Estas agitações dos ares desaparecem, entretanto, por longos meses; reinando calmarias pesadas   —   ares imóveis sob a placidez luminosa dos dias causticantes. Imperceptíveis exercem‑se, então, as correntes ascensionais dos vapores aquecidos sugando à terra a umidade exígua; e quando se prolongam, esboçando o prelúdio entristecedor da seca, a secura  da atmosfera atinge a graus anormalíssimos.

Higrômetros singulares

Não a observamos através do rigorismo de processos clássicos, mas graças a higrômetros inesperados e bizarros.

Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneio frouxo de tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas se dispunham circulando a um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina.

O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela — braços largamente abertos, face volvida para os céus,   —   um soldado descansava.

Descansava… havia três meses.

Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da mannlicher estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando‑se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar‑se, dias depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, à vala comum de menos de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera do lar desprotegido fizera‑lhe afinal uma concessão: livrara‑o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara‑o ali há três meses — braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes…

E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando‑se em tranqüilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme — o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria   —  lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares.

Os cavalos mortos naquele mesmo dia semelhavam espécimens empalhados, de museus. O pescoço apenas mais alongado e fino, as pernas ressequidas e o arcabouço engelhado e duro.

À entrada do acampamento, em Canudos, um deles, sobre todos, se destacava impressionadoramente. Fora a montada de um valente, o alferes Wanderley; e abatera‑se, morto juntamente com o cavaleiro. Ao resvalar, porém, estrebuchando malferido, pela rampa íngreme, quedou, adiante, à meia encosta, entalado entre fraguedos. Ficou quase em pé, com as patas dianteiras firmes num ressalto da pedra… E ali estacou feito um animal fantástico, aprumado sobre a ladeira, num quase curvetear, no último arremesso da carga paralisada, com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as longas crinas ondulantes…

Quando aquelas lufadas, caindo a súbitas, se compunham com as colunas ascendentes, em remoinhos turbilhonantes, à maneira de minúsculos ciclones, sentia‑se, maior, a exsicação do ambiente adusto: cada partícula de areia suspensa do solo gretado e duro irradiava em todos os sentidos, feito um foco calorífico, a surda combustão da terra.

Fora disto — nas longas calmarias, fenômenos óticos bizarros.

Do topo da Favela, se a prumo dardejava o sol e a atmosfera estagnada imobilizava a natureza em torno, atentando‑se para os descambados, ao longe, não se distinguia o solo.

O olhar fascinado perturbava‑se no desequilíbrio das camadas desigualmente aquecidas, parecendo varar através de um prisma desmedido e intáctil, e não distinguia a base das montanhas, como que suspensas. Então, ao norte da Canabrava, numa enorme expansão dos plainos perturbados, via‑se um ondular estonteador; estranho palpitar de vagas longínquas; a ilusão maravilhosa de um seio de mar, largo, irisado, sobre que caísse, e refrangesse, e ressaltasse a luz esparsa em cintilações ofuscantes…

Capítulo IV

As secas

O sertão de Canudos é um índice sumariando a fisiografia dos sertões do Norte. Resume‑os, enfeixa os seus aspectos predominantes numa escala reduzida. É-lhes de algum modo uma zona central comum.

De fato, a inflexão peninsular, extremada pelo cabo de S. Roque, faz que para ele convirjam as lindes interiores de seis Estados — Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará e Piauí — que o tocam ou demoram distantes poucas léguas.

Desse modo é natural que as vicissitudes climáticas daqueles nele se exercitem com a mesma intensidade, nomeadamente em sua manifestação mais incisiva, definida numa palavra que é o terror máximo dos rudes partícios que por ali se agitam — a seca.

Escusamo‑nos de longamente a estudar, averbando o desbarate dos mais robustos espíritos no aprofundar‑lhe a gênese, tateantes ao través de sem número de agentes complexos e fugitivos. Indiquemos, porém, inscrita num traçado de números inflexíveis, esta fatalidade inexorável.

De fato, os seus ciclos — porque o são no rigorismo técnico do termo —  abrem‑se e encerram‑se com um ritmo tão notável que recordam o desdobramento de uma lei natural, ainda ignorada.

Revelou‑o, pela primeira vez, o senador Tomás Pompeu, traçando um quadro por si mesmo bastante eloqüente, em que os aparecimentos das secas, no século passado e atual, se defrontam em paralelismo singular, sendo de presumir que ligeiras discrepâncias indiquem apenas defeitos de observação ou desvios na tradição oral que as registrou.

De qualquer modo ressalta à simples contemplação uma coincidência repetida bastante para que se remova a intrusão do acaso.

Assim, para citarmos apenas as maiores, as secas de(1710-1711), (1723‑1727), (1736‑1737), (1744‑1745), (1777‑1778), do século 18, se justapõem às de  (1808‑1809 ), ( 1824‑1825 ) (1835‑1837), (1844‑1845), (1877‑1879), do atual.

Esta coincidência, espelhando‑se quase invariável, como se surgisse do decalque de uma quadra sobre outra, acentua‑se ainda na identidade das quadras remansadas e longas que, em ambas, atreguaram a progressão dos estragos.

De fato, sendo, no século passado, o maior interregno de 32 anos (1745‑1777), houve no nosso outro absolutamente igual e, o que é sobremaneira notável, com a correspondência exatíssima das datas (1845‑1877).

Continuando num exame mais íntimo do quadro, destacam‑se novos dados fixos e positivos, aparecendo com um rigorismo de incógnitas que se desvendam. Observa‑se, então, uma cedência raro perturbada na marcha do flagelo, intercortado de intervalos pouco díspares entre nove e doze anos, e sucedendo‑se de maneira a permitirem previsões seguras sobre a sua irrupção.

Entretanto, apesar desta simplicidade extrema nos resultados imediatos, o problema, que se pode traduzir na fórmula aritmética mais simples, permanece insolúvel.

Hipóteses sobre a gênese das secas

Impressionado pela razão desta progressão raro alterada, e fixando‑a um tanto forçadamente em doze anos, um naturalista, o barão de Capanema, teve o pensamento de rastrear nos fatos extraterrestres, tão característicos pelos períodos invioláveis em que se sucedem, a sua origem remota. E encontrou na regularidade com que repontam e se extinguem, intermitentemente, as manchas da fotosfera solar, um símile completo.

De fato, aqueles núcleos obscuros, alguns mais vastos que a Terra, negrejando dentro da cercadura fulgurante das fáculas, lentamente derivando à feição da rotação do Sol, têm entre o máximo e o mínimo da intensidade, um período que pode variar de nove a doze anos. E como desde muito a intuição genial de Herschel lhes descobrira o influxo apreciável na dosagem de calor emitido para a Terra, a correlação surgia inabalável, neste estear‑se em dados geométricos e físicos acolchetando-se num efeito único.

Restava equiparar o mínimo das manchas, anteparo à irradiação do grande astro, ao fastígio das secas no planeta torturado — de modo a patentear, cômpares, os períodos de umas e outras.

Falhou neste ponto, em que pese à sua forma atraentíssima, a teoria planeada: raramente coincidem as datas do paroxismo estival, no Norte, com as daquele.

O malogro desta tentativa, entretanto, denuncia menos a desvalia de uma aproximação imposta rigorosamente por circunstâncias tão notáveis, do que o exclusivismo de atentar‑se para uma causa única. Porque a questão, com a complexidade imanente aos fatos concretos, se atém, de preferência, a razões secundárias, mais próximas e enérgicas, e estas, em modalidades progredindo, contínuas, da natureza do solo à disposição geográfica, só serão definitivamente sistematizadas quando extensa série de observações permitir a definição dos agentes preponderantes do clima sertanejo.

Como quer que seja, o penoso regímen dos Estados do Norte está em função de agentes desordenados e fugitivos, sem leis ainda definidas, sujeitas às perturbações locais, derivadas da natureza da terra, e a reações mais amplas, promanadas das disposições geográficas. Daí as correntes aéreas que o desequilibram e variam.

Determina‑o em grande parte, e talvez de modo preponderante, a monção de nordeste, oriunda da forte aspiração dos planaltos interiores que, em vasta superfície alargada até ao Mato Grosso, são, como se sabe, sede de grandes depressões barométricas, no estio. Atraído por estas, o nordeste vivo, ao entrar, de dezembro a março, pelas costas setentrionais, é singularmente favorecido pela própria conformação da terra, na passagem célere por sobre os chapadões desnudos que irradiando intensamente lhe alteiam o ponto de saturação diminuindo as probabilidades das chuvas, e repelindo‑o, de modo a lhe permitir acarretar para os recessos do continente, intacta, sobre os mananciais dos grandes rios, toda a umidade absorvida na travessia dos mares.

De fato, a disposição orográfica dos sertões, à parte ligeiras variantes — cordas de serras que se alinham para nordeste paralelamente à monção reinante   —  , facilita a travessia desta. Canaliza‑a. Não a contrabate num antagonismo de encostas, abarreirando‑a, alteando‑a, provocando‑lhe resfriamento e a condensação em chuvas.

Um dos motivos das secas repousa, assim, na disposição topográfica.

Falta às terras flageladas do Norte uma alta serrania que, correndo em direção perpendicular àquele vento, determine a dynamic colding, consoante um dizer  expressivo.

Um fato natural de ordem mais elevada esclarece esta hipótese.

Assim é que as secas aparecem sempre entre duas datas fixadas há muito pela prática dos sertanejos, de 12 de dezembro a 19 de março. Fora de tais limites não há um exemplo único de extinção de secas. Se os atravessam, prolongam‑se fatalmente por todo o decorrer do ano, até que se reabra outra vez aquela quadra. Sendo assim e lembrando‑nos que é precisamente dentro deste intervalo que a longa faixa das calmas equatoriais, no seu lento oscilar em torno do equador, paira no zênite daqueles Estados. levando a borda até aos extremos da Bahia, não poderemos considerá‑la, para o caso, com a função de uma montanha ideal que correndo de leste a oeste corrigindo momentaneamente lastimável disposição orográfica, se anteponha a monção e lhe provoque a parada, a ascensão das correntes, o resfriamento subseqüente e a condensação  imediata nos aguaceiros diluvianos que tombam então, de súbito, sobre os sertões ?

Este desfiar de conjeturas tem o valor de indicar quantos fatores remotos podem incidir numa questão que duplamente nos interessa pelo seu traço superior na ciência, e pelo seu significado mais íntimo no envolver o destino de extenso trato do nosso país. Remove, por isto, a segundo plano o influxo até hoje inutilmente agitado dos alísios, e é de alguma sorte fortalecido pela intuição do próprio sertanejo para quem a persistência do nordeste — o vento da seca, como o batiza expressivamente — equivale à permanência de uma situação irremediável e crudelíssima.

As quadras benéficas chegam de improviso.

Depois de dois ou três anos, como de 1877‑1879, em que a insolação rescalda intensamente as chapadas desnudas, a sua própria intensidade origina um reagente inevitável. Decai afinal, por toda a parte, de modo considerável, a pressão atmosférica. Apruma‑se maior e mais bem definida, a barreira das correntes ascensionais dos ares aquecidos, antepostas às que entram pelo litoral. E entrechocadas umas e outras, num desencadear de tufões violentos, alteiam‑se, retalhadas de raios, nublando em minutos o firmamento todo, desfazendo‑se logo depois em aguaceiros fortes sobre os desertos recrestados.

Então parece tornar‑se visível o anteparo das colunas ascendentes, que determinam o fenômeno, na colisão formidável com o nordeste.

Segundo numerosas testemunhas — as primeiras bátegas despenhadas da altura não atingem a terra. A meio caminho se evaporam entre as camadas referventes que sobem, e volvem, repelidas, às nuvens, para, outra vez condensando‑se, precipitarem‑se de novo e novamente refluírem; até tocarem o solo que a princípio não umedecem, tornando ainda aos espaços com rapidez maior, numa vaporização quase como se houvessem caído sobre chapas incandescentes, para mais uma vez descerem, numa permuta rápida e contínua, até que se formem, afinal, os primeiros fios de água derivando pelas pedras, as primeiras torrentes em despenhos pelas encostas, afluindo em regatos já avolumados entre as quebradas, concentrando‑se tumultuariamente em ribeirões correntosos; adensando‑se, estes, em rios barrentos traçados ao acaso, à feição dos declives, em cujas correntezas passam velozmente os esgalhos das árvores arrancadas, rolando todos e arrebentando na mesma onda, no mesmo caos de águas revoltas e escuras…

Se ao assalto subitâneo se sucedem as chuvas regulares, transmudam‑se os sertões, revivescendo. Passam, porém não raro, num giro célere, de ciclone. A drenagem rápida do terreno e a evaporação, que se estabelece logo mais viva, tornam‑nos, outra vez, desolados e áridos. E penetrando‑lhes a atmosfera ardente, os ventos duplicam a capacidade higrométrica, e vão, dia a dia, absorvendo a umidade exígua da terra — reabrindo o ciclo inflexível das secas…

As caatingas

Então, a travessia das veredas sertanejas é mais exaustiva que a de uma estepe nua.

Nesta, ao menos, o viajante tem o desafogo de um horizonte largo e a perspectiva das planuras francas.

Ao passo que a caatinga o afoga; abrevia‑lhe o olhar; agride‑o e estonteia‑o; enlaça‑o na trama espinescente e não o atrai; repulsa‑o com as folhas urticantes, com o espinho, com os gravetos estalados em lanças; e desdobra‑se‑lhe na frente léguas e léguas, imutável no aspecto desolado: árvores sem folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando‑se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante…

Embora esta não tenha as espécies reduzidas dos desertos — mimosas tolhiças ou eufórbias ásperas sobre o tapete das gramíneas murchas  —  e se afigure farta de vegetais distintos, as suas árvores, vistas em conjunto, semelham uma só família de poucos gêneros, quase reduzida a uma espécie invariável, divergindo apenas no tamanho, tendo todas a mesma conformação, a mesma aparência de vegetais morrendo, quase sem troncos, em esgalhos logo ao irromper do chão. É que por um efeito explicável de adaptação às condições estreitas do meio ingrato, evolvendo penosamente em círculos estreitos, aquelas mesmo que tanto se diversificam nas matas ali se talham por um molde único. Transmudam-se, e em lenta metamorfose vão tendendo para limitadíssimo número de tipos caracterizados pelos atributos dos que possuem maior capacidade de resistência.

Esta impõe‑se, tenaz e inflexível.

A luta pela vida, que nas florestas se traduz como uma tendência irreprimível para a luz, desatando‑se os arbustos em cipós, elásticos, distensos, fugindo ao afogado das sombras e alteando‑se presos mais aos raios do Sol do que aos troncos seculares de ali, de todo oposta, é mais obscura, é mais original, é mais comovedora. O Sol é o inimigo que é forçoso evitar, iludir ou combater. E evitando‑o pressente‑se de algum modo, como o indicaremos adiante, a inumação da flora moribunda, enterrando‑se os caules pelo solo. Mas como este, por seu turno, é áspero e duro, exsicado pelas drenagens dos pendores ou esterilizado pela sucção dos estratos completando as insolações, entre dois meios desfavoráveis — espaços candentes e terrenos agros — as plantas mais robustas trazem no aspecto anormalíssimo, impressos, todos os estigmas desta batalha surda.

As leguminosas, altaneiras noutros lugares, ali se tornam anãs. Ao mesmo tempo ampliam o âmbito das frondes, alargando a superfície de contato com o ar, para a absorção dos escassos elementos nele difundidos. Atrofiam as raízes mestras batendo contra o subsolo impenetrável e substituem‑nas pela expansão irradiante das radículas secundárias, ganglionando‑as em tubérculos túmidos de seiva. Amiúdam as folhas. Fitam‑nas rijamente, duras como cisalhas, à ponta dos galhos para diminuírem o campo da insolação. Revestem de um indumento protetor os frutos, rígidos, às vezes, como estróbilos. Dão‑lhes na deiscência perfeita com que as vagens se abrem, estalando como se houvessem molas de aço, admiráveis aparelhos para propagação das sementes, espalhando‑as profusamente pelo chão. E têm, todas, sem excetuar uma única, no perfume suavíssimo das flores, anteparos intácteis que nas noites frias sobre elas se alevantam e se arqueiam obstando a que sofram de chofre as quedas de temperatura, tendas invisíveis e encantadoras, resguardando‑as…

Assim disposta, a árvore aparelha‑se para reagir contra o regímen bruto.

Ajusta‑se sobre os sertões o cautério das secas; esterilizam‑se os ares urentes; empedra‑se o chão, gretando, recrestado; ruge o nordeste nos ermos; e, como um cilício dilacerador, a caatinga estende sobre a terra as ramagens de espinhos… Mas, reduzidas todas as funções, a planta, estivando, em vida latente, alimenta‑se das reservas que armazena nas quadras remansadas e rompe os estios, pronta a transfigurar‑se entre os deslumbramentos da primavera.

Algumas, em terrenos mais favoráveis, iludem ainda melhor as intempéries, em disposição singularíssima.

Vêem‑se numerosos aglomerados em capões ou salpintando, isolados, as macegas, arbúsculos de pouco mais de metro de alto, de largas folhas espessas e luzidias, exuberando floração ridente em meio da desolação geral. São os cajueiros anões, os típicos anacardia humilis das chapadas áridas, os cajuís dos indígenas. Estes vegetais estranhos, quando ablaqueados em roda, mostram raízes que se entranham a surpreendente profundura. Não há desenraizá‑los. O eixo descendente aumenta‑lhes maior à medida que se escava. Por fim se nota que ele vai repartindo‑se em divisões dicotômicas. Progride pela terra dentro até a um caule único e vigoroso, embaixo.

Não são raízes, são galhos. E os pequeninos arbúsculos, esparsos, ou repontando em tufos, abrangendo às vezes largas áreas, uma árvore única e enorme, inteiramente soterrada.

Espancado pelas canículas, fustigado dos sóis, roído dos enxurros, torturado pelos ventos, o vegetal parece derrear‑se aos embates desses elementos antagônicos e abroquelar‑se daquele modo, invisível, no solo sobre que alevanta apenas os mais altos renovos da fronde majestosa.

Outros, sem esta conformação, se aparelham de outra sorte.

As águas que fogem no volver selvagem das torrentes, ou entre as camadas inclinadas dos xistos, ficam retidas, longo tempo, nas espatas das bromélias, aviventando‑as. No pino dos verões, um pé de macambira é para o matuto sequioso um copo d’água cristalina e pura. Os caroás verdoengos, de flores triunfais e altas; os gravatás e ananases bravos, trançados em touceiras impenetráveis, copiam‑lhe a mesma forma, adrede feita àquelas paragens estéreis. As suas folhas ensiformes, lisas e lustrosas, como as da maioria dos vegetais sertanejos, facilitam a condensação dos vapores escassos trazidos pelos ventos, por maneira a debelar‑se o perigo máximo à vida vegetativa, resultante de larga evaporação pelas folhas, esgotando e vencendo a absorção pelas radículas.

Sucedem‑se outros, diversamente apercebidos, sob novos aprestos, mas igualmente resistentes.

As nopaleas e cactus, nativas em toda a parte, entram na categoria das fontes vegetais, de Saint‑Hilaire. Tipos clássicos da flora desértica, mais resistentes que os demais, quando decaem a seu lado, fulminadas, as árvores todas, persistem inalteráveis ou mais vívidos talvez. Afeiçoaram‑se aos regímens bárbaros; repelem os climas benignos em que estiolam e definham. Ao passo que o ambiente em fogo dos desertos parece estimular melhor a circulação da seiva entre os seus cladódios túmidos.

As favelas, anônimas ainda na ciência — ignoradas dos sábios, conhecidas demais pelos tabaréus — talvez um futuro gênero cauterium das leguminosas, têm, nas folhas de células alongadas em vilosidades, notáveis aprestos de condensação, absorção e defesa. Por um lado, a sua epiderme ao resfriar‑se, à noite, muito abaixo da temperatura do ar, provoca, a despeito da secura deste, breves precipitações de orvalho; por outro, a mão, que a toca, toca uma chapa incandescente de ardência inaturável.

Ora, quando ao revés das anteriores as espécies não se mostram tão bem armadas para a reação vitoriosa, observam-se dispositivos porventura mais interessantes: unem‑se, intimamente abraçadas, transmudando‑se em plantas sociais. Não podendo revidar isoladas, disciplinam‑se, congregam‑se, arregimentam‑se. São deste número todas as cesalpinas e as catingueiras, constituindo, nos trechos em que aparecem, sessenta por cento das caatingas; os alecrins‑dos‑tabuleiros, e os canudos‑de‑pito, heliotrópios arbustivos de caule oco, pintalgado de branco e flores em espiga, destinados a emprestar o nome ao mais lendário dos vilarejos…

Não estão no quadro das plantas sociais brasileiras, de Humboldt, e é possível que as primeiras vicejem, noutros climas, isoladas. Ali se associam. E, estreitamente solidárias as suas raízes, no subsolo, em apertada trama, retém as águas, retêm as terras que se desagregam, e formam, ao cabo, num longo esforço, o solo arável em que nascem, vencendo, pela capilaridade do inextricável tecido de radículas enredadas em malhas numerosas, a sucção insaciável dos estratos e das areias. E vivem. Vivem é o termo — porque há, no fato, um traço superior à passividade da evolução vegetativa…

O juazeiro

Têm o mesmo caráter os juazeiros, que raro perdem as folhas de um verde intenso, adrede modeladas às reações vigorosas da luz. Sucedem‑se meses e anos ardentes. Empobrece‑se inteiramente o solo aspérrimo. Mas, nessas quadras cruéis, em que as soalheiras se agravam, à vezes, com os incêndios espontaneamente acesos pelas ventanias atritando rijamente os galhos secos e estonados sobre o depauperamento geral da vida, em roda, eles agitam as ramagens virentes, alheios às estações, floridos sempre, salpintando o deserto com as flores cor de ouro, álacres, esbatidas no pardo dos restolhos — à maneira de oásis verdejantes e festivos.

A dureza dos elementos cresce, entretanto, em certas quadras, ao ponto de os desnudar: é que se enterroaram há muito os fundos das cacimbas, e os leitos endurecidos das ipueiras mostram, feito enormes carimbos, em moldes, os rastros velhos das boiadas; e o sertão de todo se impropriou à vida.

Então, sobre a natureza morta, apenas se alteiam os cereus esguios e silentes, aprumando os caules circulares repartidos em colunas poliédricas e uniformes, na simetria impecável de enormes candelabros. E avultando ao descer das tardes breves sobre aqueles ermos, quando os abotoam grandes frutos vermelhos destacando‑se, nítidos, à meia luz dos crepúsculos, eles dão a ilusão emocionante de círios enormes, fincados a esmo no solo, espalhados pelas chapadas, e acesos…

Caracterizam a flora caprichosa da plenitude do estio.

Os mandacarus ( cereus jaramacaru ), atingindo notável altura, raro aparecendo em grupos, assomando isolados acima da vegetação caótica, são novidade atraente, a princípio. Atuam pelo contraste. Aprumam‑se tesos triunfalmente, enquanto por toda a banda a flora se deprime. O olhar, perturbado pelo acomodar‑se à contemplação penosa dos acervos de ramalhos estorcidos, descansa e retifica‑se percorrendo os seus caules direitos e corretos. No fim de algum tempo, porém, são uma obsessão acabrunhadora. Gravam em tudo monotonia inaturável, sucedendo‑se constantes, uniformes, idênticos todos, todos do mesmo porte, igualmente afastados, distribuídos com uma ordem singular pelo deserto.

Os xiquexiques (cactus peruvianus) são uma variante de proporções inferiores, fracionando‑se em ramos fervilhantes de espinhos, recurvos e rasteiros, recamados de flores alvíssimas. Procuram os lugares ásperos e ardentes. São os vegetais clássicos dos areais queimosos. Aprazem‑se no leito abrasante das lajens graníticas feridas pelos sóis.

Têm como sócios inseparáveis neste habitat, que as próprias orquídeas evitam, os cabeças‑de‑frade, deselegantes e monstruosos melocactos de forma elipsoidal, acanalada, de gomos espinescentes, convergindo‑lhes no vértice superior formado uma flor única intensamente rubra. Aparecem de modo inexplicável, sobre a pedra nua, dando, realmente, no tamanho, na conformação, no modo por que se espalham, a imagem singular de cabeças decepadas e sanguinolentas jogadas por ali, a esmo, numa desordem trágica. É que estreitíssima frincha lhes permitiu insinuar, através da rocha, a raiz longa e capilar até a parte inferior, onde acaso existam, livres de evaporação, uns restos de umidade.

E a vasta família, revestindo todos os aspectos, decai, a pouco e pouco, até aos quipás reptantes, espinhosos, humílimos, trançados sobre a terra à maneira de espartos de um capacho dilacerador; às ripsalides serpeantes, flexuosas, como víboras verdes pelos ramos, de parceria com os frágeis cactos epifitas, de um glauco empalecido, presos por adligantes aos estipites dos ouricurizeiros, fugindo do solo bárbaro para o remanso da copa da palmeira.

Aqui, ali, outras modalidades: as palmatórias‑do‑inferno opúntias de palmas diminutas, diabolicamente erriçadas de espinhos — com o vivo carmim das cochonilhas que alimentam; orladas de flores rutilantes, quebrando alacremente a tristeza solene das paisagens…

E pouco mais especializa quem anda, pelos dias claros, por aqueles ermos, entre árvores sem folhas e sem flores. Toda a flora, como em uma derrubada, se mistura em baralhamento indescritível. É a catanduva, mato doente, da etimologia indígena, dolorosamente caída sobre o seu terrível leito de espinhos !

Vingado um cômoro qualquer, postas em torno as vistas, perturba‑as o mesmo cenário desolador: a vegetação agonizante, doente e informe, exausta, num espasmo doloroso…

É a sylva oestu aphylla, a sylva borrida, de Martius, abrindo no seio iluminado da natureza tropical um vácuo de deserto.

Compreende‑se, então, a verdade da frase paradoxal, de Aug. de Saint‑Hilaire: “Há, ali, toda a melancolia dos invernos, com um sol ardente e os ardores do verão!”

A luz crua dos dias longos flameja sobre a terra imóvel e não a anima. Reverberam as infiltrações de quartzo pelos cerros calcários, desordenadamente esparsos pelos ermos, num alvejar de banquises; e, oscilando à ponta dos ramos secos das árvores inteiriçadas, dependuram‑se as tilândsias alvacentas, lembrando flocos esgarçados, de neve, dando ao conjunto o aspecto de uma paisagem glacial de vegetação hibernante, nos gelos…

A tormenta

Mas no empardecer de uma tarde qualquer, de março, rápidas tardes sem crepúsculos, prestes afogadas na noite, as estrelas pela primeira vez cintilam vivamente.

Nuvens volumosas abarreiram ao longe os horizontes, recortando‑os em relevos imponentes de montanhas negras.

Sobem vagarosamente; incham, bolhando em lentos e desmesurados rebojos, na altura; enquanto os ventos tumultuam nos plainos, sacudindo e retorcendo as galhadas.

Embruscado em minutos, o firmamento golpeia‑se de relâmpagos precípites, sucessivos, sarjando fundamente a imprimadura negra da tormenta. Reboam ruidosamente as trovoadas fortes. As bátegas de chuva tombam grossas, espaçadamente, sobre o chão, adunando‑se logo em aguaceiro diluviano…

Ressurreição da flora

E ao tornar da travessia o viajante, pasmo, não vê mais o deserto.

Sobre o solo, que as amarílis atapetam, ressurge triunfalmente a flora tropical.

É uma mutação de apoteose.

Os mulungus rotundos, à borda das cacimbas cheias, estafolhas; as caraíbas e baraúnas altas refrondescem à margem dos ribeirões refertos; ramalham, ressoantes, os marizeiros esgalhados, à passagem das virações suaves; assomam, vivazes, amortecendo as truncaduras das quebradas, as quixabeiras de folhas pequeninas e frutos que lembram contas de ônix; mais virentes, adensam‑se os icozeiros pelas várzeas, sob o ondular festivo das copas dos ouricuris: ondeiam, móveis, avivando a paisagem, acamando‑se nos plainos, arredondando as encostas, as moitas floridas do alecrim‑dos‑tabuleiros, de caules finos e flexíveis; as umburanas perfumam os ares, filtrando‑os nas frondes enfolhadas, e  —  dominando a revivescência geral  — não já pela altura senão pelo gracioso do porte, os umbuzeiros alevantam dois metros sobre o chão, irradiantes em círculo, os galhos numerosos.

O umbuzeiro

É a árvore sagrada do sertão. Sócia fiel das rápidas horas felizes e longos dias amargos dos vaqueiros. Representa o mais frisante exemplo de adaptação da flora sertaneja. Foi, talvez, de talhe mais vigoroso e alto — e veio descaindo, pouco a pouco, numa interdecadência de estios flamívomos e invernos torrenciais, modificando‑se à feição do meio, desinvoluindo, até se preparar para a resistência e reagindo, por fim, desafiando as secas duradouras, sustentando‑se nas quadras miseráveis mercê da energia vital que economiza nas estações benéficas das reservas guardadas em grande cópia nas raízes.

E reparte‑as com o homem. Se não existisse o umbuzeiro aquele trato de sertão, tão estéril que nele escasseiam os carnaubais tão providencialmente dispersos nos que o convizinham até ao Ceará, estaria despovoado. O umbu é para o infeliz matuto que ali vive o mesmo que a mauritia para os garaunos dos llanos.

Alimenta‑o e mitiga‑lhe a sede. Abre‑lhe o seio acariciador e amigo, onde os ramos recurvos e entrelaçados parecem de propósito feitos para a armação das redes bamboantes. E ao chegarem os tempos felizes dá‑lhe os frutos de sabor esquisito para o preparo da umbuzada tradicional.

O gado, mesmo nos dias de abastança, cobiça o sumo acidulado das suas folhas. Realça‑se‑lhe, então, o porte, levantada, em recorte firme, a copa arredondada, num plano perfeito sobre o chão, à altura atingida pelos bois mais altos, ao modo de plantas ornamentais entregues à solicitude de práticos jardineiros. Assim decotadas semelham grandes calotas esféricas. Dominam a flora sertaneja nos tempos felizes, como os cereus melancólicos nos paroxismos estivais.

A jurema

As juremas, prediletas dos caboclos — o seu haxixe capitoso, fornecendo‑lhes, grátis, inestimável beberagem, que os revigora depois das caminhadas longas, extinguindo‑lhes as fadigas em momentos, feito um filtro mágico — derramam‑se em sebes, impenetráveis tranqueiras disfarçadas em folhas diminutas; refrondam os marizeiros raros — misteriosas árvores que pressagiam a volta das chuvas e das épocas aneladas do verde e o termo da magrém — quando, em pleno flagelar da seca, Ihes porejam na casca ressequida dos troncos algumas gotas d’água; reverdecem os angicos; lourejam os juás em moitas, e as baraúnas de flores em cachos, e os araticuns à ourela dos banhados… mas, destacando‑se, esparsos pelas chapadas, ou no bolear dos cerros, os umbuzeiros, estrelando flores alvíssimas, abrolhando em folhas, que passam em fugitivos cambiantes de um verde pálido ao róseo vivo dos rebentos novos, atraem melhor o olhar, são a nota mais feliz do cenário deslumbrante.

O sertão é um paraíso

E o sertão é um paraíso…

Ressurge ao mesmo tempo a fauna resistente das caatingas: disparam pelas baixadas úmidas os caititus esquivos; passam, em varas, pelas tigüeras num estrídulo estrepitar de maxilas percutindo, os queixadas de canela ruiva; correm pelos tabuleiros altos, em bandos, esporeando‑se com os ferrões de sob as asas, as emas velocíssimas; e as seriemas de vozes lamentosas, e as sericóias vibrantes, cantam nos balsedos, à fimbria dos banhados onde vem beber o tapir estacando um momento no seu trote, brutal, inflexivelmente retilíneo, pela caatinga, derribando árvores; e as próprias suçuaranas, aterrando os mocós espertos que se aninham aos pares, nas luras dos fraguedos, pulam, alegres, nas macegas altas, antes de quedarem nas tocaias traiçoeiras aos veados ariscos ou novilhos desgarrados…

Manhãs sertanejas

Sucedem‑se manhãs sem par, em que o irradiar do levante incendido retinge a púrpura das eritrinas e destaca melhor, engrinaldando as umburanas de casca arroxeada, os festões multicores das bignônias. Animam‑se os ares numa palpitação de asas, céleres, ruflando. Sulcam‑nos as notas de clarins estranhos. Num tumultuar de desencontrados vôos passam, em bandos, as pombas bravas que remigram, e rolam as turbas turbulentas das maritacas estridentes… enquanto feliz, deslembrado de mágoas, segue o campeiro pelos arrastadores, tangendo a boiada farta, e entoando a cantiga predileta…

Assim se vão os dias.

Passam‑se um, dois, seis meses venturosos, derivados da exuberância da terra, até que surdamente, imperceptivelmente, num ritmo maldito, se despeguem, a pouco e pouco, e caiam, as folhas e as flores, e a seca se desenhe outra vez nas ramagens mortas das árvores decíduas….

Capítulo V

Uma categoria geográfica que Hegel não citou

Resumamos, enfeixemos estas linhas esparsas.

Hegel delineou três categorias geográficas como elementos fundamentais colaborando com outros no reagi: sobre o homem, criando diferenciações étnicas:

As estepes de vegetação tolhiça, ou vastas planícies áridas; os vales férteis, profusamente irrigados; os litorais e as ilhas.

Os llanos da Venezuela; as savanas que alargam o vale do Mississípi, os pampas desmedidos e o próprio Atacama desatado sobre os Andes — vasto terraço onde vagueiam dunas — inscrevem‑se rigorosamente nos primeiros.

Em que pese aos estios longos, as trombas formidáveis de areia, e ao saltear de súbitas inundações, não se incompatibilizam com a vida.

Mas não fixam o homem à terra.

A sua flora rudimentar, de gramíneas e ciperáceas, reviçando vigorosa nas quadras pluviosas, é um incentivo à vida pastoril, às sociedades errantes dos pegureiros, passando móveis, num constante armar e desarmar de tendas, por aqueles plainas — rápidas, dispersas aos primeiros fulgores do verão.

Não atraem. Patenteiam sempre o mesmo cenário de uma monotonia acabrunhadora, com a variante única da cor: um oceano imóvel, sem vagas e sem praias.

Têm a força centrífuga do deserto: repelem; desunem; dispersam. Não se podem ligar a humanidade pelo vinculo nupcial do sulco dos arados. São um isolador étnico como as cordilheiras e o mar, ou as estepes da Mongólia, varejadas, em corridas doidas, pelas catervas turbulentas dos tártaros errabundos.

Aos sertões do Norte, porém, que à primeira vista se lhes equiparam, falta um lugar no quadro do pensador germânico.

Ao atravessá‑los no estio, crê‑se que entram, de molde, naquela primeira subdivisão; ao atravessá‑los no inverno, acredita‑se que são parte essencial da segunda.

Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes…

Na plenitude das secas são positivamente o deserto. Mas quando estas não se prolongam ao ponto de originarem penosíssimos êxodos, o homem luta como as árvores, com as reservas armazenadas nos dias de abastança e, neste combate feroz, anônimo, terrivelmente obscuro, afogado na solidão das chapadas, a natureza não o abandona de todo. Ampara‑o muito além das horas de desesperança, que acompanham o esgotamento das últimas cacimbas.

Ao sobrevir das chuvas, a terra, como vimos, transfigura‑se em mutações fantásticas, contrastando com a desolação anterior. Os vales secos fazem‑se rios. Insulam‑se os cômoros escalvados, repentinamente verdejantes. A vegetação recama de flores, cobrindo‑os, os grotões escancelados, e disfarça a dureza das barrancas, e arredonda em colinas os acervos de blocos disjungidos — de sorte que as chapadas grandes, intermeadas de convales, se ligam em curvas mais suaves aos tabuleiros altos. Cai a temperatura. Com o desaparecer das soalheiras anula‑se a secura anormal dos ares. Novos tons na paisagem: a transparência do espaço salienta as linhas mais ligeiras, em todas as variantes da forma e da cor.

Dilatam‑se os horizontes. O firmamento sem o azul carregado dos desertos alteia‑se, mais profundo, ante o expandir revivescente da terra.

E o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono.

Depois tudo isto se acaba. Voltam os dias torturantes; a atmosfera asfixiadora; o empedramento do solo; a nudez da flora; e nas ocasiões em que os estios se ligam sem a intermitência das chuvas — o espasmo assombrador da seca.

A natureza compraz‑se em um jogo de antíteses.

Eles impõem por isto uma divisão especial naquele quadro. A mais interessante e expressiva de todas — posta, como mediadora, entre os vales nimiamente férteis e as estepes mais áridas.

Relegando a outras páginas a sua significação como fator de diferenciação étnica, vejamos o seu papel na economia da terra.

A natureza não cria normalmente os desertos. Combate‑os, repulsa‑os. Desdobram‑se, lacunas inexplicáveis, às vezes sob as linhas astronômicas definidoras da exuberância máxima da vida. Expressos no tipo clássico do Saara — que é um termo genérico da região maninha dilatada do Atlântico ao Indico, entrando pelo Egito e pela Síria, assumindo todos os aspectos da enorme depressão africana ao plateau arábico ardentíssimo de Nedjed e avançando daí para as areias dos bejabans, na Pérsia — são tão ilógicos que o maior dos naturalistas lobrigou a gênese daquele na ação tumultuaria de um cataclismo, uma irrupção do Atlântico, precipitando‑se, águas revoltas, num irresistível remoinhar de correntes, sobre o Norte da‑ África e desnudando‑a furiosamente.

Esta explicação de Humboldt, embora se erija apenas como hipótese brilhante, tem um significado superior.

Extinta a preponderância do calor central e normalizados os climas, do extremo norte e do extremo sul, a partir dos pólos inabitáveis, a existência vegetativa progride para a linha equinocial. Sob esta ficam as zonas exuberantes por excelência, onde os arbustos de outras se fazem árvores e o regímen, oscilando em duas estações únicas, determina uniformidade favorável à evolução dos organismos simples, presos diretamente às variações do meio. A fatalidade astronômica da inclinação da eclética, que coloca a Terra em condições biológicas inferiores às de outros planetas, mal se percebe nas paragens onde uma montanha única sintetiza, do sopé às cumeadas, todos os climas do mundo.

Entretanto, por elas passa, interferindo a fronteira ideal dos hemisférios, o equador termal, de traçado perturbadíssimo de inflexões vivas, partindo‑se nos pontos singulares em que a vida é impossível; passando dos desertos às florestas, do Saara, que o repuxa para o norte, à Índia opulentíssima, depois de tangenciar a ponta meridional da Arábia paupérrima; varando o Pacífico num longo traço — rarefeito colar de ilhas desertas e escalvadas — e abeirando, depois, em lento descambar para o sul, a Hilae portentosa do Amazonas.

Da extrema aridez à exuberância extrema…

É que a  morfologia da terra viola as leis gerais dos clima. Mas todas as vezes que o facies geográfico não as combate de todo a natureza reage. Em luta surda, cujos efeitos fogem ao próprio raio dos ciclos históricos, mas emocionante, para  quem consegue lobrigá‑la ao, através de séculos sem conto, entorpecida sempre pelos agentes adversos, mas tenaz, incoercível, num evolver seguro, a terra como um organismo, se transmuda por intuscepção, indiferente aos elementos que lhe tumultuam à face.

De sorte que se as largas depressões eternamente condenadas, a exemplo da Austrália, permanecem estéreis se anulam, noutros pontos, os desertos.

A própria temperatura abrasada acaba lhes dar um mínimo de pressão atraindo o afluxo das chuvas; e as areias móveis, riscadas pelos ventos, negando largo tempo a pega à planta mais humilde, imobilizam‑se,  a pouco e pouco, presas nas radículas das gramíneas; o chão ingrato e a   rocha estéril decaem sob a ação imperceptível dos líquens, que preparam a vinda das lecídeas frágeis; e por fim, os platôs desnudos, llanos e pampas de vegetação escassa, as savanas e as estepes mais vivazes da Ásia Central, surgem, num crescendo, refletindo sucessivas fases de transfigurações maravilhosas.

Como se faz um deserto

Ora, os sertões do Norte, a despeito de uma esterilidade menor, contrapostos a este critério natural, figuram talvez o ponto singular de uma evolução regressiva.

Imaginamo‑los há pouco, numa retrospecção em que, certo, a fantasia se insurgiu contra a gravidade da ciência, a emergirem, geologicamente modernos, de um vasto mar terciário.

À parte essa hipótese absolutamente instável, porém, o certo é que um complexo de circunstâncias lhes tem dificultado regímen contínuo, favorecendo flora mais vivaz.

Esboçamos anteriormente algumas.

Esquecemo‑nos, todavia, de um agente geológico notável — o homem.

Este, de fato, não raro reage brutalmente sobre a terra e entre nós, nomeadamente, assumiu, em todo o decorrer da história, o papel de um terrível fazedor de desertos.

Começou isto por um desastroso legado indígena.

Na agricultura primitiva dos silvícolas era instrumento fundamental — o fogo.

Entalhadas as árvores pelos cortantes dgis de diorito; encoivarados, depois de secos, os ramos, alastravam‑lhes por cima, crepitando, as caiçaras, em bulcão de fumo, tangidas pelos ventos. Inscreviam, depois, nas cercas de troncos combustos das caiçaras, a área em cinzas onde fora a mata exuberante. Cultivavam‑na. Renovavam o mesmo processo na estação seguinte, até que, de todo exaurida, aquela mancha da terra fosse, imprestável, abandonada em caapuera — mato extinto — como o denuncia a etimologia tupi, jazendo dali por diante irremediavelmente estéril porque, por uma circunstância digna de nota, as famílias vegetais que surgiam subsecutivamente no terreno calcinado eram sempre de tipos arbustivos enfezados, de todo distintos dos da selva primitiva. O aborígine prosseguia abrindo novas roças, novas derrubadas, novas queimas, alargando o círculo dos estragos em novas caapueras, que ainda uma vez deixava para formar outras noutros pontos, aparecendo maninhas, num evolver enfezado, inaptas para reagir com os elementos exteriores, agravando, à medida que se ampliavam, os rigores do próprio clima que as flagelava, e entretecidas de carrascais, afogadas em macegas, espelhando aqui o aspecto adoentado da catanduva sinistra, além a braveza convulsiva da caatinga brancacenta.

Veio depois o colonizador e copiou o mesmo proceder. Engravesceu‑o ainda com o adotar, exclusivo, no centro do país, fora da estreita faixa dos canaviais da costa, o regímen francamente pastoril.

Abriram‑se desde o alvorecer do século 17, nos sertões abusivamente sesmados, enormíssimos campos, compáscuos sem divisas, estendendo‑se pelas chapadas em fora.

Abria‑os, de idêntico modo, o fogo livremente aceso, sem aceiros, avassalando largos espaços, solto nas lufadas violentas do nordeste. Aliou‑se‑lhe ao mesmo tempo o sertanista ganancioso e bravo, em busca do silvícola e do ouro. Afogado nos recessos de uma flora estupenda que lhe escurentava as vistas e sombreava perigosamente as tocaias do tapuia e as tocas do canguçu temido, dilacerou‑a golpeando‑a de chamas, para desafogar os horizontes e destacar bem perceptíveis, tufando nos descampados limpos, as montanhas que o norteavam, balizando a marcha das bandeiras.

Atacou a fundo a terra, escarificando‑a nas explorações a céu aberto; esterilizou‑a com os lastros das grupiaras; feriu‑a a pontaços de alvião; degradou‑a corroendo‑a com as águas selvagens das torrentes; e deixou, aqui, ali, em toda parte, para sempre estéreis, avermelhando nos ermos com o intenso colorido das argilas revolvidas, onde não medra a planta mais exígua, as grandes catas, vazias e tristonhas, com a sua feição sugestiva de imensas cidades mortas, derruídas…

Ora, estas selvatiquezas atravessaram toda a nossa história. Ainda em meados deste século, no atestar de velhos habitantes das povoações ribeirinhas do S. Francisco, os exploradores que em 1830 avançaram, a partir da margem esquerda daquele rio, carregando em vasilhas de couro indispensáveis provisões de água, tinham, na frente, alumiando‑lhes a rota, abrindo‑lhes a estrada e devastando a terra, o mesmo batedor sinistro, o incêndio. Durante meses seguidos viu‑se no poente, entrando pelas noites dentro, o reflexo rubro das queimadas.

Imaginem‑se os resultados de semelhante processo aplicado, sem variantes, no decorrer de séculos…

Previu‑os o próprio governo colonial. Desde 1713 sucessivos decretos visaram opor‑lhes paradeiros. E ao terminar a seca lendária de 1791‑1792, a “grande seca”, como dizem ainda os velhos sertanejos, que sacrificou todo o Norte, da Bahia ao Ceará, o governo da metrópole figura‑se tê‑la atribuído aos inconvenientes apontados, estabelecendo desde logo, como corretivo único, severa proibição ao corte das florestas.

Esta preocupação dominou‑o por muito tempo. Mostram‑no‑lo as cartas régias de 17 de março de 1796, nomeando um juiz conservador das matas; e a de 11 de junho de 1799, decretando que “se coíba a indiscreta e desordenada ambição dos habitantes ( da Bahia e Pernambuco ) que têm assolado a ferro e fogo preciosas matas… que tanto abundavam e já hoje ficam a distancias consideráveis etc.”.

Aí estão dizeres preciosos relativos diretamente à região que palidamente descrevemos.

Há outros, cômpares na eloqüência.

Deletreando‑se antigos roteiros dos sertanistas do Norte, destemerosos caatingueiros que pleiteavam parelhas com os bandeirantes do Sul, nota‑se a cada passo uma alusão incisiva à bruteza das paragens que atravessavam, perquirindo as chapadas, em busca das “minas de prata” de Melchior Moreia — e passando quase todos à margem do sertão de Canudos, com escala em Monte Santo, então o Pico‑araçá dos tapuias. E falam nos “campos frios” ( certamente à noite, pela irradiação intensa do solo desabrigado ) cortando léguas de caatinga sem água nem caravatá que a tivesse e com raízes de umbu e mandacaru, remediando a gente” no penoso desbravar das veredas.

Já nessa época, como se vê, tinham função proverbial às plantas, para as quais, hoje, apelam os nossos sertanejos.

É que o mal é antigo. Colaborando com os elementos meteorológicos, com o nordeste, com a sucção dos estratos, com as canículas, com a erosão eólia, com as tempestades subitâneas — o homem fez‑se uma componente nefasta entre as forças daquele clima demolidor. Se o não criou, transmudou‑o, agravando‑o. Deu um auxiliar à degradação das tormentas, o machado do caatingueiro; um supletivo à insolação, a queimada.

Fez, talvez, o deserto. Mas pode extingui‑lo ainda, corrigindo o passado. E a tarefa não é insuperável. Di‑lo uma comparação histórica.

Como se extingue o deserto

Quem atravessa as planícies elevadas da Tunísia, entre Beja e Biserta, à ourela do Saara, encontra ainda, no desembocar dos vales, atravessando normalmente o curso caprichoso e em torcicolos dos oueds, restos de antigas construções romanas. Velhos muradais derruídos, embrechados de silhares e blocos rolados, cobertos em parte pelos detritos de enxurros de vinte séculos, aqueles legados dos grandes colonizadores delatam a um tempo a sua atividade inteligente e o desleixo bárbaro dos árabes que os substituíram.

Os romanos depois da tarefa da destruição de Cartago tinham posto ombros à empresa incomparavelmente mais séria de vencer a natureza antagonista. E ali deixaram belíssimo traço de sua expansão histórica.

Perceberam com segurança o vício original da região, estéril menos pela escassez das chuvas do que pela sua péssima distribuição adstrita aos relevos topográficos. Corrigiram‑no. O regímen torrencial que ali aparece, intensíssimo em certas quadras, determinando alturas pluviométricas maiores que as de outros países férteis e exuberantes, era, como nos sertões do nosso país, além de inútil, nefasto. Caía sobre a terra desabrigada, desarraigando a vegetação mal presa a um solo endurecido; turbilhonava por algumas semanas nos regatos transbordantes, alagando as planícies; e desaparecia logo, derivando em escarpamentos, pelo norte e pelo levante, no Mediterrâneo, deixando o solo, depois de uma revivescência transitória, mais desnudo e estéril. O deserto, ao sul, parecia avançar, dominando a paragem toda, vingando‑lhe os últimos acidentes que não tolhiam a propulsão do simum.

Os romanos fizeram‑no recuar. Encadearam as torrentes; represaram as correntezas fortes, e aquele regímen brutal, tenazmente combatido e bloqueado, cedeu, submetido inteiramente, numa rede de barragens. Excluído o alvitre de irrigações sistemáticas dificílimas, conseguiram que as águas permanecessem mais longo tempo sobre a terra. As ravinas recortando‑se em gânglios estagnados dividiram‑se açudes abarreirados pelas muralhas que trancavam os vales, e os oueds, parando, intumesciam‑se entre os morros, conservando largo tempo as grandes massas líquidas, até então perdidas, ou levando‑as, no transbordarem, em canais laterais aos lugares próximos mais baixos, onde se abriam em sangradouros e levadas, irradiantes por toda a parte, e embebendo o solo. De sorte que este sistema de represas, além de outras vantagens, criara um esforço de irrigação geral. Ademais, todas aquelas superfícies líquidas esparsas em grande número e não resumidas a um Quixadá único — monumental e inútil — expostas à evaporação, acabaram reagindo sobre o clima, melhorando‑o. Por fim a Tunísia, onde haviam aproado os filhos prediletos dos fenícios, mas que até então se reduzira a um litoral povoado de traficantes ou númidas erradios, com suas tendas de tetos curvos branqueando nos ares como quilhas encalhadas  —  se fez, transfigurada, a terra clássica da agricultura antiga. Foi o celeiro da Itália; a fornecedora quase exclusiva, de trigo, dos romanos.

Os franceses, hoje, copiam‑lhes em grande parte os processos, sem necessitarem alevantar muramentos monumentais e dispendiosos. Represam por estacadas, entre muros de pedras secas e terras, à maneira de palancas, os oueds mais bem dispostos, e talham pelo alto das suas bordas, em toda à largura das serranias que os ladeiam, condutos derivando para os terrenos circunjacentes, em redes irrigadoras.

Deste modo as águas selvagens estacam, remansam‑se, sem adquirir a força acumulada das inundações violentas, disseminando‑se, afinal, estas, amortecidas, em milhares de válvulas, pelas derivações cruzadas. E a histórica paragem, liberta da apatia do moslim inerte, transmuda‑se volvendo de novo à fisionomia antiga. A França salva os restos da opulenta herança da civilização romana, depois desse declínio de séculos.

Ora, quando se traçar, sem grande precisão embora, a carta hipsométrica dos sertões do Norte, ver‑se‑á que eles se apropriam a uma tentativa idêntica, de resultados igualmente seguros.

A idéia não é nova. Sugeriu‑a há muito, em memoráveis sessões do Instituto Politécnico do Rio, em 1877, o belo espírito do conselheiro Beaurepaire Rohan, talvez sugestionado pelo mesmo símile, que acima apontamos.

Das discussões então travadas onde se enterreiraram os melhores cientistas do tempo — da sólida experiência de Capanema à mentalidade rara de André Rebouças — foi a única coisa prática, factível, verdadeiramente útil que ficou.

Idearam‑se, naquela ocasião, luxuosas cisternas de alvenarias; miríades de poços artesianos, perfurando as chapadas; depósitos colossais ou armazéns desmedidos para as reservas acumuladas; açudes vastos, feitos cáspios artificiais; e por fim, como para caracterizar bem o desbarate completo da engenharia, ante a enormidade do problema, estupendos alambiques para a destilação das águas do Atlântico!…

O alvitre mais modesto porém, efeito imediato de um ensinamento histórico, sugerido pelo mais elementar dos exemplos, suplanta‑os.  Porque é, além de prático, evidentemente o mais lógico.

O martírio secular da terra

Realmente, entre os agentes determinantes da seca se intercalam, de modo apreciável, a estrutura e a conformação do solo. Qualquer que seja a intensidade das causas complexas e mais remotas que anteriormente esboçamos, a influência daquelas é manifesta desde que se considere que a capacidade absorvente e emissiva dos terrenos expostos, a inclinação dos estratos, que os retalham, e a rudeza dos relevos topográficos, agravam, do mesmo passo, a crestadura dos estios e a degradação intensiva das torrentes. De sorte que, saindo das insolações demoradas para as inundações subitâneas, a terra, mal protegida por uma vegetação decídua, que as primeiras requeimam e as segundas erradicam, se deixa, a pouco e pouco, invadir pelo regímen francamente desértico.

As fortes tempestades que apagam o incêndio surdo das secas, em que pese à revivescência que acarretam, preparam de algum modo a região para maiores vicissitudes. Desnudamna rudemente, expondo‑a cada vez mais desabrigada aos verões seguintes; sulcam‑na numa molduragem de contornos ásperos; golpeiam‑na e esterilizam‑na; e, ao desaparecerem, deixam‑na ainda mais desnuda ante a adustão dos sóis. O regímen decorre num intermitir deplorável, que lembra um círculo vicioso de catástrofes.

Deste modo a medida única a adotar‑se deve consistir no corretivo destas disposições naturais. Pondo de lado os fatores determinantes do flagelo, oriundos da fatalidade de leis astronômicas ou geográficas inacessíveis à intervenção humana, são, aquelas, as únicas possíveis de modificações apreciáveis.

O processo que indicamos, em breve recordação histórica, pela sua própria simplicidade dispensa inúteis pormenores técnicos.

A França copia‑o hoje, sem variantes, revivendo o traçado de construções velhíssimas.

Abarreirados os vales, inteligentemente escolhidos, em pontos pouco intervalados, por toda a extensão do território sertanejo, três conseqüências inevitáveis decorreriam: atenuar‑se‑iam de modo considerável a drenagem violenta do solo e as suas conseqüências lastimáveis; formar‑se‑lhes‑iam à ourela, inscritas na rede das derivações, fecundas áreas de cultura; e fixar‑se‑ia uma situação de  equilíbrio para a instabilidade do clima, porque os numerosos e pequenos açudes, uniformemente distribuídos e constituindo dilatada superfície de evaporação, teriam, naturalmente, no correr dos tempos, a influência moderadora de um mar interior, de importância extrema.

Não há alvitrar‑se outro recurso. As cisternas, poços artesianos e raros, ou longamente espaçados lagos como o de Quixadá, têm um valor local, inapreciável. Visam, de um modo geral, atenuar a última das conseqüências da seca — a sede; e o que há a combater e a debelar nos sertões do Norte — é o  deserto.

O martírio do homem, ali, é reflexo de tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da Vida.

Nasce do martírio secular da terra…

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Crédito da fotografia: Vista parcial de Canudos ao Sul. 01.07 (1897) / Fonte: Coleção Canudos (Flávio de Barros) / Museu da República

Seção  “A terra” do livro: “Os Sertões: Campanha de Canudos”

Editado por: Icaro Pio e Israel Dias de Oliveira

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