Os Sertões – O homem

publicado na Ed_10_jan/mar.2019 por

Capítulo I

Complexidade do problema etnológico no Brasil

Adstrita às influências que mutuam, em graus variáveis, três elementos étnicos, a gênese das raças mestiças do Brasil é um problema que por muito tempo ainda desafiará o esforço dos melhores espíritos.

Está apenas delineado.

Entretanto no domínio das investigações antropológicas brasileiras se encontram nomes altamente encarecedores do nosso movimento intelectual. Os estudos sobre a pré‑história indígena patenteiam modelos de obervação sutil e conceito critico brilhante, mercê dos quais parece definitivamente fir­mado, contravindo ao pensar dos caprichosos construtores da ponte alêutica, o autoctonismo das raças americanas.

Neste belo esforço, rematado pela profunda elaboração paleontológica de Wilhelm Lund, destacam‑se o nome de Morton, a intuição genial de Frederico Hartt, a inteiriça or­ganização cientifica de Meyer, a rara lucidez de Trajano de Moura, e muitos outros cujos trabalhos reforçam os de Nott e Gordon no definir, de uma maneira geral mas completa, a América como um centro de criação desligado do grande vi­veiro da Ásia Central. Erige‑se autônomo entre as raças o homo americanus.

A face primordial da questão ficou assim aclarada. Que resultem do “homem da Lagoa Santa” cruzado com o pré‑co­lombiano dos sambaquis; ou se derivem, altamente modificados por ulteriores cruzamentos e pelo meio, de alguma raça inva­sora do Norte, de que se supõe oriundos os tupis tão nume­rosos na época do descobrimento — os nossos silvícolas, com seus frisantes caracteres antropológicos, podem ser considerados tipos evanescentes de velhas raças autóctones da nossa terra.

Esclarecida deste modo a preliminar da origem do ele­mento indígena, as investigações convergiram para a definição da sua psicologia especial; e enfeixaram‑se, ainda, em algumas conclusões seguras.

Não precisamos revivê-las. Sobre faltar‑nos competência. nos desviaríamos muito de um objetivo prefixado.

Os dois outros elementos formadores, alienígenas, não ori­ginaram idênticas tentativas. O negro banto, ou catre, com as suas várias modalidades, foi até neste ponto o nosso eterno desprotegido. Somente nos últimos tempos um investigador te­naz, Nina Rodrigues, subordinou a uma análise cuidadosa a sua religiosidade original e interessante. Qualquer, porém, que tenha sido o ramo africano para aqui transplantado trouxe, certo, os atributos preponderantes do homo afer, filho das pa­ragens adustas e bárbaras, onde a seleção natural, mais que em quaisquer outras, se faz pelo exercício intensivo da feroci­dade e da força.

Quanto ao fator aristocrático de nossa gens, o português, que nos liga à vibrátil estrutura intelectual do celta, está, por sua vez, malgrado o complicado caldeamento de onde emerge, de todo caracterizado.

Conhecemos, deste modo, os três elementos essenciais, e, imperfeitamente embora, o meio físico diferenciados — e ainda, sob todas as suas formas; as condições históricas adversas ou favoráveis que sobre eles reagiram. No considerar, porém, todas as alternativas e todas as fases intermédias desse entrelaçamen­to de tipos antropológicos de graus díspares nos atributos físicos e psíquicos, sob os influxos de um meio variável, capaz de di­versos climas, tendo discordantes aspectos e apostas condições de vida, pode afirmar‑se que pouco nos temos avantajado. Escrevemos todas as variáveis de uma fórmula intricada, tra­duzindo sério problema; mas não desvendamos todas as in­cógnitas.

É que, evidentemente, não basta, para o nosso caso, que postos uns diante de outros o negro banto, o indo‑guarani e o branco, apliquemos ao conjunto a lei antropológica de Broca. Esta é abstrata e irredutível. Não nos diz quais os reagentes que podem atenuar o influxo da raça mais numerosa ou mais forte, e causas que o extingam ou atenuem quando ao contrá­rio da combinação binária, que pressupõe, despontam três fa­tores diversos, adstritos às vicissitudes da história e dos climas.

É uma regra que nos orienta apenas no indagarmos a verdade. Modifica-se, como todas as leis, à pressão dos dados ob­jetivos. Mas ainda quando por extravagante indisciplina mental alguém tentasse aplicá‑la, de todo despeada da intervenção da­queles, não simplificaria o problema.

É fácil demonstrar.

Abstraiamos de inúmeras causas perturbadoras, e consi­deremos os três elementos constituintes de nossa raça em si mesmos, intactas as capacidades que Ihes são próprias.

Vemos, de pronto, que. mesmo nesta hipótese favorável, deles não resulta o produto único imanente às combinações binárias, numa fusão imediata em que se justaponham ou se resumam os seus caracteres, unificados e convergentes num tipo intermediário. Ao contrário a combinação ternária inevitá­vel determina, no caso mais simples, três outras, binárias. Os elementos iniciais não se resumem, não se unificam; desdo­bram‑se; originam número igual de subformações — substituin­do‑se pelos derivados, sem redução alguma, em uma mestiça­gem embaralhada onde se destacam como produtos mais característicos o mulato, o mamaluco ou curiboca e o cafuz[1]. As sedes iniciais das indagações deslocam‑se apenas mais per­turbadas, graças a reações que não exprimem uma redução, mas um desdobramento. E o estudo destas subcategorias subs­titui o das raças elementares agravando‑o e dificultando‑o, desde que se considere que aquelas comportam, por sua vez, inúmeras modalidades consoante as dosagens variáveis do sangue.

O brasileiro, tipo abstrato que se procura, mesmo no caso favorável acima firmado, só pode surdir de um entrelaçamento consideravelmente complexo.

Teoricamente ele seria o pardo, para que convergem os cruzamentos do mulato, do curiboca e do cafuz.

Avaliando‑se, porém, as condições históricas que têm atuado, diferentes nos diferentes tratos do território; as disparidades  climáticas que nestes ocasionam reações diversas diversamente suportadas pelas raças constituintes; a maior ou menor densidade com que estas cruzaram nos vários pontos do país; e atendendo‑se ainda à intrusão — pelas armas na quadra colonial e pelas imigrações em nossos dias — de outros povos, fato que por sua vez não foi e não é uniforme, vê‑se bem que a realidade daquela formação é altamente duvidosa, senão absurda.

Como quer que seja, estas rápidas considerações explicam as disparidades de vistas que reinam entre os nossos antropólogos. Forrando‑se, em geral, à tarefa penosa de subordinar as suas pesquisas a condições tão complexas, têm atendido sobremaneira ao preponderar das capacidades étnicas. Ora, a despeito da grave influência destas, e não a negamos, elas foram entre nós levadas ao exagero, determinando a irrupção de uma meia‑ciência difundida num extravagar de fantasias, sobre ousadas, estéreis. Há como que um excesso de subjetivismo no animo dos que entre nós, nos últimos tempos, cogitam de coisas tão sérias com uma volubilidade algo escandalosa, atentas as proporções do assunto. Começam excluindo em grande parte os materiais objetivos oferecidos pelas circunstâncias mesológica e histórica. Jogam, depois, e entrelaçam, e fundem as três raças consoante os caprichos que os impelem no momento. E fazem repontar desta metaquímica sonhadora alguns precipitados fictícios.

Alguns firmando preliminarmente, com autoridade discutível, a função secundária do meio físico e decretando preparatoriamente a extinção quase completa do silvícola e a influência decrescente do africano depois da abolição do tráfico, prevêem a vitória final do branco, mais numeroso e mais forte, como termo geral de uma série para o qual tendem o mulato, forma cada vez mais diluída do negro, e o caboclo, em que se apagam, mais depressa ainda, os traços característicos do aborígine.

Outros dão maiores largas aos devaneios. Ampliam a influência do último. E arquitetam fantasias que caem ao mais breve choque da crítica: devaneios a que nem faltam a metrificação e as rimas porque invadem a ciência na vibração rítmica dos versos de Gonçalves Dias.

Outros vão terra a terra de mais. Exageram a influência do africano, capaz, com efeito, de reagir em muitos pontos contra a absorção da raça superior. Surge o mulato. Proclamam‑no o mais característico tipo da nossa subcategoria étnica.

O assunto assim vai derivando multiforme e dúbio.

Acreditamos que isto sucede porque o escopo essencial destas investigações se tem reduzido à pesquisa de um tipo étnico único, quando há, certo, muitos.

Não temos unidade de raça.

Não a teremos, talvez, nunca.

Predestinamo‑nos à formação de uma raça histórica em futuro remoto, se o permitir dilatado tempo de vida nacional autônoma. Invertemos, sob este aspecto, a ordem natural dos fatos. A nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social.

Estamos condenados à civilização.

Ou progredimos, ou desaparecemos.

A afirmativa é segura.

Não a sugere apenas essa heterogeneidade de elementos ancestrais. Reforça‑a outro elemento igualmente ponderável: um meio físico amplíssimo e variável, completado pelo variar de situações históricas, que dele em grande parte decorreram.

A este propósito não será desnecessário considerá‑lo por alguns momentos.

Variabilidade do meio físico

Contravindo à opinião dos que demarcam aos países quentes um desenvolvimento de 30° de latitude, o Brasil está longe de se incluir todo em tal categoria. Sob um duplo aspecto, astronômico e geográfico, aquele limite é exagerado.

Além de ultrapassar a demarcação teórica vulgar, exclui os relevos naturais que atenuam ou reforçam os agentes meteorológicos, criando climas equatoriais em altas latitudes ou regímens temperados entre os trópicos. Toda a climatologia, inscrita nos amplos lineamentos das leis cosmológicas gerais, desponta em qualquer parte adicta de preferência às causas naturais mais próximas e particulares. Um clima é como que a tradução fisiológica de uma condição geográfica. E definindo‑o deste modo concluímos que o nosso país, pela sua própria estrutura, se imprópria a um regímen uniforme.

Demonstram‑no os resultados mais recentes, e são os únicos dignos de fé, das indagações meteorológicas. Estas o subdividem em três zonas claramente distintas: a francamente tropical, que se expande pelos Estados do Norte ao sul da Bahia, com uma temperatura média de 26°; a temperada, de S. Paulo ao Rio Grande, pelo Paraná e Santa Catarina, entre os isotermos 15° e 20°; e como transição — a subtropical, alongando‑se pelo Centro e Norte de alguns Estados, de Minas ao Paraná.

Aí estão. claras, as divisas de três habitats distintos.

Ora, mesmo entre as linhas mais ou menos seguras destes despontam modalidades, que ainda os diversificam.

Indiquemo‑las a traços rápidos.

A disposição orográfica brasileira, possantes massas sublevadas que se orientam perlongando o litoral perpendicularmente ao rumo do SE, determina as primeiras distinções em largos tratos de território que demoram ao Oriente, criando anomalia climatológica expressiva.

De fato, o clima aí inteiramente subordinado aos facies geográficos viola as leis gerais que o regulam. A partir dos trópicos para o Equador a sua caracterização astronômica, pelas latitudes, cede às causas secundárias perturbadoras. Define‑se, anormalmente, pelas longitudes.

É um fato conhecido. Na extensa faixa da costa, que vai da Bahia à Paraíba, se vêem transições mais acentuadas, acompanhando os paralelos, no rumo do ocidente, do que os meridianos, demandando o norte. As diferenças no regímen e nos aspectos naturais, que segundo este rumo são imperceptíveis, patenteiam‑se, claras, no primeiro. Distendida até às paragens setentrionais extremas, a mesma natureza exuberante ostenta‑se sem variantes nas grandes matas que debruam a costa, fazendo que a observação rápida do estrangeiro prefigure dilatada região vivaz e feracíssima. Entretanto a partir do 13° paralelo as florestas mascaram vastos territórios estéreis, retratando nas áreas desnudas as inclemências de um clima em que os graus termométricos e higrométricos progridem em relação inversa, extremando‑se exageradamente.

Revela‑o curta viagem para o ocidente, a partir de um ponto qualquer daquela costa. Quebra‑se o encanto de ilusão belíssima. A natureza empobrece‑se; despe‑se das grandes matas; abdica o fastígio das montanhas; erma‑se e deprime‑se — transmudando‑se nos sertões exsicados e bárbaros, onde correm rios efêmeros, e destacam‑se em chapadas nuas, sucedendo‑se, indefinidas, formando o palco desmedido para os quadros dolorosos das secas.

O contraste é empolgante.

Distantes menos de cinqüenta léguas, apresentam‑se regiões de todo opostas, criando opostas condições à vida.

Entra‑se, de surpresa, no deserto.

E, certo, as vagas humanas que nos dois primeiros séculos do povoamento embateram as plagas do Norte tiveram na translação para o ocidente, demandando o interior, obstáculos mais sérios que a rota agitada dos mares e das montanhas, na travessia das caatingas ralas e decíduas. O malogro da expansão baiana, que entretanto precedera à paulista no devassar os recessos do país, é exemplo frisante.

O mesmo não sucede, porém, dos trópicos para o sul.

Aí a urdidura geológica da terra, matriz de sua morfogenia interessante, persiste inalterável, abrangendo extensas superfícies para o interior, criando as mesmas condições favoráveis, a mesma flora, um clima altamente melhorado pela altitude, e a mesma feição animadora dos aspectos naturais.

A larga antemural da cordilheira granítica, derivando a prumo para o mar, nas vertentes interiores descamba suavemente em vastos plainos ondulados.

É a escarpa abrupta e viva dos planaltos.

Sobre estes os cenários, sem os traços exageradamente dominadores das montanhas, revelam‑se mais opulentos e amplos. A terra patenteia essa manageability of nature, de que nos fala Buckle, e o clima temperado quente desafia na benignidade o admirável regímen da Europa Meridional. Não o regula mais, como mais para o norte, exclusivamente, o SE. Rolando dos altos chapadões do interior, o NO prepondera então, em toda extensíssima zona que vai das terras elevadas de Minas e do Rio ao Paraná, passando por S. Paulo.

Ora, estas largas divisões, apenas esboçadas, mostram já uma diferença essencial entre o Sul e o Norte, absolutamente distintos pelo regímen meteorológico, pela disposição da terra e pela transição variável entre o sertão e a costa.

Descendo à análise mais íntima desvendaremos aspectos particulares mais incisivos ainda.

Tomemos os casos mais expressivos, evitando extensa explanação do assunto.

Vimos em páginas anteriores que o SE, sendo o regulador predominante do clima na costa oriental, é substituído, nos Estados do Sul, pelo NO e nas extremas setentrionais pelo NE. Ora, estes, por sua vez, desaparecem no âmago dos planaltos, ante o SO que, como um hausto possante dos pampeiros, se lança pelo Mato Grosso, originando desproporcionadas amplitudes termométricas, agravando a instabilidade do clima continental, e submetendo as terras centrais a um regímen brutal, diverso dos que vimos rapidamente delineando.

Com efeito, a natureza em Mato Grosso balanceia os exageros de Buckle. É excepcional e nitidamente destacada. Nenhuma se lhe assemelha. Toda a imponência selvagem, toda a exuberância inconceptível, unidas à brutalidade máxima dos elementos, que o preeminente pensador, em precipitada generalização, ideou no Brasil, ali estão francas, rompentes em cenários portentosos. Contemplando‑as, mesmo através da frieza das observações de naturalistas pouco vezados a efeitos descritivos, vê‑se que aquele regímen climatológico anômalo é o mais fundo traço da nossa variabilidade mesológica.

Nenhum se lhe equipara no jogar das antíteses. A sua feição aparente é a de benignidade extrema: — a terra afeiçoada à vida; a natureza fecunda erguida na apoteose triunfal dos dias deslumbrantes e calmos; e o solo abrolhando em vegetação fantástica — farto, irrigado de rios que irradiam pelos quatro pontos cardeais. Mas esta placidez opulenta esconde, paradoxalmente, germens de cataclismos, que irrompendo, sempre com um ritmo inquebrável, no estio, traindo‑se nos mesmos prenúncios infalíveis, ali tombam com a finalidade irresistível de uma lei.

Mal poderemos traçá‑los. Esbocemo‑los.

Depois de soprarem por alguns dias as rajadas quentes e úmidas de NE, os ares imobilizam‑se, por algum tempo, estagnados. Então “a natureza como que se abate extática, assustada; nem as grimpas das árvores balouçam; as matas, numa quietude medonha, parecem sólidos inteiriços. As aves se achegam nos ninhos, suspendendo os vôos e se escondem”[2].

Mas, volvendo‑se o olhar para os céus, nem uma nuvem! O firmamento límpido arqueia‑se alumiado ainda por um Sol obscurecido, de eclipse. A pressão, entretanto, decai vagarosamente, numa descensão contínua, afogando a vida. Por momentos um cumulus compacto, de bordas acobreado‑escuras, negreja no horizonte, ao sul. Deste ponto sopra, logo depois, uma viração, cuja velocidade cresce rápida, em ventanias fortes. A temperatura cai em minutos e, minutos depois, os tufões sacodem violentamente a terra. Fulguram relâmpagos; estrugem trovoadas nos céus já de todo bruscos e um aguaceiro torrencial desce logo sobre aquelas vastas superfícies, apagando, numa inundação única, o divortium aquarum indeciso que as atravessa, adunando todas as nascentes dos rios e embaralhando‑lhes os leitos em alagados indefinidos…

É um assalto subitâneo. O cataclismo irrompe arrebatadamente na espiral vibrante de um ciclone. Descolmam‑se as casas; dobram‑se, rangendo, e partem‑se, estalando, os carandás seculares; ilham‑se os morros; alagoam‑se os plainos…

E uma hora depois o Sol irradia triunfalmente no céu puríssimo! A passarada irrequieta descanta pelas frondes gotejantes; suavizam os ares virações suaves — e o homem, deixando os refúgios a que se acolhera trêmulo, contempla os estragos entre a revivescência universal da vida. Os troncos e galhos das árvores rachadas pelos raios, estorcidas pelos ventos; as choupanas estruídas, colmos por terra; as últimas ondas barrentas dos ribeirões, transbordantes; a erva acamada pelos campos, como se sobre eles passassem búfalos em tropel — mal relembram a investida fulminante do flagelo…

Dias depois, os ventos rodam outra vez, vagarosamente, para leste; e a temperatura começa a subir de novo; a pressão a pouco e pouco diminui; e cresce continuamente o mal‑estar, até que se reate nos ares imobilizados a componente formidável do pampeiro e ressurja, estrugidora, a tormenta, em rodeos turbilhonantes, enquadrada pelo mesmo cenário lúgubre, revivendo o mesmo ciclo, o mesmo círculo vicioso de catástrofe.

Ora — avançando para o norte—desponta, contrastando com tais manifestações, o clima do Pará. Os brasileiros de outras latitudes mal o compreendem, mesmo através das lúcidas observações de Bates. Madrugadas tépidas, de 23° centígrados, sucedendo‑se inesperadamente a noites chuvosas; dias que irrompem como apoteoses fulgurantes, revelando transmutações inopinadas: árvores, na véspera despidas, aparecendo juncadas de flores; brejos apaulados transmudando‑se em prados. E logo depois, no círculo estreitíssimo de 24 horas, mutações completas: florestas silenciosas, galhos mal vestidos pelas folhas requeimadas ou murchas; ares vazios e mudos; ramos viúvos das flores recém‑abertas, cujas pétalas exsicadas se despegam e caem, mortas, sobre a terra imóvel sob o espasmo enervante de um bochorno de 35°, à sombra. “Na manhã seguinte, o Sol se alevanta sem nuvens e deste modo se completa o ciclo — primavera, verão e outono num só dia tropical”[3].

A constância de tal clima faz que se não percebam as estações que, entretanto, como em um índice abreviado, se delineiam nas horas sucessivas de um só dia, sem que a temperatura quotidiana tenha durante todo o ano uma oscilação maior que 1° ou 1°,5. Assim a vida se equilibra numa constância imperturbável.

Entretanto, a um lado, para o ocidente, no Alto Amazonas manifestações diversas caracterizam novo habitat. E este, não há negá‑lo, impõe aclimação penosa a todos os filhos dos próprios territórios limítrofes.

Ali, no pleno dos estios quentes, quando se diluem, mortas nos ares parados, as últimas lufadas de leste, o termômetro é substituído pelo higrômetro na definição do clima. As existências derivam numa alternativa dolorosa de vazantes e enchentes dos grandes rios. Estas alteiam‑se sempre de um modo assombrador. O Amazonas referto salta fora do leito, levanta em poucos dias o nível das águas, de dezessete metros; expande‑se em alagados vastos, em furos, em paranamirins entrecruzados em rede complicadíssima de mediterrâneo cindido de correntes fortes, dentre as quais emergem, ilhados, os igapós verdejantes.

A enchente é unia parada na vida. Preso nas malhas dos igarapés, o homem aguarda, então, com estoicismo raro ante a fatalidade incoercível, o termo daquele inverno paradoxal, de temperaturas altas. A vazante é o verão. É a revivescência da atividade rudimentar dos que ali se agitam, do único modo compatível com uma natureza que se demasia em manifestações dispares tornando impossível a continuidade de quaisquer esforços.

Tal regímen acarreta o parasitismo franco. O homem bebe o leite da vida sugando os vasos túmidos das sifônias…

Mas neste clima singular e típico destacam‑se outras anomalias, que ainda mais o agravam. Não bastam as intermitências de cheias e estiagens, sobrevindo rítmicas como a sístole e a diástole da maior artéria na terra. Outros fatos tornam ao forasteiro inúteis todas as tentativas de aclimação real.

Muitas vezes em plena enchente, em abril ou maio, no correr de um dia calmoso e claro, dentro da atmosfera ardente do Amazonas difundem‑se rajadas frigidíssimas do sul.

É como uma bafagem enregelada do pólo…

O termômetro desce, então, logo, numa queda única e forte, de improviso. Estabelece‑se por alguns dias uma situação inaturável.

Os “regatões” espertos que esporeados pela ganância se avantajam até ali, e os próprios silvícolas enrijados pela adaptação, acolhem‑se aos tejupás, tiritantes, abeirando‑se das fogueiras. Cessam os trabalhos. Abre‑se um novo hiato nas atividades. Despovoam‑se aquelas grandes solidões alagadas, morrem os peixes nos rios, enregelados; morrem as aves nas matas silenciosas, ou emigram; esvaziam‑se os ninhos; as próprias feras desaparecem, encafurnadas nas tocas mais profundas — ; e aquela natureza maravilhosa do Equador, toda remodelada pela reação esplêndida dos sois, patenteia um simulacro crudelíssimo de desolamento polar e lúgubre. É o tempo da “friagem”.

Terminemos, porém, esses debuxos rápidos.

Os sertões do Norte, vimo‑lo anteriormente, refletem, por sua vez, novos regímens, novas exigências biológicas. Ali a mesma intercadência de quadras remansadas e dolorosas se espelha mais duramente talvez, sob outras formas.

Ora, se considerarmos que estes vários aspectos climáticos não exprimem casos excepcionais, mas aparecem todos, desde as tormentas do Mato Grosso aos ciclos das secas do Norte, com a feição periódica imanente às leis naturais invioláveis, conviremos em que há no nosso meio físico variabilidade completa.

Daí os erros em que incidem os que generalizam, estudando a nossa fisiologia própria, a ação exclusiva de um clima tropical. Esta exercita‑se, sem dúvida, originando patologia sui generis, em quase toda a faixa marítima do Norte e em grande parte dos Estados que lhe correspondem, até ao Mato Grosso. O calor úmido das paragens amazonenses, por ex., deprime e exaure. Modela organizações tolhiças em que toda a atividade cede ao permanente desequilíbrio entre as energias impulsivas das funções periféricas fortemente excitadas e a apatia das funções centrais: inteligências marasmáticas, adormidas sob o explodir das paixões; enervações periclitantes, em que pese à acuidade dos sentidos, e mal reparadas ou refeitas pelo sangue empobrecido nas hematoses incompletas…

Daí todas as idiossincrasias de uma fisiologia excepcional: o pulmão que se reduz, pela deficiência da função e é substituído, na eliminação obrigatória do carbono, pelo fígado, sobre o qual desce pesadamente a sobrecarga da vida: organizações combalidas pela alternativa persistente de exaltações impulsivas e apatias enervadoras, sem a vibratilidade, sem o tonus muscular enérgico dos temperamentos robustos e sangüíneos. A seleção natural, em tal meio, opera‑se à custa de compromissos graves com as funções centrais, do cérebro, numa progressão inversa prejudicialíssima entre o desenvolvimento intelectual e o físico, firmando inexoravelmente a vitória das expansões instintivas e visando o ideal de uma adaptação que tem, como conseqüências únicas, a máxima energia orgânica, a mínima fortaleza moral. A aclimação traduz uma evolução regressiva. O tipo deperece num esvaecimento contínuo, que se lhe transmite à descendência até a extinção total. Como o inglês nas Barbadas, na Tasmânia ou na Austrália, o português no Amazonas, se foge ao cruzamento, no fim de poucas gerações tem alterados os caracteres físicos e morais de uma maneira profunda, desde a tez, que se acobreia pelos sóis e pela eliminação incompleta do carbono, ao temperamento, que se debilita despido das qualidades primitivas. A raça inferior, o selvagem bronco, domina‑o; aliado ao meio vence‑o, esmaga‑o, anula‑o na concorrência formidável ao impaludismo, ao hepatismo, às pirexias esgotantes, às canículas abrasadoras, e aos alagadiços maleitosos.

Isto não acontece em grande parte do Brasil Central e em todos os lugares do Sul.

Mesmo na maior parte dos sertões setentrionais o calor seco, altamente corrigido pelos fortes movimentos aéreos provindos dos quadrantes de leste, origina disposições mais animadoras e tem ação estimulante mais benéfica.

E volvendo ao sul, no território que do norte de Minas para o sudoeste progride até o Rio Grande, deparam‑se condições incomparavelmente superiores:

Uma temperatura anual média de 17° a 20°, num jogo mais harmônico de estações; um regímen mais fixo das chuvas que, preponderantes no verão, se distribuem no outono e na primavera de modo favorável às culturas. Atingindo o inverno, a impressão de um clima europeu é precisa: sopra o SO frigidíssimo sacudindo chuvisqueiros finos e esgarçando garoas; a neve rendilha as vidraças; gelam os banhados, e as geadas branqueiam pelos campos…

…E sua reflexão na história

A nossa história traduz notavelmente estas modalidades mesológicas.

Considerando‑a sob uma feição geral, fora da ação perturbadora dos pormenores inexpressivos, vemos, logo na fase colonial, esboçarem‑se situações diversas.

Enfeudado o território, dividido pelos donatários felizes, e iniciando‑se o povoamento do país com idênticos elementos, sob a mesma indiferença da metrópole, voltada ainda para as últimas miragens da “Índia portentosa”, abriu‑se separação radical entre o Sul e o Norte.

Não precisamos rememorar os fatos decisivos das duas regiões. São duas histórias distintas, em que se averbam movimentos e tendências opostas. Duas sociedades em formação, alheadas por destinos rivais — uma de todo indiferente ao modo de ser da outra, ambas, entretanto, evolvendo sob os influxos de uma administração única. Ao passo que no Sul se debuxavam novas tendências, uma subdivisão maior na atividade, maior vigor no povo mais heterogêneo, mais vivaz, mais prático e aventureiro, um largo movimento progressista em suma — tudo isto contrastava com as agitações, às vezes mais brilhantes mas sempre menos fecundas, do Norte — capitanias esparsas e incoerentes, jungidas à mesma rotina, amorfas e imóveis, em função estreita dos alvarás da corte remota.

A história é ali mais teatral porém menos eloqüente.

Surgem heróis, mas a estatura avulta‑lhes, maior, pelo contraste com o meio; belas páginas vibrantes mas truncadas, sem objetivo certo, em que colaboram, de todo desquitadas entre si, as três raças formadoras.

Mesmo no período culminante, a luta com os holandeses, acampam, claramente distintos em suas tendas de campanha, os negros de Henrique Dias, os índios de Camarão e os lusitanos de Vieira. Mal unidos na guerra, distanciam‑se na paz. O drama de Palmares, as correrias dos silvícolas, os conflitos na orla dos sertões, violam a transitória convergência contra o batavo.

Preso no litoral, entre o sertão inabordável e os mares, o velho agregado colonial tendia a chegar ao nosso tempo, imutável, sob o emperramento de uma centralização estúpida, realizando a anomalia de deslocar para uma terra nova o ambiente moral de uma sociedade velha.

Bateu‑o, felizmente, a onda impetuosa do Sul.

Aqui, a aclimação mais pronta, em meio menos adverso, emprestou, cedo, mais vigor aos forasteiros. Da absorção das primeiras tribos surgiram os cruzados das conquistas sertanejas, os mamalucos audazes. O “paulista”— e a significação histórica deste nome abrange os filhos do Rio de Janeiro, Minas, S. Paulo e regiões do Sul — erigiu‑se como um tipo autônomo, aventuroso, rebelde, libérrimo, com a feição perfeita de um dominador da terra, emancipando‑se, insurreto, da tutela longínqua, e afastando‑se do mar e dos galeões da metrópole, investindo com os sertões desconhecidos, delineando a epopéia inédita das “bandeiras”…

Este movimento admirável reflete o influxo das condições mesológicas. Não houvera distinção alguma entre os colonizadores de um e outro lado. Em todos prevaleciam os mesmos elementos, que eram o desespero de Diogo Coelho.

“Piores qua na terra que peste…”

Mas no Sul a força viva restante no temperamento dos que vinham de romper o mar imoto não se delia num clima enervante; tinha nova componente na própria força da terra; não se dispersava em adaptações difíceis. — Alterava‑se, melhorando. O homem sentia‑se forte. Deslocado apenas o teatro dos grandes cometimentos, podia volver para o sertão impérvio a mesma audácia que o precipitara nos périplos africanos.

Além disto — frisemos este ponto escandalizando embora os nossos minúsculos historiógrafos — a disposição orográfica libertava‑o da preocupação de defender o litoral, onde aproava a cobiça do estrangeiro.

A serra do Mar tem um notável perfil em nossa história. A prumo sobre o Atlântico desdobra‑se como a cortina de baluarte desmedido. De encontro às suas escarpas embatia, fragílima, a ânsia guerreira dos Cavendish e dos Fenton. No alto, volvendo o olhar em cheio para os chapadões, o forasteiro sentia‑se em segurança. Estava sobre ameias intransponíveis que o punham do mesmo passo a cavaleiro do invasor e da metrópole. Transposta a montanha — arqueada como a precinta de pedra de um continente — era um isolador étnico e um isolador histórico. Anulava o apego irreprimível ao litoral, que se exercia ao norte; reduzia‑o a estreita faixa de mangues e restingas, ante a qual se amorteciam todas as cobiças, e alteava, sobranceira às frotas, intangível no recesso das matas, a atração misteriosa das minas…

Ainda mais — o seu relevo especial torna‑a um condensador de primeira ordem, no precipitar a evaporação oceânica.

Os rios que se derivam pelas suas vertentes nascem de algum modo no mar. Rolam as águas num sentido oposto à costa. Entranham‑se no interior, correndo em cheio para os sertões. Dão ao forasteiro a sugestão irresistível das “entradas”.

A terra atrai o homem; chama‑o para o seio fecundo; encanta‑o pelo aspecto formosíssimo; arrebata‑o, afinal, irresistivelmente na correnteza dos rios.

Daí o traçado eloqüentíssimo do Tietê, diretriz preponderante nesse domínio do solo. Enquanto no S. Francisco, no Paraíba, no Amazonas, e em todos os cursos d’água da borda oriental, o acesso para o interior seguia ao arrepio das correntes, ou embatia nas cachoeiras que tombam dos socalcos dos planaltos, ele levava os sertanistas, sem uma remada, para o rio Grande e daí ao Paraná e ao Paranaíba. Era a penetração em Minas, em Goiás, em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul, no Mato Grosso, no Brasil inteiro. Segundo estas linhas de menor resistência, que definem os lineamentos mais claros da expansão colonial, não se opunham, como ao norte, renteando o passo às bandeiras, a esterilidade da terra, a barreira intangível dos descampados brutos.

Assim é fácil mostrar como esta distinção de ordem física esclarece as anomalias e contrastes entre os sucessos nos dois pontos do país, sobretudo no período agudo da crise colonial, no século 17.

Enquanto o domínio holandês, centralizando‑se em Pernambuco, reagia por toda a costa oriental, da  Bahia ao Maranhão, e se travavam recontros memoráveis em que, solidárias, enterreiravam o inimigo comum as nossas três raças formadoras, o sulista, absolutamente alheio àquela agitação, revelava, na rebeldia aos decretos da metrópole, completo divórcio com aqueles lutadores. Era quase um inimigo tão perigoso quanto o batavo. Um povo estranho de mestiços levantadiços, expandindo outras tendências, norteado por outros destinos, pisando, resoluto, em demanda de outros rumos, bulas e alvarás entibiadores. Volvia‑se em luta aberta com a corte portuguesa, numa reação tenaz contra os jesuítas. Estes, olvidando o holandês e dirigindo‑se, com Ruy de Montoya a Madri e Dias Tãno a Roma, apontavam‑no como inimigo mais sério.

De feito, enquanto em Pernambuco as tropas de von Schoppe preparavam o governo de Nassau, em S. Paulo se arquitetava o drama sombrio de Guaíra. E quando a restauração em Portugal veio alentar em toda a linha a repulsa ao invasor, congregando de novo os combatentes exaustos, os sulistas frisaram ainda mais esta separação de destinos, aproveitando‑se do mesmo fato para estadearem a autonomia franca, no reinado de um minuto de Amador Bueno.

Não temos contraste maior na nossa história. Está nele a sua feição verdadeiramente nacional. Fora disto mal a vislumbramos nas cortes espetaculosas dos governadores, na Bahia, onde imperava a Companhia de Jesus com o privilégio da conquista das almas, eufemismo casuístico disfarçando o monopólio do braço indígena.

Na plenitude do século 17 o contraste se acentua.

Os homens do Sul irradiam pelo país inteiro. Abordam as raias extremas do Equador. Até aos últimos quartéis do século 18, o povoamento segue as trilhas embaralhadas das bandeiras. Seguiam sucessivas, incansáveis, com a fatalidade de uma lei, porque traduziam, com efeito, uma queda de potenciais, as grandes caravanas guerreiras, vagas humanas desencadeadas em todos os quadrantes, invadindo a própria terra, batendo‑a em todos os pontos, descobrindo‑a depois do descobrimento, desvendando‑lhe o seio rutilante das minas.

Fora do litoral, em que se refletia a decadência da metrópole e todos os vícios de uma nacionalidade em decomposição insanável, aqueles sertanistas, avantajando‑se às terras extremas de Pernambuco ao Amazonas, semelhavam uma outra raça, no arrojo temerário e resistência aos reveses.

Quando as correrias do bárbaro ameaçavam a Bahia, ou Pernambuco, ou a Paraíba, e os quilombos se escalonavam pelas matas, nos últimos refúgios do africano revoltoso — o sulista, di‑lo a grosseira odisséia de Palmares, surgia como o debelador clássico desses perigos, o empreiteiro predileto das grandes hecatombes.

É que o filho do Norte não tinha um meio físico que o blindasse de igual soma de energias. Se tal acontecesse, as bandeiras irromperiam também do oriente e do norte e, esmagado num movimento convergente, o elemento indígena desapareceria sem traços remanescentes. Mas o colono nortista, nas entradas para oeste ou para o sul, batia logo de encontro à natureza adversa. Refluía prestes ao litoral sem o atrevimento dos dominadores, dos que se sentem à vontade sobre uma terra amiga, sem as ousadias oriundas da própria atração das, na segunda metade do século 16, por Sebastião Tourinho, das, na segunda metade do século 16, por Sebastião Tourinho, no rio Doce, Bastião Álvares, no S. Francisco, e Gabriel Soares, pelo Norte da Bahia até às cabeceiras do Paraguaçu, embora tivessem depois os estímulos enérgicos das Minas de Prata, de Belchior Dias, são um pálido arremedo das arremetidas do Anhangüera ou de um Pascoal de Araújo.

Apertados entre os canaviais da costa e o sertão, entre o mar e o deserto, num bloqueio engravecido pela ação do clima, perderam todo o aprumo e este espírito de revolta, eloqüentíssimo, que ruge em todas as páginas da história do Sul.

Tal contraste não se baseia, por certo, em causas étnicas primordiais.

Delineada, deste modo, a influência mesológica em nosso movimento histórico, deduz‑se a que exerceu sobre a nossa formação étnica.

Ação do meio na fase inicial da formação das raças

Volvamos ao ponto de partida.

Convindo em que o meio não forma as raças, no nosso caso especial variou demais nos diversos pontos do território as dosagens de três elementos essenciais. Preparou o advento de sub‑raças diferentes pela própria diversidade das condições de adaptação. Além disso (é hoje fato inegável) as condições exteriores atuam gravemente sobre as próprias sociedades constituídas, que se deslocam em migrações seculares aparelhadas embora pelos recursos de uma cultura superior. Se isto se verifica nas raças de todo definidas abordando outros climas, protegidas pelo ambiente de uma civilização, que é como o plasma sangüíneo desses grandes organismos coletivos, que não diremos da nossa situação muito diversa ? Neste caso — é evidente — a justaposição dos caracteres coincide com íntima transfusão de tendências e a longa fase de transformação correspondente erige‑se como período de fraqueza, nas capacidades das raças que se cruzam, alterando o valor relativo da influencia do meio. Este como que estampa, então, melhor, no corpo em fusão, os seus traços característicos. Sem nos arriscarmos demais a paralelo ousado, podemos dizer que, para essas reações biológicas complexas, ele tem agentes mais enérgicos que para as reações químicas da matéria.

Ao calor e à luz, que se exercitam em ambas, adicionam‑se, então, a disposição da terra, as modalidades do clima e essa ação de presença inegável, essa espécie de força catalítica misteriosa que difundem os vários aspectos da natureza.

Entre nós, vimo‑lo, a intensidade destes últimos está longe da uniformidade proclamada. Distribuíram, como o indica a história, de modo diverso as nossas camadas étnicas, originando uma mestiçagem dissímil.

Não há um tipo antropológico brasileiro.

A formação brasileira no Norte

Procuremos, porém, neste intricado caldeamento a miragem fugitiva de uma sub‑raça, efêmera talvez. Inaptos para discriminar as nossas raças nascentes, acolhamo‑nos ao nosso assunto. Definamos rapidamente os antecedentes históricos do jagunço.

Ante o que vimos a formação brasileira do Norte é mui diversa da do Sul. As circunstâncias históricas, em grande parte oriundas das circunstâncias físicas, originaram diferenças iniciais no enlace das raças, prolongando‑as até o nosso tempo.

A marcha do povoamento, do Maranhão à Bahia, revela‑as.

Os primeiros povoadores

Foi vagaroso. As gentes portuguesas não abordavam o litoral do Norte robustecidas pela força viva das migrações compactas, grandes massas invasoras capazes, ainda que destacadas do torrão nativo, de conservar, pelo número, todas as qualidades adquiridas em longo tirocínio histórico. Vinham esparsas, parceladas em pequenas levas de degredados ou colonos contrafeitos, sem o desempenho viril dos conquistadores.

Deslumbrava‑as ainda o Oriente.

O Brasil era a terra do exílio; vasto presídio com que se amedrontavam os heréticos e os relapsos, todos os passíveis do morra per ello da sombria justiça daqueles tempos. Deste modo nos primeiros tempos o número reduzido de povoadores contrasta com a vastidão da terra e a grandeza da população indígena. As instruções dadas, em 1615, ao capitão Fragoso de Albuquerque, a fim de regular com o embaixador espanhol em França o tratado de tréguas com La Ravardière, são claras a respeito. Ali se afirma “que as terras do Brasil não estão despovoadas porque nelas existem mais de 3 mil portugueses”.

Isto para o Brasil todo — mais de cem anos após o descobrimento. . .

Segundo observa Aires de Casal[4]  “a população crescia tão devagar que na época da perda do sr. d. Sebastião (1580) ainda não havia um estabelecimento fora da ilha de Itamaracá cujos vizinhos andavam por uns duzentos, com três engenhos de açúcar”.

Quando alguns anos mais tarde se povoou melhor a Bahia, a desproporção entre o elemento europeu e os dois outros continuou desfavorável, em progressão aritmética perfeita. Segundo Fernão Cardim, ali existiam 2 mil brancos, 4 mil negros e 6 mil índios. É visível durante muito tempo a predominância do elemento autóctone. Nos primeiros cruzados, portanto, ele deve ter influído muito.

Os forasteiros que aproavam àquelas plagas eram, ademais, de molde para essa mistura em larga escala. Homens de guerra, sem lares, afeitos à vida solta dos acampamentos, ou degredados e aventureiros corrompidos, norteava‑os a todos como um aforismo o ultra equinotialem non peccavi, na frase de Barleus. A mancebia com as caboclas descambou logo em franca devassidão, de que nem o clero se isentava. O padre Nóbrega definiu bem o fato, na célebre carta ao rei ( 1549) em que, pintando com ingênuo realismo a dissociação dos costumes, declara estar o interior do país cheio de filhos de cristãos, multiplicando‑se segundo os hábitos gentílicos. Achava conveniente que lhe enviassem órfãs, ou mesmo mulheres “que fossem erradas, que todas achariam maridos, por ser a terra larga e grossa”. A primeira mestiçagem fez‑se, pois, nos primeiros tempos, intensamente, entre o europeu e o silvícola. “Desde cedo, di‑lo Casal, os tupiniquins, gentio de boa índole, foram cristianizados e aparentados com os europeus, sendo inúmeros os brancos naturais do país com casta tupiniquina”.

Por outro lado, embora existissem em grande cópia mesmo no reino, os africanos tiveram, no primeiro século, uma função inferior. Em muitos lugares rareavam. Eram poucos, diz aquele narrador sincero, no Rio Grande do Norte, “onde os índios há largo tempo que foram reduzidos, apesar da sua ferocidade e cujos descendentes por meio das alianças com os europeus e africanos têm aumentado as classes dos brancos e dos pardos”.

Estes excertos são expressivos.

Sem idéia alguma preconcebida, pode‑se afirmar que a extinção do indígena, no Norte, proveio, segundo o pensar de Varnhagen, mais em virtude de cruzamentos sucessivos que de verdadeiro extermínio.

Sabe-se ainda que havia no animo dos donatários a preocupação de aproveitar‑lhes o mais possível a aliança, captando‑lhes o apego. Este proceder refletia os intuitos da metrópole. Demonstram‑no‑lo as sucessivas cartas régias que, de 1570 a 1758 — em que pese “a uma série nunca interrompida de hesitações e contradições”[5] — apareceram como minorativo à ganância dos colonos visando a escravização do selvagem. Sendo que algumas, como a de 1680, estendiam a proteção ao ponto de decretar que se concedessem ao gentio terras “ainda mesmo as já dadas a outros de sesmaria”, visto que deviam ter preferência os mesmos índios “naturais senhores da terra”.

Contribuiu para esta tentativa persistente de incorporação a Companhia de Jesus que, obrigando‑se no Sul a transigências forçadas, dominava no Norte. Excluindo quaisquer intenções condenáveis, os jesuítas ali realizaram tarefa nobilitadora. Foram ao menos rivais do colono ganancioso. No embate estúpido da perversidade contra a barbaria, apareceu uma função digna àqueles eternos condenados. Fizeram muito. Eram os únicos homens disciplinados de seu tempo. Embora quimérica a tentativa de alçar o estado mental do aborígine às abstrações do monoteísmo, ela teve o valor de o atrair por muito tempo, até a intervenção oportuna de Pombal, para a nossa história.

O curso das missões, no Norte, em todo o trato de terras do Maranhão à Bahia, patenteia sobretudo um lento esforço de penetração no âmago das terras sertanejas, das fraldas da Ibiapaba às da Itiúba, que completa de algum modo a movimentação febril das bandeiras. Se estas difundiam largamente o sangue das três raças pelas novas paragens descobertas, provocando um entrelaçamento geral, a despeito das perturbações que acarretavam — os aldeamentos, centros da força atrativa do apostolado, fundiam as malocas em aldeias; unificavam as cabildas; integravam as tribos. Penetrando fundo nos sertões, graças a um esforço secular, os missionários salvaram em parte este fator das nossas raças. Surpreendidos vários historiadores pela vinda, em grandíssima escala, do africano, que iniciada em fins do século 16 nunca mais parou até o nosso (1850) e considerando que ele foi o melhor aliado do português na quadra colonial, dão‑lhe geralmente influência exagerada na formação do sertanejo do Norte. Entretanto, em que pese a esta invasão de vencidos e infelizes, e à sua fecundidade rara, e a suas qualidades de adaptação, apuradas na África adusta, é discutível que ela tenha atingido profundamente os sertões.

É certo que o consórcio afro‑lusitano era velho, anterior mesmo ao descobrimento, porque se consumara desde o século 15, com os azenegues e jalofos de Gil Eanes e Antão Gonçalves. Em 1530 salpintavam as ruas de Lisboa mais de 10 mil negros, e o mesmo sucedia noutros lugares. Em Évora tinham maioria sobre os brancos.

Os versos de um contemporâneo, Garcia de Resende, são um documento:

“Vemos no reino meter,

Tantos cativos crescer,

Irem-se os naturais,

Que, se assim for, serão mais

Eles que nós, a meu ver.”

 A gênese do mulato

Assim a gênese do mulato teve uma sede fora do nosso país. A primeira mestiçagem com o africano operou‑se na metrópole. Entre nós, naturalmente, cresceu. A raça dominada, porém, teve, aqui, dirimidas pela situação social, as faculdades de desenvolvimento. Organização potente afeita à humildade extrema, sem as rebeldias do índio, o negro teve, de pronto, sobre os ombros toda a pressão da vida colonial. Era a besta de carga adstrita a trabalhos sem folga. As velhas ordenações, estatuindo o “como se podem enjeitar os escravos e bestas por os acharem doentes ou mancos”, denunciam a brutalidade da época. Além disto — insistamos num ponto incontroverso — as numerosas importações de escravos se acumulavam no litoral. A grande tarja negra debruava a costa da Bahia ao Maranhão, mas pouco penetrava o interior. Mesmo em franca revolta, o negro humilde feito quilombola temeroso, agrupando‑se nos mocambos, parecia evitar o âmago do país. Palmares, com seus 30 mil mocambeiros, distava afinal poucas léguas da costa.

Nesta última a uberdade da terra fixara simultaneamente dois elementos, libertando o indígena. A cultura extensiva da cana, importada da Madeira, determinara o olvido dos sertões. Já antes da invasão holandesa[6],  do Rio Grande do Norte à Bahia havia 160 engenhos. E esta exploração, em dilatada escala, progrediu depois em rápido crescendo.

O elemento africano de algum modo estacou nos vastos canaviais da costa, agrilhoado à terra e determinando cruzamento de todo diverso do que se fazia no recesso das capitanias. Aí campeava, livre, o indígena inapto ao trabalho e rebelde sempre, ou mal tolhido nos aldeamentos pela tenacidade dos missionários. A escravidão negra, constituindo‑se derivativo ao egoísmo dos colonos, deixava aqueles mais desembaraçados que no Sul, nos esforços da catequese. Os próprios sertanistas ao chegarem, ultimando as rotas atrevidas, àquelas paragens, tinham extinta a combatividade.

Alguns, como Domingos Sertão, cerravam a vida aventureira, atraídos pelos lucros das fazendas de criação, abertas naqueles grandes latifúndios.

Deste modo se estabeleceu distinção perfeita entre os cruzamentos realizados no sertão e no litoral.

Com efeito, admitido em ambos como denominador comum o elemento branco, o mulato erige‑se como resultado principal do último e o curiboca do primeiro.

Capítulo II

Gênese dos jagunços

A demonstração é positiva. Há um notável traço de originalidade na gênese da população sertaneja, não diremos do Norte, mas do Brasil subtropical.

Esbocemo‑lo; e para não nos delongarmos demais, afastemo‑nos pouco do teatro em que se desenrolou o drama histórico de Canudos, percorrendo rapidamente o rio de São Francisco, “o grande caminho da civilização brasileira”, conforme o dizer feliz de um historiador[1].

Vimos, de relance, em páginas anteriores, que ele atravessa as regiões mais dispares. Ampla nas cabeceiras, a sua dilatada bacia colhe na rede de numerosos afluentes a metade de Minas, na zona das montanhas e das florestas. Estreita‑se depois passando na parte mediana pela paragem formosíssima dos gerais. No curso inferior, a jusante de Juazeiro, constrita entre pendores que a desnivelam torcendo‑a para o mar, torna‑se pobre de tributários, quase todos efêmeros, derivando, apertada por uma corredeira única de centenares de quilômetros, até Paulo Afonso — e corta a região maninha das caatingas.

Ora, sob esta tríplice disposição, é um diagrama da nossa marcha histórica, refletindo, paralelamente, as suas modalidades variáveis.

Balanceia a influência do Tietê.

Enquanto este, de traçado incomparavelmente mais próprio a penetração colonizadora, se tornou o caminho predileto dos sertanistas visando sobretudo a escravização e o “descimento” do gentio, o S. Francisco foi, nas altas cabeceiras, a sede essencial da agitação mineira; no curso inferior, o teatro das missões; e, na região média, a tem clássica do regímen pastoril, único compatível com a situação econômica e social da colônia.

Bateram‑lhe por igual as margens o bandeirante, o jesuíta e o vaqueiro.

Quando, mais tarde, maior cópia de documentos permitir a reconstrução da vida colonial, do século 17 ao fim do 18, é possível que o último, de todo olvidado ainda, avulte com o destaque que merece na formação da nossa gente. Bravo e destemeroso como o primeiro, resignado e tenaz como o segundo, tinha a vantagem de um atributo supletivo que faltou a ambos — a fixação ao solo.

As bandeiras, sob os dois aspectos que mostram, já destacados, já confundidos, investindo com a tem ou com o homem, buscando o ouro ou o escravo, desvendavam desmedidas paragens, que não povoavam e deixavam porventura mais desertas, passando rápidas sobre as malocas e as catas.

A sua história, às vezes inextricável como os dizeres adrede obscuros dos roteiros, traduz a sucessão e enlace destes estímulos únicos revezando‑se quer consoante a índole dos aventureiros, quer de acordo com a maior ou menor praticabilidade das empresas planeadas. E, neste permanente oscilar entre aqueles dois desígnios, a sua função realmente útil, no desvendar o desconhecido, repontava como incidente obrigado, conseqüência inevitável em que se não cuidava.

Assim é que extinta com a expedição de Glimmer (1601) a visão enganadora da serra das Esmeraldas, que desde meados do século 18 atraíra para os flancos do Espinhaço, um após outros, inacessíveis a constantes malogros, Bruzzo Spinosa, Sebastião Tourinho, Dias Adorno e Martins Carvalho, e desaparecendo ao norte o pais encantado que idealizara a imaginação romântica de Gabriel Soares, grande parte do século 17 é dominada pelas lendas sombrias dos caçadores de escravos, centralizados pela figura brutalmente heróica de Antônio Raposo. É que se haviam apagado quase que ao mesmo tempo as miragens da misteriosa Sabará‑buçu e as das Minas de Prata, eternamente inatingíveis; até que, renovadas pelas pesquisas indecisas de Pais Leme, que avivou, depois de um apagamento quase secular, as veredas de Glimmer; alentadas pelas oitavas de ouro de Arzão pisando em 1693 as mesmas trilhas de Tourinho e Adorno; e ao cabo francamente ressurgindo logo depois com Bartolomeu Bueno, em Itaberaba, e Miguel Garcia, no Ribeirão do Carmo, as entradas sertanejas volvessem ao anelo primitivo e, irradiando do distrito de Ouro Preto, se espraiassem de novo, mais fortes, pelo país inteiro.

Ora, durante este período em que, aparentemente, só se observam, no litoral, a luta contra o batavo e, no âmago dos planaltos, o espantoso ondular das bandeiras, surgira na região que interfere o médio São Francisco um notável povoamento do qual os resultados somente depois apareceram.

Função histórica do rio S. Francisco

Formara‑se obscuramente. Determinaram‑no, em começo, as entradas a procura das minas de Moreia que, embora anônimas e sem brilho, parecem ter‑se prolongado até o governo de Lancastro, levando até as serranias de Macaúbas, além do Paramirim, sucessivas turmas de povoadores[2]. Vedado nos caminhos diretos e normais à costa, mais curtos porém interrompidos pelos paredões das serras ou trancados pelas matas, o acesso fazia‑se pelo S. Francisco. Abrindo aos exploradores duas entradas únicas, à nascente e à foz, levando os homens do Sul ao encontro dos homens do Norte, o grande rio erigia‑se desde o princípio com a feição de um unificador étnico, longo traço de união entre as duas sociedades que se não conheciam. Porque provindos dos mais diversos pontos e origens, ou fossem os paulistas de Domingos Sertão, ou os baianos de Garcia d’Ávila, ou os pernambucanos de Francisco Caldas, com os seus pequenos exércitos de tabajaras aliados, ou mesmo os portugueses de Manuel Nunes Viana, que dali partiu da sua fazenda do Escuro, em Carinhanha, para comandar os emboabas no rio das Mortes, os forasteiros, ao atingirem o âmago daquele sertão, raro voltavam.

A terra, do mesmo passo exuberante e acessível, compensava‑lhes a miragem desfeita das minas cobiçadas. A sua estrutura geológica original criando conformações topográficas em que as serranias, últimos esporões e contrafortes da cordilheira marítima, têm a atenuante dos tabuleiros vastos; a sua flora complexa e variável, em que se entrelaçam florestas sem a vastidão e o trançado impenetrável das do litoral, com o “mimoso” das planuras e o “agreste” das chapadas, desafogadas, todas, salteadamente, nos vastos claros das caatingas; a sua conformação hidrográfica especial de afluentes que se ajustam, quase simétricos, para o ocidente e o oriente ligando‑a, de um lado à costa, de outro ao centro dos planaltos — foram laços preciosos para a fusão desses elementos esparsos, atraindo‑os, entrelaçando‑os. E o regímen pastoril ali se esboçou como uma sugestão dominadora dos gerais.

Nem faltava para isto, sobre a rara fecundidade do solo recamado de pastagens naturais, um elemento essencial, o sal, gratuito, nas baixadas salobras dos barreiros[3].

Constituiu‑se, desta maneira favorecida, a extensa zona de criação de gado que já no alvorecer do século 18 ia das raias setentrionais de Minas a Goiás, ao Piauí, aos extremos do Maranhão e Ceará pelo ocidente e norte e às serranias das lavras baianas, a leste. Povoara‑se e crescera autônoma e forte, mas obscura, desadorada dos cronistas do tempo, de todo esquecida não já pela metrópole longínqua senão pelos próprios governadores e vice‑reis. Não produzia impostos ou rendas que interessassem o egoísmo da coroa. Refletia, entretanto, contraposta à turbulência do litoral e às aventuras das minas, “o quase único aspecto tranqüilo da nossa cultura[4]”. A parte os raros contingentes de povo adores pernambucanos e baianos, a maioria dos criadores opulentos, que ali se formaram? vinha do sul, constituída pela mesma gente entusiasta e enérgica das bandeiras.

Os jagunços: colaterais prováveis dos paulistas

Segundo o que se colhe em preciosas páginas de Pedro Taques[5], foram numerosas as famílias de S. Paulo que, em contínuas migrações, procuraram aqueles rincões longínquos, e acredita‑se, aceitando o conceito de um historiógrafo perspicaz, que o “vale de S. Francisco, já aliás muito povoado de paulistas e de seus descendentes desde o século 18, tornou‑se uma como colônia quase exclusiva deles[6]”. É natural por isto que Bartolomeu Bueno, ao descobrir Goiás, visse, surpreendido, sinais evidentes de predecessores, anônimos pioneiros que ali tinham chegado, certo, pelo levante, transmontando a serra de Paranã; e que ao se reabrir em 1697 o ciclo mais notável das pesquisas do ouro, nas agitadas e ruidosas vagas de imigrantes, que rolavam dos flancos orientais da serra do Espinhaço ao talvegue do rio das Velhas, passassem mais fortes talvez, talvez precedendo as demais no descobrimento das minas de Caeté, e sulcando‑as de meio a meio, e avançando em direção contrária como um refluxo promanado do Norte, as turmas dos “baianos”, termo que, como o de “paulista”, se tornara genérico no abranger os povoadores setentrionais[7].

O vaqueiro

É que já se formara no vale médio do grande rio uma raça de cruzados idênticos àqueles mamalucos estrênuos que tinham nascido em S. Paulo. E não nos demasiamos em arrojada hipótese admitindo que este tipo extraordinário do paulista, surgindo e decaindo logo no Sul, numa degeneração completa ao ponto de declinar no próprio território que lhe deu o nome, ali renascesse e, sem os perigos das migrações e do cruzamento, se conservasse prolongando, intacta, ao nosso tempo, a índole varonil e aventureira dos avós.

Porque ali ficaram, inteiramente divorciados do resto do Brasil e do mundo, murados a leste pela serra Geral, tolhidos no ocidente pelos amplos campos gerais, que se desatam para o Piauí e que ainda hoje o sertanejo acredita sem fins.

O meio atraía‑os e guardava‑os.

As entradas de um e outro lado da meridiana, impróprias à dispersão, facilitavam antes o entrelaçamento dos extremos do país. Ligavam‑nos no espaço e no tempo. Estabelecendo no interior a contigüidade do povoamento, que faltava ainda em parte na costa, e surgindo entre os nortistas, que lutavam pela autonomia da pátria nascente, e os sulistas, que lhe alargavam a área, abastecendo‑os por igual com as fartas boiadas que subiam para o vale do rio das Velhas ou desciam até as cabeceiras do Parnaíba, aquela rude sociedade, incompreendida e olvidada, era o cerne vigoroso da nossa nacionalidade.

Os primeiros sertanistas que a criaram, tendo suplantado em toda a linha o selvagem, depois de o dominarem escravizaram‑no e captaram‑no, aproveitando‑lhe a índole na nova indústria que abraçavam.

Veio subseqüentemente o cruzamento inevitável. E despontou logo uma raça de curibocas puros quase sem mescla de sangue africano, facilmente denunciada, hoje, pelo tipo normal daqueles sertanejos. Nasciam de um amplexo feroz de vitoriosos e vencidos. Criaram‑se numa sociedade revolta e aventurosa, sobre a terra farta; e tiveram, ampliando os seus atributos ancestrais, uma rude escola de forca e de coragem naqueles gerais amplíssimos, onde ainda hoje ruge impune o jaguar e vagueia a ema velocíssima, ou nas serranias de flancos despedaçados pela mineração superficial, quando as lavras baianas, mais tarde, lhes deram esse derivativo à faina dos rodeios.

Fora longo traçar‑lhes a evolução do caráter. Caldeadas a índole aventureira do colono e a impulsividade do indígena, tiveram, ulteriormente, o cultivo do próprio meio que lhes propiciou, pelo insulamento, a conservação dos atributos e hábitos avoengos, ligeiramente modificados apenas consoante as novas exigências da vida. E ali estão com as suas vestes características, os seus hábitos antigos, o seu estranho aferro às tradições mais remotas, o seu sentimento religioso levado até o fanatismo, e o seu exagerado ponto de honra, e o seu folclore belíssimo de rimas de três séculos…

Raça forte e antiga, de caracteres definidos e imutáveis mesmo nas maiores crises — quando a roupa de couro do vaqueiro se faz a armadura flexível do jagunço — oriunda de elementos convergentes de todos os pontos, porém diversa das demais deste país, ela é inegavelmente um expressivo exemplo do quanto importam as reações do meio. Expandindo‑se pelos sertões limítrofes ou próximos, de Goiás, Piauí, Maranhão, Ceará e Pernambuco, tem um caráter de originalidade completa expresso mesmo nas fundações que erigiu. Todos os povoados, vilas ou cidades, que lhe animam hoje o território, têm uma origem uniforme bem destacada das dos demais que demoram ao norte e ao sul.

Enquanto deste lado se levantaram nas cercanias das minas ou à margem das catas, e no extremo norte, a partir de dilatada linha entre a Itiúba e Ibiapaba, sobre o local de antigas aldeias das missões, ali surgiram, todas, de antigas fazendas de gado.

Escusamo‑nos de apontar exemplos por demais numerosos. Quem considera as povoações do S. Francisco, das nascentes à foz, assiste à sucessão dos três casos apontados.

Deixa as regiões alpestres, cidades alcandoradas sobre serras, refletindo o arrojo incomparável das bandeiras; atravessa depois os grandes gerais, desmedidas arenas feitas à sociedade rude, libérrima e forte dos vaqueiros; e atinge por fim as paragens pouco apetecidas, amaninhadas pelas secas, eleitas aos roteiros lentos e penosos das missões…

É o que indicam, completando estes ligeiros confrontos, os traçados das fundações jesuíticas, no trato de terras que há pouco demarcamos.

 Fundações jesuíticas na Bahia

Com efeito, ali, totalmente diversos na origem, os atuais povoados sertanejos se formaram de velhas aldeias de índios, arrebatadas, em 1758, do poder dos padres pela política severa de Pombal. Resumindo‑nos aos que ainda hoje existem, próximos e em torno do lugar onde existia há cinco anos a Tróia de taipa dos jagunços, vemos, mesmo em tão estreita área, os melhores exemplos.

De fato, em toda esta superfície de terras, que abusivas concessões de sesmarias subordinavam à posse de uma só família, a de Garcia d’Ávila (Casa da Torre), acham‑se povoados antiqüíssimos. De Itapicuru‑de‑Cima a Jeremoabo e daí acompanhando o S. Francisco até os sertões de Rodelas e Cabrobó, avançaram logo no século 17 as missões num lento caminhar que continuaria até o nosso tempo.

Não tiveram um historiador.

A extraordinária empresa apenas se retrata, hoje, em raros documentos, escassos demais para traçarem a sua continuidade. Os que existem, porém, são eloqüentes para o caso especial que consideramos. Dizem, de modo iniludível, que, enquanto o negro se agitava na azáfama do litoral, o indígena se fixava em aldeamentos que se tornariam cidades. A solicitude calculada do jesuíta e a rara abnegação dos capuchinhos e franciscanos incorporavam as tribos à nossa vida nacional e quando no alvorecer do século 18 os paulistas irromperam em Pambu e na Jacobina, deram de vistas, surpresos, nas paróquias que, ali, já centralizavam cabildas. O primeiro daqueles lugares, 22 léguas a montante de Paulo Afonso, desde 1682 se incorporara à administração da metrópole. Um capuchinho dominava‑o, desfazendo as dissenções tribais e imperando, humílimo, sobre os morubixabas mansos. No segundo preponderava, igualmente exclusivo, o elemento indígena da velhíssima missão do Saí.

Jeremoabo aparece, já em 1698, como julgado, o que permite admitir‑se‑lhe origem muito mais remota. Aí o elemento indígena se mesclava ligeiramente com o africano, o canhembora ao quilombola[8]. Incomparavelmente mais animado do que hoje, o humilde lugarejo desviava para si, não raro, a atenção de João de Lancastro, governador geral do Brasil, principalmente quando se exacerbavam as rivalidades dos chefes índios, munidos com as patentes, perfeitamente legais, de capitães. Em 1702 a primeira missão dos franciscanos disciplinou aqueles lugares, tornando‑se mais eficaz que as ameaças do governo. Harmonizaram‑se as cabildas; e o afluxo de silvícolas captados pela Igreja foi tal que em um só dia o vigário de Itapicuru batizou 3.700 catecúmenos[9].

Perto se erigia, também vetusta, a missão de Maçacará, onde, em 1687, tinha o opulento Garcia d’Ávila uma companhia de seu regimento[10]. Mais para o sul avultavam outras: Natuba, também bastante antiga aldeia, ereta pelos jesuítas; Inhambupe, que no elevar‑se a paróquia originou larga controvérsia entre os padres e o rico sesmeiro precitado; Itapicuru ( 1639 ), fundada pelos franciscanos.

Mais para o norte, ao começar o século 18, o povoamento, com os mesmos elementos, continuou mais intenso, diretamente favorecido pela metrópole.

Na segunda metade do século 17 surgira no sertão de Rodelas a vanguarda das bandeiras do sul. Domingos Sertão centralizou na sua fazenda do Sobrado o círculo animado da vida sertaneja. A ação desse rude sertanista, naquela região, não tem tido o relevo que merece. Quase na confluência das capitanias setentrionais, próximo ao mesmo tempo do Piauí, do Ceará, de Pernambuco e da Bahia, o rústico landlord colonial aplicou no trato de suas cinqüenta fazendas de criação a índole aventurosa e irrequieta dos curibocas. Ostentando, como os outros dominadores do solo, um feudalismo achamboado — que o levava a transmudar, em vassalos os foreiros humildes e em servos os tapuias mansos —, o bandeirante atingindo aquelas paragens, e havendo conseguido o seu ideal de riqueza e poderio, aliava‑se na mesma função integradora ao seu tenaz e humilde adversário, o padre. 1: que a metrópole, no Norte, secundava, sem vacilar, os esforços deste último. Firmara‑se desde muito o princípio de combater o índio com o próprio índio, de sorte que cada aldeamento de catecúmenos era um reduto ante as incursões dos silvícolas soltos e indomáveis.

Ao terminar o século 17, Lancastro fundou com o indígena catequizado o arraial da Barra, para atenuar as depredações dos Acaroazes e Mocoazes. E daquele ponto à feição da corrente do São Francisco sucederam‑se os aldeamentos e as missões, em Nossa Senhora do Pilar, Sorobabé, Pambu, Aracapá, Pontal, Pajeú etc. É evidente, pois, que, precisamente no trecho dos sertões baianos mais ligados aos dos demais Estados do Norte — em toda a orla do sertão de Canudos — se estabeleceu desde o alvorecer da nossa história um farto povoamento, em que sobressaía o aborígine amalgamando‑se ao branco e ao negro, sem que estes se avolumassem ao ponto de dirimir a sua influência inegável.

As fundações ulteriores à expulsão dos jesuítas calcaram‑se no mesmo método. Do final do século 18 ao nosso, em Pombal, no Cumbe, em Bom Conselho e Monte Santo etc., perseverantes missionários, de que é modelo belíssimo Apolônio de Todi, continuaram até os nossos dias o apostolado penoso.

Ora, toda essa população perdida num recanto dos sertões lá permaneceu até agora, reproduzindo‑se livre de elementos estranhos, como que insulada, e realizando, por isso mesmo, a máxima intensidade de cruzamento uniforme capaz de justificar o aparecimento de um tipo mestiço bem definido, completo.

Enquanto mil causas perturbadoras complicavam a mestiçagem no litoral revolvido pelas imigrações e pela guerra; e noutros pontos centrais outros empeços irrompiam no rastro das bandeiras — ali, a população indígena, aliada aos raros mocambeiros foragidos, brancos escapos à justiça ou aventureiros audazes, persistiu dominante.

Causas favoráveis à formação mestiça nos sertões distinguindo‑a dos cruzamentos no litoral

Não sofismemos a História Causas muito enérgicas determinaram o insulamento e conservação do autóctone. Destaquemo‑las.

Foram, primeiro, as grandes concessões de sesmarias, definidoras da feição mais durável do nosso feudalismo tacanho.

Os possuidores do solo, de que são modelos clássicos os herdeiros de Antônio Guedes de Brito, eram ciosos dos dilatados latifúndios, sem raias, avassalando a terra. A custo toleravam a intervenção da própria metrópole. A ereção de capelas, ou paróquias, em suas terras fazia‑se sempre através de controvérsias com os padres; e embora estes afinal ganhassem a partida caíam de algum modo sob o domínio dos grandes potentados. Estes dificultavam a entrada de novos povoadores ou concorrentes e tornavam as fazendas de criação, dispersas em torno das freguesias recém‑formadas, poderosos centros de atração à raça mestiça que delas promanava.

Assim, esta se desenvolveu fora do influxo de outros elementos. E entregues à vida pastoril, a que por índole se afeiçoavam, os curibocas ou cafuzos trigueiros, antecedentes diretos dos vaqueiros atuais, divorciados inteiramente das gentes do sul e da colonização intensa do litoral, evolveram, adquirindo uma fisionomia original. Como que se criaram num país diverso.

A carta régia de 7 de fevereiro de 1701 foi, depois, uma medida supletiva desse isolamento. Proibira, cominando severas penas aos infratores, quaisquer comunicações daquela parte dos sertões com o sul, com as minas de São Paulo. Nem mesmo as relações comerciais foram toleradas; interditas as mais simples trocas de produtos.

Ora, além destes motivos, sobreleva‑se, considerando a gênese do sertanejo no extremo norte, um outro: o meio físico dos sertões em todo o vasto território que se alonga do leito do Vaza‑Barris ao do Parnaíba, no ocidente.

Vimos‑lhe a fisionomia original: a flora agressiva, o clima impiedoso, as secas periódicas, o solo estéril crespo de serranias desnudas, insulado entre os esplendores do majestoso araxá[11] do centro dos planaltos e as grandes matas, que acompanham e orlam a curvatura das costas. Esta região ingrata para a qual o próprio tupi tinha um termo sugestivo pora‑pora‑eima[12], remanescente ainda numa das serranias que a fecham pelo levante ( Borborema ), foi o asilo do tapuia. Batidos pelo português, pelo negro e pelo tupi coligados, refluindo ante o número, os indômitos Cariris encontraram proteção singular naquele colo duro da terra, escalavrado pelas tormentas, endurado pela ossamenta rígida das pedras, ressequido pelas soalheiras, esvurmando espinheirais e caatingas. Ali se amorteciam, caindo no vácuo das chapadas, onde ademais nenhuns indícios se mostravam dos minérios apetecidos, os arremessos das bandeiras. A tapui‑retama[13] misteriosa ataviara‑se para o estoicismo do missionário. As suas veredas multívias e longas retratavam a marcha lenta, torturante e dolorosa dos apóstolos. As bandeiras, que a alcançavam, decampavam logo, seguindo, rápidas, fugindo, buscando outras paragens.

Assombrava‑as a terra, que se modelara para as grandes batalhas silenciosas da fé. Deixavam‑na, sem que nada lhes determinasse a volta; e deixavam em paz o gentio.

Daí a circunstância, revelada por uma observação feliz, de predominarem ainda hoje, nas denominações geográficas daqueles lugares, termos de origem tapuia resistentes às absorções do português e do tupi, que se exercitaram noutros pontos. Sem nos delongarmos demais, resumamos às terras circunjacentes a Canudos a exemplificação deste fato de linguagem, que tão bem traduz uma vicissitude histórica.

“Transpondo S.Francisco em direção ao sul, penetra‑se de novo numa região ingrata pela inclemência do céu, e vai‑se atravessando a bacia elevada do Vaza‑Barris, antes de ganhar os trechos esparsos e mais deprimidos das chapadas baianas que, depois do salto de Paulo Afonso, depois de Canudos e de Monte Santo, levam a Itiúba, ao Tombador e ao Açuruá. Aí, nesse trecho do pátrio território, aliás dos mais ingratos, onde outrora se refugiaram os perseguidos destroços dos Orizes, Procás e Cariris, de novo aparecem, designando os lugares, os nomes bárbaros de procedência tapuia, que nem o português nem o tupi logrou suplantar.

Lêem‑se então no mapa da região com a mesma freqüência dos acidentes topográficos os nomes como Pambu, Patamuté, Uauá, Bendegó, Cumbe, Maçacará, Cocorobó, Jeremoabo, Tragagó, Canché. Chorrochó, Quincuncá, Conchó, Centocé, Açuruá, Xique‑Xique, Jequié, Sincorá, Caculé ou Catolé, Orobó, Mocugé, e outros, igualmente bárbaros e estranhos.[14]

É natural que grandes populações sertanejos, de par com as que se constituíam no médio S. Francisco, se formassem ali com a dosagem preponderante do sangue tapuia. E lá ficassem ablegadas, evolvendo em círculo apertado durante três séculos, até a nossa idade, num abandono completo, de todo alheio aos nossos destinos, guardando, intactas, as tradições do passado. De sorte que. hoje, quem atravessa aqueles lugares observa uma uniformidade notável entre os que os povoam: feições e estaturas variando ligeiramente em torno de um modelo único, dando a impressão de um tipo antropológico invariável, logo ao primeiro lance de vistas distinto do mestiço proteiforme do litoral. Porque enquanto este patenteia todos os cambiantes da cor e se erige ainda indefinido, segundo o predomínio variável dos seus agentes formadores, e homem do sertão parece feito por um molde único, revelando quase os mesmos caracteres físicos, a mesma tez, variando brevemente do mamaluco bronzeado ao cafuz trigueiro; cabelo corredio e duro ou levemente ondeado; a mesma envergadura atlética e  os mesmos caracteres morais traduzindo‑se nas mesmas superstições. nos mesmos vícios, e nas mesmas virtudes.

A uniformidade, sob estes vários aspectos, é impressionadora. O sertanejo do norte é, inegavelmente, o tipo de uma subcategoria étnica já constituída.

Um parêntesis irritante

Abramos um parêntesis…

A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso. O indo‑europeu, o negro e o brasílio‑guarani ou o tapuia, exprimem estádios evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sobre obliterar as qualidades preeminentes do primeiro, é um estimulante à revivescência dos atributos primitivos dos últimos. De sorte que o mestiço — traço de união entre as raças, breve existência individual em que se comprimem esforços seculares — é, quase sempre, um desequilibrado. Foville compara‑os, de um modo geral, aos histéricos. Mas o desequilíbrio nervoso, em tal caso, é incurável: não há terapêutica para este embater de tendências antagonistas, de raças repentinamente aproximadas, fundidas num organismo isolado. Não se compreende que após divergirem extremadamente, através de largos períodos entre os quais a História é um momento, possam dois ou três povos convergir, de súbito, combinando constituições mentais diversas, anulando em pouco tempo distinções resultantes de um lento trabalho seletivo. Como nas somas algébricas, as qualidades dos elementos que se justapõem não se acrescentam, subtraem‑se ou destróem‑se segundo os caracteres positivos e negativos em presença. E o mestiço — mulato, mamaluco ou cafuz — menos que um intermediário, é um decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores. Contrastando com a fecundidade que acaso possua, ele revela casos de hibridez moral extraordinários: espíritos fulgurantes, às vezes, mais frágeis, irrequietos, inconstantes, deslumbrando um momento e extinguindo‑se prestes, feridos pela fatalidade das leis biológicas, chumbados ao plano inferior da raça menos favorecida. Impotente para formar qualquer solidariedade entre as gerações opostas, de que resulta, reflete‑lhes os vários aspectos predominantes num jogo permanente de antíteses. E quando avulta — não são raros os casos — capaz das grandes generalizações ou de associar as mais complexas relações abstratas, todo esse vigor mental repousa (salvante os casos excepcionais cujo destaque justifica o conceito) sobre uma moralidade rudimentar, em que se pressente o automatismo impulsivo das raças inferiores.

É que nessa concorrência admirável dos povos, evolvendo todos em luta sem tréguas, na qual a seleção capitaliza atributos que a hereditariedade conserva, o mestiço é um intruso. Não lutou; não é uma integração de esforços; é alguma coisa de dispersivo e dissolvente; surge, de repente, sem caracteres próprios, oscilando entre influxos opostos de legados discordes. A tendência à regressão às raças matrizes caracteriza a sua instabilidade. É a tendência instintiva a uma situação de equilíbrio. As leis naturais pelo próprio jogo parecem extinguir, a pouco e pouco, o produto anômalo que as viola, afogando‑o nas próprias fontes geradoras. O mulato despreza então, irresistivelmente, o negro e procura com uma tenacidade ansiosíssima cruzamentos que apaguem na sua prole o estigma da fronte escurecida; o mamaluco faz‑se o bandeirante inexorável, precipitando‑se, ferozmente, sobre as cabildas aterradas…

Esta tendência é expressiva. Reata, de algum modo, a série contínua da evolução, que a mestiçagem partira. A raça superior torna‑se o objetivo remoto para onde tendem os mestiços deprimidos e estes, procurando‑a, obedecem ao próprio instinto da conservação e da defesa. É que são invioláveis as leis do desenvolvimento das espécies; e se toda a sutileza dos missionários tem sido impotente para afeiçoar o espírito do selvagem às mais simples concepções de um estado mental superior; se não há esforços que consigam do africano, entregue à solicitude dos melhores mestres, o aproximar‑se sequer do nível intelectual médio do indo‑europeu — porque todo o homem é antes de tudo uma integração de esforços da raça a que pertence e o seu cérebro uma herança —, como compreender‑se a normalidade do tipo antropológico que aparece, de improviso, enfeixando tendências tão opostas ?

Uma raça forte

Entretanto a observação cuidadosa do sertanejo do Norte mostra atenuado esse antagonismo de tendências e uma quase fixidez nos caracteres fisiológicos do tipo emergente.

Este fato, que contrabate, ao parecer, as linhas anteriores, é a sua contraprova frisante.

Com efeito, é inegável que para a feição anormal dos mestiços de raças mui diversas contribui bastante o fato de acarretar o elemento étnico mais elevado, mais elevadas condições de vida, de onde decorre a acomodação penosa e difícil para aqueles. E desde que desça sobre eles a sobrecarga intelectual e moral de uma civilização, o desequilíbrio é inevitável.

A índole incoerente, desigual e revolta do mestiço, como que denota um íntimo e intenso esforço de eliminação dos atributos que lhe impedem a vida num meio mais adiantado e complexo. Reflete — em círculo diminuto — esse combate surdo e formidável, que é a própria luta pela vida das raças, luta comovedora e eterna caracterizada pelo belo axioma de Gumplowicz como a força motriz da História. O grande professor de Gratz não a considerou sob este aspecto. A verdade, porém, é que se todo o elemento étnico forte “tende subordinar ao seu destino o elemento mais fraco antes o qual se acha”, encontra na mestiçagem um caso perturbador. A expansão irresistível do seu círculo singenético, porém, por tal forma iludida, retarda‑se apenas. Não se extingue. A luta transmuda‑se, tornando‑se mais grave. Volve do caso vulgar, do extermínio franco da raça inferior pela guerra, à sua eliminação lenta, à sua absorção vagarosa, à sua diluição no cruzamento. E durante o curso deste processo redutor, os mestiços emergentes, variáveis, com todas as nuanças da cor, da forma e do caráter, sem feições definidas, sem vigor, e as mais vezes inviáveis, nada mais são, em última análise, do que os mutilados inevitáveis do conflito que perdura, imperceptível, pelo correr das idades.

É que neste caso a raça forte não destrói a fraca pelas armas, esmaga‑a pela civilização.

Ora, os nossos rudes patrícios dos sertões do Norte forraram‑se a esta última. O abandono em que jazeram teve função benéfica. Libertou‑os da adaptação penosíssima a um estádio social superior, e, simultaneamente, evitou que descambassem para as aberrações e vícios dos meios adiantados.

A fusão entre eles operou‑se em circunstâncias mais compatíveis com os elementos inferiores. O fator étnico preeminente transmitindo‑lhes as tendências civilizadoras não lhes impôs a civilização.

Este fato destaca fundamentalmente a mestiçagem dos sertões da do litoral. São formações distintas, senão pelos elementos, pelas condições do meio. O contraste entre ambas ressalta ao paralelo mais simples. O sertanejo tomando em larga escala, do selvagem, a intimidade com o meio físico, que ao invés de deprimir enrija o seu organismo potente, reflete, na índole e nos costumes, das outras raças formadoras apenas aqueles atributos mais ajustáveis à sua fase social incipiente.

É um retrógrado; não é um degenerado. Por isto mesmo que as vicissitudes históricas o libertaram, na fase delicadíssima da sua formação, das exigências desproporcionadas de uma cultura de empréstimo, prepararam‑no para a conquistar um dia.

A sua evolução psíquica, por mais demorada que esteja destinada a ser, tem, agora, a garantia de um tipo fisicamente constituído e forte. Aquela raça cruzada surge autônoma e, de algum modo, original, transfigurando, pela própria combinação, todos os atributos herdados; de sorte que, despeada afinal da existência selvagem, pode alcançar a vida civilizada por isto mesmo que não a atingiu de repente.

Aparece logicamente.

Ao invés da inversão extravagante que se observa nas cidades do litoral, onde funções altamente complexas se impõem a órgãos mal constituídos, comprimindo‑os e atrofiando‑os antes do pleno desenvolvimento — nos sertões a integridade orgânica do mestiço desponta inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, capaz de evolver, diferenciando‑se, acomodando‑se a novos e mais altos destinos. porque é a sólida base física do desenvolvimento  moral ulterior.

Deixemos, porém, este divagar pouco atraente.

Prossigamos considerando diretamente a figura original dos nossos patrícios retardatários. Isto sem método, despretensiosamente, evitando os garbosos neologismos etnológicos.

Faltaram‑nos, do mesmo passo, tempo e competência para nos enredarmos em fantasias psíquico‑geométricas, que hoje se exageram num quase materialismo filosófico, medindo o ângulo facial, ou traçando a norma verticalis dos jagunços.

Se nos embaraçássemos nas imaginosas linhas dessa espécie de topografia psíquica, de que tanto se tem abusado, talvez não os compreendêssemos melhor. Sejamos simples copistas.

Reproduzamos, intactas, todas as impressões, verdadeiras ou ilusórias, que tivemos quando, de repente, acompanhando a celeridade de uma marcha militar, demos de frente, numa volta do sertão, com aqueles desconhecidos singulares, que ali estão — abandonados — há três séculos.

Capítulo III

O sertanejo

O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.

A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta‑lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.

É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules‑Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava‑o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta‑se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo — cai é o termo — de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.

É o homem permanentemente fatigado.

Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.

Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.

Nada é mais surpreendedor do que vê‑la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam‑se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo‑lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura‑se. Empertiga‑se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma‑se‑lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem‑se‑lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.

Este contraste impõe‑se ao mais leve exame. Revela‑se a todo o momento, em todos os pormenores da vida sertaneja — caracterizado sempre pela intercadência impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas.

É impossível idear‑se cavaleiro mais chucro e deselegante; sem posição, pernas coladas ao bojo da montaria, tronco pendido para a frente e oscilando à feição da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Nesta atitude indolente, acompanhando morosamente, a passo, pelas chapadas, o passo tardo das boiadas, o vaqueiro preguiçoso quase transforma o “campeão” que cavalga na rede amolecedora em que atravessa dois terços da existência.

Mas se uma rês “alevantada” envereda, esquiva, adiante, pela caatinga garranchenta, ou se uma ponta de gado, ao longe, se trasmalha, ei‑lo em momentos transformado, cravando os acicates de rosetas largas nas ilhargas da montaria e partindo como um dardo, atufando‑se velozmente nos dédalos inextricáveis das juremas.

Vimo‑lo neste steeple‑chase bárbaro.

Não há contê‑lo, então, no ímpeto. Que se lhe antolhem quebradas, acervos de pedras, coivaras, moiras de espinhos ou barrancas de ribeirões, nada lhe impede encalçar o garrote desgarrado, porque “por onde passa o boi passa o vaqueiro com o seu cavalo”…

Colado ao dorso deste, confundindo‑se com ele, graças a pressão dos jarretes firmes, realiza a criação bizarra de um centauro bronco: emergindo inopinadamente nas clareiras; mergulhando nas macegas altas; saltando valos e ipueiras; vingando cômoros alçados; rompendo, célere, pelos espinheirais mordentes; precipitando‑se, a toda brida, no largo dos tabuleiros…

A sua compleição robusta ostenta‑se, nesse momento, em toda a plenitude. Como que é o cavaleiro robusto que empresta vigor ao cavalo pequenino e frágil, sustenta‑o nas rédeas improvisadas de caroá, suspendendo‑o nas esporas, arrojando‑o na carreira ‑estribando curto, pernas encolhidas, joelhos fincados para a frente, torso colado no arção — “escanchado no rastro” do novilho esquivo: aqui curvando‑se agilíssimo, sob um ramalho, que lhe roça quase pela sela; além desmontando, de repente, como um acrobata, agarrado às crinas do animal, para fugir ao embate de um tronco percebido no último momento e galgando, logo depois, num pulo, o selim; — e galopando sempre, através de todos os obstáculos, sopesando à destra sem a perder nunca, sem a deixar no inextricável dos cipoais, a longa aguilhada de ponta de ferro encastoada em couro, que por si só constituiria, noutras mãos, sérios obstáculos à travessia…

Mas terminada a refrega, restituída ao rebanho a rès dominada, ei‑lo, de novo caído sobre o lombilho retovado, outra vez desgracioso e inerte, oscilando à feição da andadura lenta’ com a aparência triste de um inválido esmorecido.

Tipos díspares: o jagunço e o gaúcho

O gaúcho do Sul, ao encontrá‑lo nesse instante, sobreolhá‑lo‑ia comiserado.

O vaqueiro do Norte é a sua antítese. Na postura, no gesto, na palavra, na índole e nos hábitos não há equipará‑los. O primeiro, filho dos plainos sem fins, afeito às correrias fáceis nos pampas e adaptado a uma natureza carinhosa que o encanta, tem, certo, feição mais cavalheirosa e atraente. A luta pela vida não lhe assume o caráter selvagem da dos sertões do Norte. Não conhece os horrores da seca e os combates cruentos com a terra árida e exsicada. Não o entristecem as cenas periódicas da devastação e da miséria, o quadro assombrador da absoluta pobreza do solo calcinado, exaurido pela adustão dos sóis bravios do Equador. Não tem, no meio das horas tranqüilas da felicidade, a preocupação do futuro, que é sempre uma ameaça, tornando aquela instável e fugitiva. Desperta para a vida amando a natureza deslumbrante que o aviventa; e passa pela vida, aventureiro, jovial, diserto, valente e fanfarrão, despreocupado, tendo o trabalho como uma diversão que lhe permite as disparadas, domando distancias, nas pastagens planas, tendo aos ombros, palpitando aos ventos o pala inseparável, como uma flâmula festivamente desdobrada.

As suas vestes são um traje de festa, ante a vestimenta rústica do vaqueiro. As amplas bombachas, adrede talhadas para a movimentação fácil sobre os baguaís, no galope fechado ou no corcovear raivoso, não se estragam em espinhos dilaceradores de caatingas. O seu poncho vistoso jamais fica perdido, embaraçado nos esgalhos das árvores garranchentas. E, rompendo pelas coxilhas, arrebatadamente na marcha do redomão desensofrido, calçando as largas botas russilhonas, em que retinem as rosetas das esporas de prata; lenço de seda encarnado, ao pescoço; coberto pelo sombreiro de enormes abas flexíveis, e tendo à cinta, rebrilhando, presas pela guaiaca, a pistola e a faca — é um vitorioso jovial e forte. O cavalo, sócio inseparável desta existência algo romanesca, é quase objeto de luxo. Demonstra‑o o arreamento complicado e espetaculoso. O gaúcho andrajoso sobre um “pingo” bem aperado está decente, está corretíssimo. Pode atravessar sem vexames os vilarejos em festa.

O vaqueiro

O vaqueiro, porém, criou‑se em condições opostas, em uma intermitência, raro perturbada, de horas felizes e horas cruéis, de abastança e misérias — tendo sobre a cabeça, como ameaça perene, o sol, arrastando de envolta, no volver das estações, períodos sucessivos de devastações e desgraças.

Atravessou a mocidade numa intercadência de catástrofes. Fez‑se homem, quase sem ter sido criança. Salteou‑o, logo, intercalando‑lhe agruras nas horas festivas da infância, o espantalho das secas no sertão. Cedo encarou a existência pela sua face tormentosa. É um condenado à vida. Compreendeu‑se envolvido em combate sem tréguas, exigindo‑lhe imperiosamente a convergência de todas as energias.

Fez‑se forte, esperto, resignado e prático.

Aprestou‑se, cedo, para a luta.

O seu aspecto recorda, vagamente, à primeira vista, o de guerreiro antigo exausto da refrega. As vestes são uma armadura. Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro; calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas, cosidas às pernas e subindo até as virilhas, articuladas em joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guarda‑pés de pele de veado — é como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo.

Esta armadura, porém, de um vermelho pardo, como se fosse de bronze flexível, não tem cintilações, não rebrilha ferida pelo sol. É fosca e poenta. Envolve ao combatente de uma batalha sem vitórias…

A sela da montaria, feita por ele mesmo, imita o lombilho rio‑grandense, mas é mais curta e cavada, sem os apetrechos luxuosos daquele. São acessórios uma manta de pele de bode, um couro resistente, cobrindo as ancas do animal, peitorais que lhe resguardam o peito, e as joelheiras apresilhadas às juntas.

Este equipamento do homem e do cavalo talha‑se à feição do meio. Vestidos doutro modo não romperiam, incólumes, as caatingas e os pedregais cortantes.

Nada mais monótono e feio, entretanto, do que esta vestimenta original, de uma só cor — o pardo avermelhado do couro curtido — sem uma variante, sem uma lista sequer diversamente colorida. Apenas, de longe em longe, nas raras encamisadas em que aos descantes da viola o matuto deslembra as horas fatigadas, surge uma novidade — um colete vistoso de pele de gato do mato ou de suçuarana, com o pelo mosqueado virado para fora, ou uma bromélia rubra e álacre fincada no chapéu de couro.

Isto, porém, é incidente passageiro e raro.

Extintas as horas do folguedo, o sertanejo perde o desgarre folgazão — largamente expandido nos sapateados, em que o estalo seco das alpercatas sobre o chão se perde nos tinidos das esporas e soalhas dos pandeiros, acompanhando a cadência das violas vibrando nos rasgados — e cai na postura habitual, tosco, deselegante e anguloso, num estranho manifestar de desnervamento e cansaço extraordinários.

Ora, nada mais explicável do que este permanente contraste entre extremas manifestações de força e agilidade e longos intervalos de apatia.

Perfeita tradução moral dos agentes físicos da sua terra, o sertanejo do norte teve uma árdua aprendizagem de reveses. Afez‑se, cedo, a encontrá‑los, de chofre, e a reagir, de pronto.

Atravessa a vida entre ciladas, surpresas repentinas de uma natureza incompreensível, e não perde um minuto de tréguas. É o batalhador perenemente combalido e exausto, perenemente audacioso e forte; preparando‑se sempre para um rencontro que não vence e em que se não deixa vencer; passando da máxima quietude à máxima agitação; da rede preguiçosa e cômoda para o lombilho duro, que o arrebata como um raio pelos arrastadores estreitos, em busca das malhadas. Reflete, nestas aparências que se contrabatem, a própria natureza  que o rodeia — passiva ante o jogo dos elementos e passando, sem transição sensível, de uma estação à outra, da maior exuberância à penúria dos desertos incendidos, sob o reverberar dos estios abrasantes.

É inconstante como ela. É natural que o seja. Viver é adaptar‑se. Ela talhou‑o à sua imagem: bárbaro, impetuoso, abrupto…

 O gaúcho

O gaúcho, o pealador valente, é, certo, inimitável, numa carga guerreira; precipitando‑se, ao ressoar estrídulo dos clarins vibrantes, pelos pampas, com o conto da lança enristada, firme no estribo; atufando‑se loucamente nos entreveros; desaparecendo, com um grito triunfal, na voragem do combate, onde espadanam cintilações de espadas; transmudando o cavalo em projétil e varanda quadrados e levando de rojo o adversário no rompão das ferraduras, ou tombando, prestes, na luta, em que entra com despreocupação soberana pela vida.

O jagunço

O jagunço é menos teatralmente heróico; é mais tenaz; é mais resistente; é mais perigoso; é mais forte; é mais duro.

Raro assume esta feição romanesca e gloriosa. Procura o adversário com o propósito firme de o destruir, seja como for.

Está afeiçoado aos prélios obscuros e longos, sem expansões entusiásticas. A sua vida é uma conquista arduamente feita, em faina diuturna. Guarda‑a como capital precioso. Não esperdiça a mais ligeira contração muscular, a mais leve vibração nervosa sem a certeza do resultado. Calcula friamente o pugilato. Ao “riscar da faca” não dá um golpe em falso. Ao apontar a lazarina longa ou o trabuco pesado, dorme na pontaria..

Se, ineficaz o arremesso fulminante, contrário enterreirado não baqueia, o gaúcho, vencido ou pulseado, é fragílimo nas aperturas de uma situação inferior ou indecisa.

O jagunço, não. Recua. Mas, no recuar é mais temeroso ainda. É um negacear demoníaco. O adversário tem, daquela hora em diante, visando‑o pelo cano da espingarda, um ódio inextinguível, oculto no sombreado das tocaias…

Os vaqueiros

Esta oposição de caracteres acentua‑se nas quadras normais.

Assim todo sertanejo é vaqueiro. À parte a agricultura rudimentar das plantações da vazante pela beira dos rios, para a aquisição de cereais de primeira necessidade, a criação de gado é, ali, a sorte de trabalho menos impropriada ao homem e à terra.

Entretanto não há vislumbrar nas fazendas do sertão a azáfama festiva das estâncias do Sul.

“Parar o rodeio” é para o gaúcho uma festa diária, de que as cavalhadas espetaculosas são ampliações apenas. No âmbito estreito das mangueiras ou em pleno campo, ajuntando o gado costeado ou encalçando os bois esquivos pelas sangas e banhados, os pealadores, capatazes e peões, preando à ilhapa dos laços o potro bravio, ou fazendo tombar, fulminado pelas bolas silvantes, o touro alçado, nas evoluções rápidas das carreiras, como se tirassem “argolinhas”, seguem no alarido e na alacridade de uma diversão tumultuosa. Nos trabalhos mais calmos, quando nos rodeios marcam o gado, curam‑lhe as feridas, apartam os que se destinam às charqueadas, separam os novilhos tambeiros ou escolhem os baguais condenados às chilenas do domador — o mesmo fogo, que encandesce as marcas, dá as brasas para os ágapes rudes de assados com couro ou ferve a água para o chimarrão amargo.

Decorre‑lhes a vida variada e farta.

Servidão inconsciente

O mesmo não acontece ao Norte. Ao contrário do entancieiro, o fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios que nunca viu, às vezes. Herdaram velho vício histórico. Como os opulentos sesmeiros da colônia, usufruem, parasitariamente, as rendas das suas terras, sem divisas fixas. Os vaqueiros são‑lhes servos submissos.

Graças a um contrato pelo qual percebem certa percentagem dos produtos, ali ficam, anônimos — nascendo, vivendo e morrendo na mesma quadra de terra — perdidos nos arrastadores e mocambos; e cuidando, a vida inteira, fielmente, dos rebanhos que Ihes não pertencem.

O verdadeiro dono, ausente, conhece‑lhes a fidelidade sem par. Não os fiscaliza. Sabe‑lhes, quando muito, os nomes.

Envoltos, então, no traje característico, os sertanejos encourados erguem a choupana de pau‑a‑pique à borda das cacimbas, rapidamente, como se armassem tendas; e entregam‑se, abnegados, à servidão que não avaliam.

A primeira coisa que fazem é aprender o a b c e, afinal, toda a exigência da arte em que são eméritos: conhecer os “ferros” das suas fazendas e os das circunvizinhas. Chamam‑se assim os sinais de todos os feitios, ou letras, ou desenhos caprichosos como siglas, impressos, por tatuagem a fogo, nas ancas do animal, completados pelos cortes, em pequenos ângulos, nas orelhas. Ferrado o boi, está garantido. Pode romper tranqueiras e tresmalhar‑se. Leva, indelével, a indicação que o reporá na “solta[1]” primitiva. Porque o vaqueiro não se contentando com ter de cor os ferros de sua fazenda, aprende os das demais. Chega, às vezes por extraordinário esforço de memória, a conhecer, uma por uma, não só as reses de que cuida, como as dos vizinhos, incluindo‑lhes a genealogia e hábitos característicos, e os nomes, e as idades etc. Deste modo, quando surge no seu logrador um animal alheio, cuja marca conhece, o restitui de pronto. No caso contrário, conserva o intruso, tratando‑o como aos demais. Mas não o leva à feira anual, nem o aplica em trabalho algum; deixa‑o morrer de velho. Não lhe pertence.

Se é uma vaca e dá cria, ferra a esta com o mesmo sinal desconhecido, que reproduz com perfeição admirável; e assim pratica com toda a descendência daquela. De quatro em quatro bezerros, porém, separa um, para si. É a sua paga. Estabelece com o patrão desconhecido o mesmo convênio que tem com o outro. E cumpre estritamente, sem juízes e sem testemunhas, o estranho contrato, que ninguém escreveu ou sugeriu.

Sucede muitas vezes ser decifrada, afinal, uma marca somente depois de muitos anos, e o criador feliz receber, ao invés da peça única que lhe fugira e da qual se deslembrara, numa ponta de gado, todos os produtos dela.

Parece fantasia este fato, vulgar, entretanto, nos sertões.

Indicamo‑lo como traço encantador da probidade dos matutos. Os grandes proprietários da terra e dos rebanhos a conhecem. Têm, todos, com o vaqueiro o mesmo trato de parceria, resumido na cláusula única de lhe darem, em troca dos cuidados que ele despende, um quarto dos produtos da fazenda. E sabem que nunca se violará a percentagem.

O ajuste de contas faz‑se no fim do inverno e realiza‑se, ordinariamente, sem que esteja presente a parte mais interessada. É formalidade dispensável. O vaqueiro separa escrupulosamente a grande maioria de novas cabeças pertencentes ao patrão (nas quais imprime o sinal da fazenda) das poucas, um quarto, que lhe couberam por sorte. Grava nestas o seu sinal particular; e conserva‑as ou vende‑as. Escreve ao patrão[2], dando‑lhe conta minuciosa de todo o movimento do sítio, alongando‑se aos mínimos pormenores; e continua na faina ininterrupta.

Esta, ainda que, em dadas ocasiões, fatigante, é a mais rudimentar possível. Não existe no Norte uma indústria pastoril. O gado vive e multiplica‑se à gandaia. Ferrados em junho, os garrotes novos perdem‑se nas caatingas, com o resto das malhadas. Ali os rareiam epizootias intensas, em que se sobrelevam o “rengue” e o “mal triste”. Os vaqueiros mal procuram atenuá‑las. Restinguem a atividade às corridas desabaladas pelos arrastadores. Se a bicheira devasta a tropa, sabem de específico mais eficaz que o mercúrio: a reza. Não precisam de ver o animal doente. Voltam‑se apenas na direção em que ele se acha e rezam, tracejando no chão inextricáveis linhas cabalísticas. Ou então, o que é ainda mais transcendente, curam‑no pelo rastro.

E assim passam numa agitação estéril.

Raro, um incidente, uma variante alegre, quebra a sua vida monótona.

Solidários todos, auxiliam-se incondicionalmente em todas as conjunturas. Se foge a algum boi levantadiço, toma da “guiada[3]”, põe pernas ao campeão. e ei‑lo escanchado no rastro, jogado pelas veredas tiradas a facão. Se não pode levar avante a empresa, “pede campo”, frase característica daquela cavalaria rústica, aos companheiros mais vizinhos, e lá seguem todos, aos dez, aos vinte, rápidos, ruidosos, amigos — “campeando”, voando pelos tombadores e esquadrinhando as caatingas até que o bruto, “desautorizado” dê a venta no termo da corrida, ou tombe, de rijo, mancornado às mãos possantes que se lhe aferram aos chifres.

A vaquejada

Esta solidariedade de esforços evidencia‑se melhor na “vaquejada”, trabalho consistindo essencialmente no reunir, e discriminar depois, os gados de diferentes fazendas convizinhas, que por ali vivem em comum, de mistura, em um compáscuo único e enorme, sem cercas e sem valos.

Realizam‑na de junho a julho.

Escolhido um lugar mais ou menos central, as mais das vezes uma várzea complanada e limpa, o “rodeador”, congrega‑se a vaqueirama das vizinhanças. Concertam nos dispositivos da empresa. Distribuem‑se as funções que a cada um caberão na lide. E para logo, irradiantes pela superfície da arena, arremetem com as caatingas que a envolvem os encourados atléticos.

O quadro tem a movimentação selvagem e assombrosa de uma corrida de tártaros.

Desaparecem em minutos os sertanejos, perdendo‑se no matagal circundante. O rodeio permanece por algum tempo deserto…

De repente estruge ao lado um estrídulo tropel de cascos sobre pedras, um estrépido de galhos estalando, um estalar de chifres embatendo; tufa nos ares, em novelos, uma nuvem de pó; rompe, a súbitas, na clareira, embolada, uma ponta de gado; e, logo após, sobre o cavalo que estaca esbarrado, o vaqueiro, teso nos estribos…

Traz apenas exígua parte do rebanho. Entrega‑a aos companheiros que ali ficam, `’de esteira”; e volve em galope desabalado, renovando a pesquisa. Enquanto outros repontam além, mais outros, sucessivamente, por toda a banda, por todo o âmbito do rodeio, que se anima, e tumultua em disparos: bois às marradas ou escarvando o chão, cavalos curveteando, confundidos e embaralhados sobre os plainos vibrantes num prolongado rumor de terremoto. Aos lados, na caatinga, os menos felizes se agitam às voltas com os marruás recalcitrantes. O touro largado ou o garrote vadio em geral refoge à revista. Afunda na caatinga. Segue‑o o vaqueiro. Cose‑se‑lhe no rastro. Vai com ele às últimas bibocas. Não o larga; até que surja o ensejo para um ato decisivo: alcançar repentinamente o fugitivo, de arranco; cair logo para o lado da sela, suspenso num estribo e uma das mãos presa às crinas do cavalo; agarrar com a outra a cauda do boi em disparada e com um rapelão fortíssimo, de banda, derribá‑lo pesadamente em terra… Põe‑lhe depois a pela ou a máscara de couro, levando‑o jugulado ou vendado para o rodeador.

Ali o recebem ruidosamente os companheiros. Conta‑lhes a façanha. Contam‑lhe outras idênticas, e trocam‑se as impressões heróicas numa adjetivação ad boc, que vai num crescendo do “destalado” ríspido ao “temero” pronunciado num trêmulo enrouquecido e longo.

Depois, ao findar do dia, a última tarefa: contam as cabeças reunidas. Apartam‑nas. Separam‑se, seguindo cada um para sua fazenda tangendo por diante as reses respectivas. E pelos ermos ecoam melancolicamente as notas do “aboiado”[4]

A arribada

Segue a boiada vagarosamente, à cadência daquele canto triste e preguiçoso. Escanchado, desgraciosamente, na sela, o vaqueiro, que a revê unida e acrescida de novas crias, rumina os lucros prováveis: o que toca ao patrão, e o que lhe toca a ele, pelo trato feito. Vai dali mesmo contando as peças destinadas à feira; considera, aqui, um velho boi que ele conhece há dez anos e nunca levou à feira, mercê de uma amizade antiga; além, um mumbica claudicante, em cujo flanco se enterra estrepe agudo, que é preciso arrancar; mais longe, mascarado, cabeça alta e desafiadora, seguindo apenas guiado pela compressão dos outros, o garrote bravo, que subjugou, pegando‑o “de saia”, e derrubando‑o, na caatinga; acolá, soberbo, caminhando folgado, porque os demais o respeitam, abrindo‑lhe em roda um claro, largo pescoço, envergadura de búfalo, o touro vigoroso, inveja de toda a redondeza, cujas armas regidas e curtas relembram, estaladas, rombas e cheias de terra, guampaços formidáveis, em luta com os rivais possantes, nos logradouros; além, para toda a banda, outras peças, conhecidas todas, revivendo‑lhe todas, uma a uma, um incidente, um pormenor qualquer da sua existência primitiva e simples.

E prosseguem, em ordem, lentos, ao toar merencório da cantiga, que parece acalentá‑los, embalando‑os com o refrão monótono:

E cou mansão

E cou…è caõ…

ecoando saudoso nos descampados mudos…

Estouro da boiada

De súbito, porém, ondula um frêmito sulcando, num estremeção repentino, aqueles centenares de dorsos luzidios. Há uma parada instantânea .Entrebatem‑se, enredam‑se, trançam‑se e alteiam‑se fisgando vivamente o espaço, e inclinam‑se, embaralham‑se milhares ele chifres. Vibra uma trepidação no solo; e a boiada estoura[5]

A boiada arranca. Nada explica, às vezes, o acontecimento, aliás vulgar, que é o desespero dos campeiros.

Origina o incidente mais trivial — o súbito vôo rasteiro de uma araquã ou a corrida de um mocó esquivo. Uma rês se espanta e o contágio, uma descarga nervosa subitânea, transfunde o espanto sobre o rebanho inteiro. É um solavanco único, assombroso, atirando, de pancada, por diante, revoltos, misturando‑os embolados, em vertiginosos disparos, aqueles maciços corpos tão normalmente tardos e morosos.

E lá se vão: não há mais contê‑los ou alcançá‑los. Acamam‑se as caatingas, árvores dobradas, partidas, estalando em lascas e gravetos; desbordam de repente as baixadas num marulho de chifres; estrepitam, britando e esfarelando as pedras, torrentes de cascos pelos tombadores; rola surdamente pelos tabuleiros ruído soturno e longo de trovão longínquo…

Destroem‑se em minutos, feito montes de leivas, antigas roças penosamente cultivadas; extinguem‑se, em lameiros revolvidos, as ipueiras rasas; abatem‑se, apisoados, os pousos; ou esvaziam‑se, deixando‑os os habitantes espavoridos, fugindo para os lados, evitando o rumo retilíneo em que se despenha a “arribada” — milhares de corpos que são um corpo único, monstruoso, informe, indescritível, de animal fantástico, precipitado na carreira doida. E sobre este tumulto, arrodeando‑o, ou arremessando‑se impetuoso na esteira de destroços, que deixa após si aquela avalancha viva, largado numa disparada estupenda sobre barrancas, e valos, e cerros, e galhadas — enristado o ferrão, rédeas soltas, soltos os estribos, estirado sobre o lombilho, preso às crinas do cavalo — o vaqueiro!

Já se lhe tem associado, em caminho, os companheiros, que escutaram, de longe, o estouro da boiada. Renova‑se a lida: novos esforços, novos arremessos, novas façanhas, novos riscos e novos perigos a despender, a atravessar e a vencer, até que o boiadão, não já pelo trabalho dos que o encalçam e rebatem pelos flancos senão pelo cansaço, a pouco e pouco afrouxe e estaque, inteiramente abombado.

Reaviam‑no à vereda da fazenda; e ressoam, de novo, pelos ermos, entristecedoramente. as notas melancólicas do aboiado.

Tradições

Volvem os vaqueiros ao pouso e ali, nas redes bamboantes, relatando as peripécias da vaquejada ou famosas aventuras de feira, passam as horas matando, na significação completa do termo, o tempo, e desalterando‑se com a umbuzada saborosíssima, ou merendando a iguaria incomparável de jerimum com leite.

Se a quadra é propícia, e vão bem as plantações da vazante, e viça o “panasco” e o “mimoso” nas soltas dilatadas, e nada revela o aparecimento da seca, refinam a ociosidade nos braços da preguiça benfazeja. Seguem para as vilas se por lá se fazem festas de cavalhadas e mouramas, divertimentos anacrônicos que os povoados sertanejos reproduzem, intactos, com os mesmos programas de há três séculos.

E entre eles a exótica “encamisada”, que é o mais curioso exemplo do aferro às mais remotas tradições. Velhíssima cópia das vetustas quadras dos fossados ou arrancadas noturnas, na Península, contra os castelos árabes, e de todo esquecido na terra onde nasceu, onde a sua mesma significação é hoje inusitado arcaísmo[6], esta diversão dispendiosa e interessante, feita à luz de lanternas e archotes, com os seus longos cortejos de homens a pé, vestidos de branco, ou à maneira de muçulmanos, e outros a cavalo em animais estranhamente ajaezados, desfilando rápidos, em escaramuças e simulados recontros, é o encanto máximo dos matutos folgazãos.

Danças

Nem todos, porém, a compartem. Baldos de recursos para se alongarem das rancharias, agitam‑se, então, nos folguedos costumeiros. Encourados de novo, seguem para os sambas e cateretês ruidosos, os solteiros, famanazes no ‘desafio, sobraçando os machetes, que vibram no “choradinho” ou “baião”, e os casados levando toda a “obrigação”, a família. Nas choupanas em festa recebem‑se os convivas com estrepitosas salvas de ronqueiras e como em geral não há espaço para tantos, arma‑se fora, no terreiro varrido, revestido de ramagens, mobiliado de cepos e troncos, e raros tamboretes, mas imenso, alumiado pelo luar e pelas estrelas! o salão de baile. “Despontam o dia” com uns largos traços de aguardente, a “teimosa”. E rompem estrídulamente os sapateados vivos.

Um cabra destalado ralha na viola. Serenam, em vagarosos meneios, as caboclas bonitas. Revoluteia,, “brabo e corado”, o sertanejo moço.

Desafios

Nos intervalos travam‑se os desafios.

Enterreiram‑se, adversários, dois cantores rudes. As rimas saltam e casam‑se em quadras muita vez belíssimas[7].

Nas horas de Deus, amém,

Não é zombaria, não!

Desafio o mundo inteiro

Pra cantar nesta função !

O adversário retruca logo, levantando‑lhe o último verso da quadra:

Pra cantar nesta função,

Amigo, meu camarada,

Aceita teu desafio

O “fama” deste sertão!

É o começo da luta  que só termina quando um dos bardos se engasga numa rima difícil e titubeia, repinicando nervosamente o machete, sob uma avalancha de risos saudando‑lhe a derrota. E a noite vai deslizando rápida no folguedo que se generaliza, até que as barras venham quebrando e cantem as sericóias nas ipueiras, dando o sinal de debandar ao agrupamento folgazão.

Terminada a festa volvem os vaqueiros à tarefa ou à rede preguiçosa.

Alguns, de ano em ano, arrancam dos pousos tranquilos para remotas paragens. Transpõem o S. Francisco; mergulham nos gerais enormes do ocidente, vastos planaltos indefinidos em que se confundem as bacias daquele e do Tocantins em alagados de onde partem os rios indiferentemente para o levante e para o poente; e penetram em Goiás, ou, avantajando‑se mais para o norte, as serras do Piauí.

Vão à compra de gados. Aqueles lugares longínquos, pobres e obscuros vilarejos que o Porto Nacional extrema, animam‑se, então, passageiramente, com a romaria dos “baianos” São os autocratas das feiras. Dentro da armadura de couro, galhardos, brandindo a guiada, sobre os cavalos ariscos, entram naqueles vilarejos com um desgarre atrevido de triunfadores felizes. E ao tornarem — quando não se perdem para todo o sempre, sem tino, na “travessia” perigosa dos descampados uniformes — reatam a mesma vida monótona e primitiva.

A seca

De repente, uma variante trágica.

Aproxima‑se a seca.

O sertanejo adivinha‑a e graças ao ritmo singular com que se desencadeia o flagelo.

Entretanto não foge logo, abandonando a terra a pouco e pouco invadida pelo limbo candente que irradia do Ceará.

Buckle, em página notável, assinala a anomalia de se não afeiçoar nunca, o homem, às calamidades naturais que o rodeiam. Nenhum povo tem mais pavor aos terremotos que o peruano; e no Peru as crianças ao nascerem tem o berço embalado pelas vibrações da terra.

Mas o nosso sertanejo faz exceção à regra. A seca não o apavora. É um complemento à sua vida tormentosa, emoldurando‑a em cenários tremendos. Enfrenta‑a, estóico. Apesar das dolorosas tradições que conhece através de um sem numero de terríveis episódios, alimenta a todo o transe esperanças de uma resistência impossível.

Com os escassos recursos das próprias observações e das dos seus maiores, em que ensinamentos práticos se misturam a extravagantes crendices, tem procurado estudar o mal, para o conhecer, suportar e suplantar. Aparelha‑se com singular serenidade para a luta. Dois ou três meses antes do solstício de verão, especa e fortalece os muros dos açudes, ou limpa as cacimbas. Faz os roçados e arregoa as estreitas faixas de solo arável à orla dos ribeirões. Está preparado para as plantações ligeiras à vinda das primeiras chuvas.

Procura em seguida desvendar o futuro. Volve o olhar para as alturas; atenta longamente nos quadrantes; e perquire os traços mais fugitivos das paisagens.

Os sintomas do flagelo despontam‑lhe, então, encadeados em série, sucedendo‑se inflexíveis, como sinais comemorativos de uma moléstia cíclica, da sezão assombradora da Terra. Passam as “chuvas do caju” em outubro, rápidas, em chuvisqueiros prestes delidos nos ares ardentes, sem deixarem traços; e “pintam” as caatingas, aqui, ali, por toda a parte, mosqueadas de tufos pardos de árvores marcescentes, cada vez mais numerosos e maiores, lembrando cinzeiros de uma combustão abafada, sem chamas; e greta‑se o chão; e abaixa‑se vagarosamente o nível das cacimbas… Do mesmo passo nota que os dias, estuando logo ao alvorecer, transcorrem abrasantes, à medida que as noites se vão tornando cada vez mais frias. A atmosfera absorve‑lhe, com avidez de esponja, o suor na fronte, enquanto a armadura de couro, sem mais a flexibilidade primitiva, se lhe endurece aos ombros, esturrada, rígida, feito uma couraça de bronze. E ao descer das tardes, dia a dia menores e sem crepúsculos, considera, entristecido, nos ares, em bandos, as primeiras aves emigrantes, transvoando a outros climas.

É o prelúdio da sua desgraça.

Vê‑o acentuar‑se num crescendo, até dezembro.

Precautela‑se: revista, apreensivo, as malhadas. Percorre os logradouros longos. Procura entre as chapadas que se esterilizam várzeas mais benignas para onde tange os rebanhos. E espera, resignado, o dia 13 daquele mês Porque, em tal data, usança avoenga lhe faculta sondar o futuro, interrogando a Providência.

E a experiência tradicional de Santa Luzia. No dia 12 ao anoitecer expõe ao relento, em linha, seis pedrinhas de sal, que representam, em ordem sucessiva da esquerda para a direita, os seis meses vindouros, de janeiro a junho. Ao alvorecer de 13 observa‑as: se estão intactas, pressagiam a seca; se a primeira apenas se deliu, transmudada em aljôfar límpido, é certa a chuva em janeiro; se a segunda, em fevereiro; se a maioria ou todas, é inevitável o inverno benfazejo[8].

Esta experiência é belíssima. Em que pese ao estigma supersticioso, tem base positiva, e é aceitável desde que se considera que dela se colhe a maior ou menor dosagem de vapor d’água nos ares, e, dedutivamente, maiores ou menores probabilidades de depressões barométricas, capazes de atrair o afluxo das chuvas.

Entretanto, embora tradicional, esta prova deixa ainda vacilante o sertanejo. Nem sempre desanima, ante os seus piores vaticínios. Aguarda, paciente, o equinócio da primavera, para definitiva consulta aos elementos. Atravessa três longos meses de expectativa ansiosa e no dia de S. José, 19 de março, procura novo augúrio, o último.

Aquele dia é para ele o índice dos meses subseqüentes. Retrata‑lhe, abreviadas em doze horas, todas as alternativas climáticas vindouras. Se durante ele chove, será chuvoso o inverno: se, ao contrário, o Sol atravessa abrasadoramente o firmamento claro, estão por terra todas as suas esperanças.

A seca é inevitável.

Insulamento no deserto

 Então se transfigura. Não é mais o indolente incorrigível ou o impulsivo violento, vivendo às disparadas pelos arrastadores. Transcende a sua situação rudimentar. Resignado e tenaz, com a placabilidade superior dos fortes, encara de fito a fatalidade incoercível; e reage. O heroísmo tem nos sertões, para todo o sempre perdidas, tragédias espantosas. Não há revivê‑las ou episodiá‑las. Surgem de uma luta que ninguém descreve — a insurreição da terra contra o homem. A princípio este reza, olhos postos na altura. O seu primeiro amparo é a fé religiosa. Sobraçando os santos milagreiros, cruzes alçadas, andores erguidos, bandeiras do Divino ruflando, lá se vão, descampados em fora, famílias inteiras — não já os fortes e sadios senão os próprios velhos combalidos e enfermos claudicantes, carregando aos ombros e à cabeça as pedras dos caminhos, mudando os santos de uns para outros lugares. Ecoam largos dias, monótonas, pelos ermos, por onde passam as lentas procissões propiciatórias, as ladainhas tristes. Rebrilham longas noites nas chapadas, pervagantes as velas dos penitentes… Mas os céus persistem sinistramente claros; o Sol fulmina a Terra; progride o espasmo assombrados da seca. O matuto considera a prole apavorada; contempla entristecido os bois sucumbidos, que se agrupam sobre as fundagens das ipueiras, ou, ao longe, em grupos erradios e lentos, pescoços dobrados, acaroados com o chão, em mugidos prantivos “farejando a água”; — e sem que se lhe amorteça a crença, sem duvidar da Providência que o esmaga, murmurando às mesmas horas as preces costumeiras, apresta‑se ao sacrifício. Arremete de alvião a enxada com a terra, buscando nos estratos inferiores a água que fugiu da superfície. Atinge‑os às vezes; outras, após enormes fadigas, esbarra em uma lajem que lhe anula todo o esforço despendido; e outras vezes, o que é mais corrente, depois de desvendar tênue lençol líquido subterrâneo, o vê desaparecer um, dois dias passados, evaporando‑se, ou sugado pelo solo. Acompanha‑o tenazmente, reprofundando a mina, em cata do tesouro fugitivo. Volve, por fim, exausto, à beira da própria cova que abriu, feito um desenterrado. Mas como frugalidade rara lhe permite passar os dias com alguns manelos de paçoca, não se lhe afrouxa, tão de pronto, o ânimo.

Ali está, em torno, a caatinga, o seu celeiro agreste. Esquadrinha‑o. Talha em pedaços os mandacarus que desalteram, ou as ramas verdoengas dos juazeiros que alimentam os magros bois famintos; derruba os estipites dos ouricuris e rala‑os, amassa‑os, cozinha‑os, fazendo um pão sinistro, o “bró”, que incha os ventres num enfarte ilusório, empanzinando o faminto; atesta os jiraus de coquilhos; arranca as raízes túmidas dos umbuzeiros, que lhe dessedentam os filhos, reservando para si o sumo adstringente dos cladódios do xiquexique, que enrouquece ou extinguem a voz de quem o bebe, e demasia‑se em trabalhos, apelando infatigável para todos os recursos — forte e carinhoso — defendendo‑se e estendendo à prole abatida e aos rebanhos confiados a energia sobre‑humana.

Baldam‑se‑lhe, porém, os esforços.

A natureza não o combate apenas com o deserto. Povoa‑a, contrastando com a fuga das seriemas, que emigram para outros “tabuleiros”, e jandaias, que fogem para o litoral remoto, uma fauna cruel. Miríades de morcegos agravam a “magrém”, abatendo‑se sobre o gado, dizimando‑o. Chocalham as cascavéis, inúmeras, tanto mais numerosas quanto mais ardente o estio, entre as macegas  recrestadas.

À noite, a suçuarana traiçoeira e ladra, que lhe rouba os bezerros e os novilhos, vem beirar  a sua lancharia pobre.

É  mais um inimigo a suplantar.

Afugenta‑a e espanta‑a, precipitando‑se com um tição aceso no terreiro deserto. E se ela não recua, assalta‑a. Mas não a tiro, porque sabe que, desviada a mira, ou pouco eficaz o chumbo, a onça, “vindo em cima da fumaça”, é invencível.

O pugilato é mais comovente. O atleta enfraquecido, tendo à mão esquerda a forquilha e à direita a faca, irrita e desafia a fera, provoca‑lhe o bote e apara‑a no ar, trespassando‑a de um golpe.

Nem sempre, porém, pode aventurar‑se à façanha arriscada. Uma moléstia extravagante completa a sua desdita — a hemeralopia. Esta falsa cegueira é paradoxalmente feita pelas reações da luz; nasce dos dias claros e quentes, dos firmamentos fulgurantes, do vivo ondular dos ares em fogo sobre a terra nua. É uma pletora do olhar. Mas o Sol se esconde no poente a vítima nada mais vê. Está cega. A noite afoga‑se de súbito, antes de envolver a Terra. E na manhã seguinte a vista extinta lhe revive, acendendo‑se no primeiro lampejo do levante, para se apagar, de novo, à tarde, com intermitência dolorosa.

Renasce‑lhe com ela a energia. Ainda se não considera vencido. Restam‑lhe, para desalterar e sustentar os filhos, os talos tenros, os mangarás das bromélias selvagens. Ilude‑os com essas iguarias bárbaras.

Segue, a pé agora, porque se Ihe parte o coração só de olhar para o cavalo, para os logradouros. Contempla ali a ruína da fazenda: bois espectrais, vivos não se sabe como, caídos sob as árvores mortas, mal soerguendo o arcabouço murcho sobre as pernas secas, marchando vagarosamente, cambaleantes; bois mortos há dias e intactos, que os próprios urubus rejeitam, porque não rompem a bicadas as suas peles esturradas; bois jururus, em roda da clareira de chão entorroado onde foi a aguada predileta; e, o que mais Ihe dói, os que ainda não de todo exaustos o procuram, e o circundam, confiantes, urrando em longo apelo triste que parece um choro.

E nem um cereus avulta mais em torno; foram ruminadas as últimas ramas verdes dos juás…

Trançam‑se, porém, ao lado, impenetráveis renques de macambiras. É ainda um recurso. Incendeia‑os, batendo o isqueiro nas acendalhas das folhas ressequidas para os despir, em combustão rápida, dos espinhos. E quando os rolos de fumo se enovelam e se diluem no ar puríssimo, vêem‑se, correndo de todos os lados, em tropel moroso de estropeados, os magros bois famintos, em busca do último repasto.

Por fim tudo se esgota e a situação não muda. Não há probabilidade sequer de chuvas. A casca das marizeiras não transuda, prenunciando‑as. O nordeste persiste intenso, rolando, pelas chapadas, zunindo em prolongações uivadas na galhada estrepitante das caatingas e o Sol alastra, reverberando no firmamento claro, os incêndios inextinguíveis da canícula. O sertanejo, assoberbado de reveses, dobra‑se afinal.

Passa certo dia, a sua porta, a primeira turma de “retirantes”. Vê‑a, assombrado, atravessar o terreiro, miseranda, desaparecendo adiante numa nuvem de poeira, na curva do caminho… No outro dia, outra. E outras. É o sertão que se esvazia.

Não resiste mais. Amatula‑se num daqueles bandos, que lá se vão caminho em fora, debruando de ossadas as veredas, e lá se vai ele no êxodo penosíssimo para a costa, para as serras distantes, para quaisquer lugares onde o não mate o elemento primordial da vida.

Atinge‑os. Salva‑se.

Passam‑se meses. Acaba‑se o flagelo. Ei‑lo de volta. Vence‑o saudade do sertão. Remigra. E torna feliz, revigorado, cantando; esquecido de infortúnios, buscando as mesmas horas passageiras da ventura perdidiça e instável, os mesmos dias longos de transes e provações demoradas.

Religião mestiça

Insulado deste modo no país, que o não conhece, em luta aberta com o meio, que lhe parece haver estampado na organização e no temperamento a sua rudeza extraordinária, nômade ou mal fixo à terra, o sertanejo não tem, por bem dizer, ainda capacidade orgânica para se afeiçoar a situação mais alta.

O círculo estreito da atividade remorou‑lhe o aperfeiçoamento psíquico. Está na fase religiosa de um monoteísmo incompreendido, eivado de misticismo extravagante, em que se rebate o fetichismo do índio e do africano. E o homem primitivo, audacioso e forte, mas ao mesmo tempo crédulo, deixando‑se facilmente arrebatar pelas superstições mais absurdas. Uma análise destas revelaria a fusão de estádios emocionais distintos.

A sua religião é como ele — mestiça.

Resumo dos caracteres físicos e fisiológicos das raças de que surge, sumaria‑lhes identicamente as qualidades morais. E um índice da vida de três povos. E as suas crenças singulares traduzem essa aproximação violenta de tendências distintas. E desnecessário descrevê‑las. As lendas arrepiadoras do caapora travesso e maldoso, atravessando célere, montado em caititu arisco, as chapadas desertas, nas noites misteriosas de luares claros; os sacis diabólicos, de barrete vermelho à cabeça, assaltando o viandante retardatário, nas noites aziagas das sextas‑feiras, de parceria com os lobisomens e mulas‑sem‑cabeça notívagos; todos os mal‑assombramentos, todas as tentações do maldito ou do diabo — este trágico emissário dos rancores celestes em comissão na Terra; as rezas dirigidas a S. Campeiro, canonizado in partibus, ao qual se acendem velas pelos campos, para que favoreça a descoberta de objetos perdidos; as benzeduras cabalísticas para curar os animais, para ‘amassar” e “vender” sezões; todas as visualidades, todas aparições fantásticas, todas as profecias esdrúxulas de messias insanos; e as romarias piedosas; e as missões; e as penitências….  todas as manifestações complexas de religiosidade indefinida são explicáveis.

Fatores históricos da religião mestiça

Não seria difícil caracterizá‑las como uma mestiçagem de crenças. Ali estão, francos, o antropismo do selvagem, o animismo do africano e, o que é mais, o próprio aspecto emocional da raça superior, na época do descobrimento e da colonização.

Este último é um caso notável de atavismo, na Historia.

Considerando as agitações religiosas do sertão e os evangelizadores e messias singulares, que, intermitentemente, o atravessam, ascetas mortificados de flagícios, encalçados sempre pelos sequazes numerosos, que fanatizam, que arrastam, que dominam, que endoidecem — espontaneamente recordamos a fase mais crítica da alma portuguesa, a partir do final do século 16, quando, depois de haver por momentos centralizado a História, o mais interessante dos povos caiu, de súbito, em decomposição rápida, mal disfarçada pela corte oriental de d. Manuel.

O povoamento do Brasil fez‑se, intenso, com d. João III, precisamente no fastígio de completo desequilíbrio moral, quando “todos os terrores da Idade Média tinham cristalizado no catolicismo peninsular”.

Uma grande herança de abusões extravagantes, extinta na orla marítima pelo influxo modificador de outras crenças e de outras raças, no sertão ficou intacta. Trouxeram‑na as gentes impressionáveis, que afluíram para a nossa terra, depois de desfeito no Oriente o sonho miraculoso da Índia. Vinham cheias daquele misticismo feroz, em que o fervor religioso reverberava à cadência forte das fogueiras inquisitoriais, lavrando intensas na península. Eram parcelas do mesmo povo que em Lisboa, sob a obsessão dolorosa dos milagres e assaltado de súbitas alucinações, via, sobre o paço dos reis, ataúdes agoureiros, línguas de flamas misteriosas, catervas de mouros de albornozes brancos, passando processionalmente; combates de paladinos nas alturas… E da mesma gente que após Alcácer‑Quibir, em plena “caquexia nacional”, segundo o dizer vigoroso de Oliveira Martins, procurava, ante a ruína iminente, como salvação única, a fórmula superior das esperanças messiânicas.

De feito, considerando as desordens sertanejas, hoje, e os messias insanos que as provocam, irresistivelmente nos assaltam, empolgantes’ as figuras dos profetas peninsulares de outrora—o rei de Penamacor, o rei da Ericeira, errantes pelas faldas das serras, devotados ao martírio, arrebatando na mesma idealização, na mesma insânia, no mesmo sonho doentio, as multidões crendeiras.

Esta justaposição histórica calca‑se sobre três séculos. Mas é exata, completa, sem dobras. Imóvel o tempo sobre a rústica sociedade sertaneja, despeada do movimento geral da evolução humana, ela respira ainda na mesma atmosfera moral dos iluminados que encalçavam, doidos, o Miguelinho ou o Bandarra. Nem lhe falta, para completar o símile, o misticismo político do sebastianismo. Extinto em Portugal, ele persiste todo, hoje, de modo singularmente impressionador, nos sertões do Norte.

Mas não antecipemos.

Caráter variável da religiosidade sertaneja

Estes estigmas atávicos tiveram entre nós, favoráveis, as reações do meio, determinando psicologia especial.

O homem dos sertões — pelo que esboçamos — mais do que qualquer outro, está em função imediata da terra. É uma variável dependente no jogar dos elementos. Da consciência da fraqueza para os debelar resulta, mais forte, este apelar constante para o maravilhoso, esta condição inferior de pupilo estúpido da divindade. Em paragens mais benéficas a necessidade de uma tutela sobrenatural não seria tão imperiosa. Ali, porém, as tendências pessoais como que se acolchetam às vicissitudes externas, e deste entrelaçamento resulta, copiando o contraste que observamos entre a exaltação impulsiva e a apatia enervadora da atividade, a indiferença fatalista pelo futuro e a exaltação religiosa. Os ensinamentos dos missionários não poderiam exercitar‑se estremes das tendências gerais da sua época. Por isto, como um palimpsesto, a consciência imperfeita dos matutos revela nas quadras agitadas, rompendo dentre os ideais belíssimos do catolicismo incompreendido, todos os estigmas de estádio inferior.

É que, mesmo em períodos normais, a sua religião é indefinida e vária. Da mesma forma que os negros Haúças,  adaptando à liturgia todo o ritual iorubano, realizam o fato anômalo, mas vulgar mesmo na capital da Bahia, de seguirem para as solenidades da Igreja por ordem dos fetiches, os sertanejos, herdeiros infelizes de vícios seculares, saem das missas consagradas para os ágapes selvagens dos candomblés africanos ou poracês do tupi. Não espanta que patenteiem, na religiosidade indefinida, antinomias surpreendentes.

Quem vê a família sertaneja, ao cair da noite, ante o oratório tosco ou registro paupérrimo, à meia luz das candeias de azeite, orando pelas almas dos mortos queridos, ou procurando alentos à vida tormentosa, encanta‑se.

O culto dos mortos é impressionador. Nos lugares remotos, longe dos povoados, inumam‑nos à beira das estradas, para que não fiquem de todo em abandono, para que os rodeiem sempre as preces dos viandantes, para que nos ângulos da cruz deponham estes, sempre, uma flor, um ramo, uma recordação fugaz mas renovada sempre. E o vaqueiro, que segue arrebatadamente, estaca, prestes, o cavalo, ante o humilde monumento — uma cruz sobre pedras arrumadas — e, a cabeça descoberta, passa vagaroso, rezando pela salvação de quem ele nunca viu talvez, talvez de um inimigo.

A terra é o exílio insuportável, o morto um  bem  ‑aventurado sempre.

O falecimento de uma criança é um dia de festa. Ressoam as violas na cabana dos pobres pais, jubilosos entre as lágrimas; referve o samba turbulento; vibram nos ares, fortes, as coplas dos desafios; enquanto, a uma banda, entre duas velas de carnaúba, coroado de flores, o anjinho exposto espelha, no último sorriso paralisado, a felicidade suprema da volta para os céus, para a felicidade eterna — que é a preocupação dominadora daquelas almas ingênuas e primitivas.

No entanto há traços repulsivos no quadro desta religiosidade de aspectos tão interessantes, aberrações brutais, que a derrancam ou maculam.

A “Pedra Bonita”

As agitações sertanejas, do Maranhão à Bahia, não tiveram ainda um historiador. Não as esboçaremos sequer. Tomemos um fato, entre muitos, ao acaso.

No termo de Pajeú, em Pernambuco, os últimos rebentos das formações graníticas da costa se alteiam, em formas caprichosas, na serra Talhada, dominando, majestosos, toda a região em torno e convergindo em largo anfiteatro acessível apenas por estreita garganta, entre muralhas a pique. No âmbito daquele, como púlpito gigantesco, ergue‑se um bloco solitário — a Pedra Bonita.

Este lugar foi, em 1837, teatro de cenas que recordam as sinistras solenidades religiosas dos Achantis. Um mamaluco ou cafuz, um iluminado, ali congregou toda a população dos sítios convizinhos e, engrimpando‑se à pedra, anunciava, convicto, o próximo advento do reino encantado do rei d. Sebastião. Quebrada a pedra, a que subira, não a pancadas de marreta, mas pela ação miraculosa do sangue das crianças, esparzido sobre ela em holocausto, o grande rei irromperia envolto de sua guarda fulgurante, castigando, inexorável, a humanidade ingrata, mas cumulando de riquezas os que houvessem contribuído para o desencanto.

Passou pelo sertão um frêmito de necrose…

O transviado encontrara meio propício ao contágio da sua insânia. Em torno da ara monstruosa comprimiam‑se as mães erguendo os filhos pequeninos e lutavam, procurando‑lhes a primazia no sacrifício… O sangue espadanava sobre a rocha jorrando, acumulando‑se em torno; e, afirmam os jornais do tempo, em copia tal que, depois de desfeita aquela lúgubre farsa, era impossível a permanência no lugar infeccionado.

Por outro lado, fatos igualmente impressionadores contrabatem tais aberrações. A alma de um matuto é inerte ante as influências que a agitam. De acordo com estas pode ir da extrema brutalidade ao máximo devotamento.

Vimo‑la, neste instante, pervertida pelo fanatismo. Vejamo‑la transfigurada pela fé.

Monte Santo

Monte Santo é um lugar lendário.

Quando, no século 17, as descobertas das minas determinaram a atração do interior sobre o litoral, os aventureiros que ao norte investiam com o sertão, demandando as serras da Jacobina, arrebatados pela miragem das minas de prata e rastreando o itinerário enigmático de Belchior Dias, ali estacionavam longo tempo. A serra solitária — a Piquaraçá dos roteiros caprichosos — , dominando os horizontes, norteava‑lhes a marcha vacilante.

Além disto, atraía‑os por si mesma, irresistivelmente.

É que em um de seus flancos, escritas em caligrafia ciclópica com grandes pedras arrumadas, apareciam letras singulares — um A, um L e um S — ladeadas por uma cruz, de modo a fazerem crer que estava ali e não avante, para o ocidente ou para o sul, o el‑dorado apetecido.

Esquadrinharam‑na, porém, debalde os êmulos do Muribeca astuto, seguindo, afinal, para outros rumos, com as suas tropas de potiguaras mansos e forasteiros armados de biscainhos…

A serra desapareceu outra vez entre as chapadas que domina …

No fim do século passado, porém, descobriu‑a um missionário — Apolônio de Todi. Vindo da missão de Maçacará, o maior apóstolo do Norte impressionou‑se tanto com o aspecto da montanha, “achando‑a semelhante ao calvário de Jerusalém”, que planeou logo a ereção de uma capela. Ia ser a primeira do mais tosco e do mais imponente templo da fé religiosa.

Descreve o sacerdote, longamente, o começo e o curso dos trabalhos e o auxílio franco que lhe deram os povoadores dos lugares próximos. Pinta a última solenidade, procissão majestosa e lenta ascendendo a montanha, entre as raladas de tufão violento que se alteou das planícies apagando as tochas; e, por fim, o sermão terminal da penitencia, exortando o povo a “que nos dias santos viesse visitar os santos lugares, já que vivia em tão grande desamparo das coisas espirituais”.

“E aqui,  termina , sem pensar em mais nada disse que daí em diante não chamariam mais serra de Piquaraçá, mas sim Monte Santo.”

E fez‑se o templo prodigioso, monumento erguido pela natureza e pela fé, mais alto que as mais altas catedrais da Terra.

A população sertaneja completou a empresa do missionário.

Hoje quem sobe a extensa via‑sacra de três quilômetros de comprimento, em que se origem, a espaços, 25 capelas de alvenaria, encerrando painéis dos “passos”, avalia a constância e a tenacidade do esforço despendido.

Amparada por muros capeados; calçada em certos trechos; tendo, noutros, como leito, a rocha viva talhada em degraus, ou rampeada, aquela estrada branca, de quartzolito, onde ressoam, há cem anos, as litanias das procissões da quaresma e têm passado legiões de penitentes, é um prodígio de engenharia rude e audaciosa. Começa investindo com a montanha, segundo a normal de máximo declive, em rampa de cerca de vinte graus. Na quarta ou quinta capelinha inflete à esquerda e progride menos íngreme. Adiante, a partir da capela maior — ermida interessantíssima ereta num ressalto da pedra a cavaleiro do abismo — , volta à direita, diminuindo de declive até a linha de cumeadas. Segue por esta segundo uma selada breve. Depois se alteia, de improviso, retilínea, em ladeira forte, arremetendo com o vértice pontiagudo do monte, até o Calvário no alto !

A medida que ascende, ofegante, estacionando nos “passos”, o observador depara perspectivas que seguem num crescendo de grandezas soberanas: primeiro, os planos das chapadas e tabuleiros, esbatidos embaixo em planícies vastas; depois, as serranias remotas, agrupadas, longe, em todos os quadrantes; e, atingindo o alto, o olhar a cavaleiro das serras — o espaço indefinido, a emoção estranha de altura imensa, realçada pelo aspecto da pequena vila, embaixo, mal percebida na confusão caótica dos telhados.

E quando, pela Semana Santa, convergem ali as famílias da redondeza e passam os crentes pelos mesmos flancos em que vaguearam outrora, inquietos de ambição, os aventureiros ambiciosos, vê‑se que Apolônio de Todi, mais hábil que o Muribeca, decifrou o segredo das grandes letras de pedra descobrindo o el‑dorado maravilhoso, a mina opulentíssima oculta no deserto…

As missões atuais

Infelizmente o apóstolo não teve continuadores. Salvo raríssimas exceções, o missionário moderno é um agente prejudicialíssimo no agravar todos os desequilíbrios do estado emocional dos tabaréus. Sem a altitude dos que o antecederam, a sua ação é negativa: destrói, apaga e perverte o que incutiram de bom naqueles espíritos ingênuos os ensinamentos dos primeiros evangelizadores, dos quais não tem o talento e não tem a arte surpreendente da transfiguração das almas. Segue vulgarmente processo inverso do daqueles: não aconselha e consola, aterra e amaldiçoa; não ora, esbraveja. E brutal e traiçoeiro. Surge das dobras do hábito escuro como da sombra de uma emboscada armada à credulidade incondicional dos que o escutam. Sobe ao púlpito das igrejas do sertão e não alevanta a imagem arrebatadora dos céus; descreve o inferno truculento e flamívomo, numa algaravia de frases rebarbativas a que completam gestos de maluco e esgares de truão.

É ridículo, e é medonho. Tem o privilégio estranho das bufonerias melodramáticas. As parvoíces saem‑lhe da boca trágicas.

Não traça ante os matutos simples a feição honesta e superior da vida — não a conhece; mas brama em todos os tons contra o pecado; esboça grosseiros quadros de torturas; e espalha sobre o auditório fulminado avalanchas de penitencias, extravagando largo tempo, em palavrear interminável, fungando as pitadas habituais e engendrando catástrofes, abrindo alternativamente a caixa de rapé e a boceta de Pandora…

E alucina o sertanejo crédulo; alucina‑o, deprime‑o, perverte‑o.

Os “Serenos”

Busquemos um exemplo único, o último.

Em 1850 os sertões de Cariri foram alvorotados pelas depredações dos Serenos, exercitando o roubo em larga escala.

Aquela denominação indicava “companhias de penitentes” que à noite, nas encruzilhadas ermas, em torno das cruzes misteriosas, se agrupavam, adoidadamente, numa agitação macabra de flagelantes, impondo‑se o cilício dos espinhos, das urtigas e outros duros tratos de penitência. Ora, aqueles agitados saíram certo dia, repentinamente, da matriz do Crato, dispersos, em desalinho — mulheres em prantos, homens apreensivos, crianças trementes — em procura dos flagícios duramente impostos. Dentro da igreja, missionários recém‑vindos haviam profetizado próximo fim do mundo. Deus o dissera — em mau português, em mau italiano e em mau latim — estava farto dos desmandos da Terra…

E os derivados foram pelos sertões em fora, esmolando, chorando, rezando, numa mandria deprimente, e como a caridade pública não os podia satisfazer a todos, acabaram — roubando.

Era fatal. Os instrutores do crime foram, afinal, infelicitar outros lugares e a justiça a custo reprimiu o banditismo[9] incipiente.

Capítulo IV

Antônio Conselheiro, documento vivo de atavismo

É natural que estas camadas profundas da nossa estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária — Antônio Conselheiro…

A imagem é corretíssima.

Da mesma forma que o geólogo, interpretando a inclinação e a orientação dos estratos truncados de antigas formações, esboça o perfil de uma montanha extinta, o historiador só pode avaliar a altitude daquele homem, que por si nada valeu, considerando a psicologia da sociedade que o criou. Isolado, ele se perde na turba dos nevróticos vulgares. Pode ser incluído numa modalidade qualquer de psicose progressiva. Mas, posto em função do meio, assombra. É uma diátese e é uma síntese. As fases singulares da sua existência não são, talvez, períodos sucessivos de uma moléstia grave, mas são, com certeza, resumo abreviado dos aspectos predominantes de mal social gravíssimo. Por isto o infeliz, destinado à solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a História como poderia ter ido para o hospício. Porque ele para o historiador não foi um desequilibrado. Apareceu como integração de caracteres diferenciais — vagos, indecisos, mal percebidos quando dispersos na multidão, mas enérgicos e definidos, quando resumidos numa individualidade.

Todas as crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações católicas, todas as tendências impulsivas das raças inferiores, livremente exercitadas na indisciplina da vida sertaneja, se condensaram no seu misticismo feroz e extravagante. Ele foi, simultaneamente, o elemento ativo e passivo da agitação de que surgiu.

O temperamento mais impressionável apenas fê‑lo absorver as crenças ambientes, a princípio numa quase passividade pela própria receptividade mórbida do espirito torturado de reveses, e elas refluíram, depois, mais fortemente, sobre o próprio meio de onde haviam partido, partindo da sua consciência delirante.

É difícil traçar no fenômeno a linha divisória entre as tendências pessoais e as tendências coletivas: a vida resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida de sua sociedade…

Acompanhar a primeira é seguir paralelamente e com mais rapidez a segunda: acompanhá‑las juntas é observar a mais completa mutualidade de influxos

Considerando em torno, o falso apóstolo, que o próprio excesso de subjetivismo predispusera à revolta contra a ordem natural, como que observou a fórmula do próprio delírio. Não era um incompreendido. A multidão aclamava‑o representante natural das suas aspirações mais altas. Não foi, por isto, além. Não deslizou para a demência. No gravitar contínuo para o mínimo de uma curva, para o completo obscurecimento da razão, o meio reagindo por sua vez amparou‑o, corrigindo‑o, fazendo‑o estabelecer encadeamento nunca destruído nas mais exageradas concepções, certa ordem no próprio desvario, coerência indestrutível em. todos os atos e disciplina rara em todas as paixões, de sorte que ao atravessar, largos anos, nas práticas ascéticas, o sertão alvorotado, tinha na atitude, na palavra e no gesto, a tranqüilidade, a altitude e a resignação soberana de um apóstolo antigo.

Doente grave, só lhe pode ser aplicado o conceito da paranóia, de Tanzi e Riva.

Em seu desvio ideativo vibrou sempre, a bem dizer exclusiva, a nota étnica. Foi um documento raro de atavismo.

A constituição mórbida levando‑o a interpretar caprichosamente as condições objetivas, e alterando‑lhe as relações com o mundo exterior, traduz‑se fundamentalmente como uma regressão ao estádio mental dos tipos ancestrais da espécie.

Um gnóstico bronco

Evitada a intrusão dispensável de um médico, um antropologista encontrá‑lo‑ia normal, marcando logicamente certo nível da mentalidade humana, recuando no tempo, fixando uma fase remota da evolução. O que o primeiro caracterizaria como caso franco de delírio sistematizado, na fase persecutória ou de grandezas, o segundo indicaria como fenômeno de incompatibilidade com as exigências superiores da civilização — um anacronismo palmar, a revivescência de atributos psíquicos remotíssimos. Os traços mais típicos do seu misticismo estranho, mas naturalíssimo para nós, já foram, dentro de nossa era, aspectos religiosos vulgares. Deixando mesmo de lado o influxo das raças inferiores, vimo‑los há pouco, de relance, em período angustioso da vida portuguesa.

Poderíamos apontá‑los em cenário mais amplo. Bastava que volvêssemos aos primeiros dias da Igreja, quando o gnosticismo universal se erigia como transição obrigatória entre o paganismo e o cristianismo, na última fase do mundo romano em que, precedendo o assalto dos bárbaros, a literatura latina do ocidente declinou, de súbito, mal substituída pelos sofistas e letrados tacanhos de Bizâncio.

Com efeito, os montanistas da Frígia, os adamitas infames, os ofiolatras, os maniqueus bifrontes entre o ideal cristão emergente e o budismo antigo, os discípulos de Markos, os encratitas abstinentes e macerados de flagícios, todas as seitas em que se fracionava a religião nascente, com os seus doutores histéricos e exegeses hiperbólicas, forneceriam hoje casos repugnantes de insânia. E foram normais. Acolchetaram‑se bem a todas as tendências da época em que as extravagâncias de Alexandre Abnótico abalavam a Roma de Marco Aurélio, com as suas procissões fantásticas, os seus mistérios e os seus sacrifícios tremendos de leões lançados vivos ao Danúbio, com solenidades imponentes presididas pelo imperador filósofo…

A história repete‑se.

Antônio Conselheiro foi um gnóstico bronco.

Veremos mais longe a exação do símile.

Grande homem pelo avesso

Paranóico indiferente, este dizer, talvez, mesmo não lhe possa ser ajustado, inteiro. A regressão ideativa que patenteou, caracterizando‑lhe o temperamento vesânico, é, certo, um caso notável de degenerescência intelectual, mas não o isolou — incompreendido, desequilibrado, retrógrado, rebelde — no meio em que agiu.

Ao contrário, este fortaleceu‑o. Era o profeta, o emissário das alturas, transfigurado por ilapso estupendo, mas adstrito a todas as contingências humanas, passível do sofrimento e da morte, e tendo uma função exclusiva: apontar aos pecadores o caminho da salvação. Satisfez‑se sempre com este papel de delegado dos céus. Não foi além. Era um servo jungido à tarefa dura; e lá se foi, caminho dos sertões bravios, largo tempo, arrastando a carcaça claudicante, arrebatado por aquela idéia fixa, mas de algum modo lúcido em todos os atos, impressionando pela firmeza nunca abalada e seguindo para um objetivo fixo com finalidade irresistível.

A sua frágil consciência oscilava em torno dessa posição média, expressa pela linha ideal que Maudsley lamenta não se poder traçar entre o bom senso e a insânia.

Parou aí indefinidamente, nas fronteiras oscilantes da loucura, nessa zona mental onde se confundem facínoras e heróis, reformadores brilhantes e aleijões tacanhos, e se acotovelam gênios e degenerados. Não a transpôs. Recalcado pela disciplina vigorosa de uma sociedade culta, a sua nevrose explodiria na revolta, o seu misticismo comprimido esmagaria a razão. Ali, vibrando a primeira uníssona com o sentimento ambiente, difundido o segundo pelas almas todas que em torno se congregavam, se normalizaram.

Representante natural do meio em que nasceu

O fator sociológico, que cultivara a psicose mística do indivíduo, limitou‑a sem a comprimir, numa harmonia salvadora. De sorte que o espírito predisposto para a rebeldia franca contra a ordem natural cedeu à única reação de que era passível. Cristalizou num ambiente propício de erros e superstições comuns.

Antecedentes de família. Os Maciéis

A sua biografia compendia e resume a existência da sociedade sertaneja. Esclarece o conceito etiológico da doença que o vitimou. Delineemo‑la de passagem.

“Os Maciéis, que formavam, nos sertões entre Quixeramobim e Tamboril, uma família numerosa de homens válidos, ágeis, inteligentes e bravos, vivendo de vaqueirice e pequena criação, vieram, pela lei fatal dos tempos, a fazer parte dos grandes fastos criminais do Ceará, em uma guerra de família. Seus êmulos foram os Araújos, que formavam uma família rica, filiada a outras das mais antigas do norte da província.

Viviam na mesma região, tendo como sede principal a povoação de Boa Viagem, que demora cerca de dez léguas de Quixeramobim.

Foi uma das lutas mais sangrentas dos sertões do Ceará, a que se travou entre estes dois grupos de homens, desiguais na fortuna e posição oficial, ambos embravecidos na prática das violências, e numerosos.”

Assim começa o narrador consciencioso[1] breve notícia sobre a genealogia de Antônio Conselheiro.

Os fatos criminosos a que se refere são um episódio apenas entre as razias, quase permanentes, da vida turbulenta dos sertões. Copiam mil outros de que ressaltam, evidentes, a prepotência sem freios dos mandões de aldeia e a  exploração  pecaminosa por eles exercida sobre a bravura instintiva do sertanejo. Luta de famílias — é uma variante apenas de tantas outras, que ali surgem, intermináveis, comprometendo as próprias descendências que esposam as desavenças dos avós, criando uma quase predisposição fisiológica e tornando hereditários os rancores e as vinganças.

Lutas entre Maciéis e Araújos

Surgiu de incidente mínimo: pretensos roubos cometidos pelos Maciéis em propriedade de família numerosa, a dos Araújos.

Tudo indicava serem aqueles vítimas de acusação descabida. Eram “homens vigorosos, simpáticos, bem apessoados. verdadeiros e serviçais” gozando em toda a redondeza de reputação invejável.

Araújo da Costa e um seu parente, Silvestre Rodrigues Veras, não viam, porém, com bons olhos, a família pobre que lhes balanceava a influência, sem a justificativa de vastos latifúndios e boiadas grandes. Criadores opulentos, senhores de baraço e cutelo, vezados a fazer justiça por si mesmos, concertaram em dar exemplar castigo aos delinqüentes. E como estes eram bravos até à temeridade, chamaram a postos a guarda pretoriana dos capangas.

Assim apercebidos abalaram na expedição criminosa para Quixeramobim.

Mas volveram logo depois, contra a expectativa geral, em derrota. Os Maciéis, reunida toda a parentela, rapazes desempenados e temeros, haviam‑se afrontado com a malta assalariada, repelindo‑a vigorosamente, suplantando‑a, espavorindo‑a.

O fato passou em 1833.

Batidos, mal sofreando o desapontamento e a cólera, os potentados, cuja imbecilidade triunfante passara por tão duro trato, apelaram para recursos mais enérgicos. Não faltavam então, como não faltam hoje, facínoras de fama que lhes alugassem a coragem. Conseguiram dois, dos melhores: José Joaquim de Meneses, pernambucano, sanhudo, célebre pela rivalidade sanguinolenta com os Mourões famosos; e um cangaceiro terrível, Vicente Lopes, de Aracatiaçu. Reunida a matula turbulenta, a que se ligaram os filhos e genros de Silvestre, seguiu, de pronto, para a empreitada criminosa.

Ao acercarem‑se, porém, da vivenda dos Maciéis, os sicários — embora fossem em maior número — temeram‑lhes a resistência. Propuseram‑lhes que se entregassem, garantindo‑lhes, sob palavra, a vida. Aqueles, certos de não poderem resistir por muito tempo, aquiesceram. Renderam‑se. A palavra de honra dos bandidos teve o valor que poderia ter. Quando seguiam debaixo de escolta e algemados, para a cadeia  de Sobral, logo no primeiro dia da viagem foram os presos trucidados. Morreram nesta ocasião, entre outros, o chefe da família, Antônio Maciel, e um avô de Antônio Conselheiro[2].

Mas um tio deste, Miguel Carlos, logrou escapar. Manietado além disto com as pernas amarradas por baixo da barriga do cavalo que montava, a sua fuga é inexplicável. Afirma‑a, contudo, a sisudez de cronista sincero[3].

Ora, os Araújos tinham deixado fugir o seu pior adversário. Perseguiram‑no. Bem armados, bem montados, encalçaram‑no, prestes, em monteria bárbara, como se fossem sobre rastros de suçuarana bravia. O foragido, porém, emérito batedor de matas, seguido na fuga por uma irmã, iludiu por algum tempo a escolta perseguidora chefiada por Pedro Martins Veras; e no sítio da Passagem, perto de Quixeramobim, ocultou‑se exausto, numa choupana abandonada, coberta de ramos de oiticica.

Ali chegaram, em breve, rastreando‑o, os perseguidores. Eram nove horas da manhã. Houve então uma refrega desigual e tremenda. O temerário sertanejo, embora estropiado e doente de um pé que luxara, afrontou‑se com a horda assaltante, estendendo logo em terra a um certo Teotônio, desordeiro façanhudo, que se avantajara aos demais. Este caiu transversalmente à soleira da porta, impedindo‑a que se fechasse. A irmã de Miguel Carlos, quando procurava arrastá‑lo dali, caiu atravessada por uma bala. Alvejara‑a o próprio Pedro Veras, que pagou logo a façanha, levando à queima‑roupa uma carga de chumbo. Morto o cabecilha, os agressores recuaram por momentos, o suficiente para que o assaltado trancasse rapidamente a porta.

Isto feito, o casebre fez‑se um reduto. Pelas frinchas das paredes estourava de minuto em minuto um tiro de espingarda. Os bandidos não ousaram investi‑lo; mas foram de cobardia feroz. Atearam fogo à cobertura de folhas.

O efeito foi pronto. Mal podendo respirar no abrigo em chamas, Miguel Carlos resolve abandoná‑lo. Derrama toda a água de um pote na direção do fundo da choupana, apagando momentaneamente as brasas, e, saltando por sobre o cadáver da irmã, arroja‑se, de clavina sobraçada e parnaíba em punho, contra o círculo assaltante. Rompe‑o e afunda na caatinga. . .

Tempos depois um dos Araújos contratou casamento com a filha de rico criador de Tapaiara; e no dia das núpcias, já perto da igreja, tombou varado por uma bala, entre o alarma dos convivas e o desespero da noiva desditosa.

Velava, inextinguivelmente, a vingança do sertanejo…

Este tinha, agora, uma sócia no rancor justificado e fundo, outra irmã, Helena Maciel, a “Nêmesis da família”, conforme o dizer do cronista referido. A sua vida transcorria em lances perigosos, muitos dos quais desconhecidos senão fabulados pela imaginação fecunda dos matutos. O certo, porém, é que, desfazendo a urdidura de todas as tocaias, não raro lhe caiu sob a faca o espião incauto que o rastreava, em Quixeramobim.

Diz a narrativa a que acima nos reportamos:

“Parece que Miguel Carlos tinha ali protetores que o garantiam. O que é certo é que, não obstante a sorte tivera aquele seu apaniguado, costumava estar na vila.

Uma noite, estando à porta da loja de Manuel Procópio de Freitas, viu entrar um indivíduo, que procurava comprar aguardente. Dando‑o como espião, falou em matá‑lo ali mesmo, mas, sendo detido pelo dono da casa, tratou de acompanhar o suspeito, e o matou, à faca, ao sair da vila, no riacho da Palha.

Uma manhã, finalmente, saiu da casa de Antônio Caetano de Oliveira, casado com uma sua parenta, e foi banhar‑se no rio, que corre por trás dessa casa, situada quase no extremo da praça principal da vila, junto a garganta que conduz a pequena praça Cotovelo. Nos fundos da casa indicada era então a embocadura do riacho da Palha, que em forma quase circular contornava aquela praça, e de inverno constituía uma cinta lindíssima de águas represadas. Miguel Carlos estava já despido, como muitos companheiros, quando surgiu um grupo de inimigos, que o esperavam acocorados por entre o denso “mata‑pasto”. Estranhos e parentes de Miguel Carlos, tomando as roupas depostas na areia, e vestindo‑as ao mesmo tempo que corriam, puseram‑se em fuga. Em ceroulas somente, e com a sua faca em punho, ele correu também na direção dos fundos de uma casa, que quase enfrenta com a embocadura do riacho da Palha; casa na qual morava em 1845 Manuel Francisco da Costa. Miguel Carlos chegou a abrir o portão do quintal, de varas, da casa indicada; mas, quando quis fechá‑lo, foi prostrado por um tiro, partido do séquito que o perseguia. Outros dizem que isto se dera quando ele passava pelo buraco da cerca de uma vazante que havia por ali. Agonizava, caído, com a sua faca na mão, quando Manuel de Araújo, chefe do bando, irmão do noivo outrora assassinado, pegando‑o por uma perna, lhe cravou uma faca. Moribundo, Miguel Carlos lhe respondeu no mesmo instante com outra facada na carótida, morrendo ambos instantaneamente, este por baixo daquele ! Helena Maciel, correndo em fúria ao lugar do conflito, pisou a pés a cara do matador de seu irmão, dizendo‑se satisfeita da perda dele pelo fim que dera ao seu inimigo !”

Pretendem que os sicários tinham passado a noite em casa de Inácio Mendes Guerreiro, da família de Araújo, agente do correio da Vila. Vinham a título de prender os Maciéis; mas, só no propósito de matá‑los.

Helena não se abateu com esta desgraça. Nêmesis da família imolou um inimigo aos manes do seu irmão. Foi ela, como ousou confessar muitos anos depois, quem mandou espancar barbaramente a André Jacinto de Souza Pimentel, moço de família importante da vila, aparentado com os Araújos, a quem atribuía os avisos que estes recebiam em Boa Viagem, das vindas de Miguel Carlos. Desse espancamento resultou uma lesão cardíaca, que fez morrer em transes horrorosos o infeliz, em verdade culpado dessa derradeira agressão dos Araújos.

O fato de ter sido o crime perpetrado por soldados do destacamento de linha, ao mando do alferes Francisco Gregório Pinto, homem insolente, de baixa educação e origem, com quem Pimentel andava inimizado, fez acreditar muito tempo que fora esse oficial mal reputado o autor do crime.

Helena deixara‑se ficar queda e silenciosa.

Inúmeras vítimas anônimas fez esta lota sertaneja, que dizimava os sequazes das duas famílias, sendo o último dos Maciéis — Antônio Maciel, irmão de Miguel Carlos, morto em Boa Viagem. Ficou célebre muito tempo a valentia de Miguel Carlos e era por ele e seus parentes a estima e respeito dos coevos, testemunhas da energia dessa família, dentre a qual surgiram tantos homens de esforço, para uma luta com poderosos tais, como os da Boa Viagem e Tamboril[4].

Uma vida bem auspiciada

Nada se sabe ao certo sobre o papel que coube a Vicente Mendes Maciel, pai de Antônio Vicente Mendes Maciel ( o Conselheiro ), nesta luta deplorável. Os seus contemporâneos pintam‑no como “homem irascível mas de excelente caráter, meio visionário e desconfiado, mas de tanta capacidade que, sendo analfabeto, negociava largamente em fazendas, trazendo tudo perfeitamente contado e medido de memória, sem mesmo ter escrita para os devedores”.

O filho, sob a disciplina de um pai de honradez proverbial e ríspido, teve educação que de algum modo o isolou da turbulência da família. Indicam‑no testemunhas de vista, ainda existentes, como adolescente tranqüilo e tímido, sem o entusiasmo feliz dos que seguem as primeiras escalas da vida; retraído, avesso à troça, raro deixando a casa de negócio do pai, em Quixeramobim, de todo entregue aos misteres de caixeiro consciencioso, deixando passar e desaparecer vazia a quadra triunfal dos vinte anos. Todas as histórias, ou lendas entretecidas de exageros, segundo o hábito dos narradores do sertão, em que eram muita vez protagonistas os seus próprios parentes, eram‑lhe entoadas em torno evidenciando‑lhes sempre a coragem tradicional e rara. A sugestão das narrativas, porém, tinha o corretivo enérgico da ríspida sisudez do velho Mendes Maciel e não abalava o animo do rapaz. Talvez ficasse latente, pronta a se expandir em condições mais favoráveis. O certo é que falecendo aquele em 1855, vinte anos depois dos trágicos sucessos que rememoramos, Antônio Maciel prosseguiu na mesma vida corretíssima e calma.

Arrostando com a tarefa de velar por três irmãs solteiras revelou abnegação rara. Somente depois de as ter casado procurou, por sua vez, um enlace que lhe foi nefasto.

Primeiros reveses

Data daí a sua existência dramática. A mulher foi a sobrecarga adicionada à tremenda tara hereditária, que desequilibraria uma vida iniciada sob os melhores auspícios.

A partir de 1858 todos os seus atos denotam uma transformação de caráter. Perde os hábitos sedentários. Incompatibilidades de gênio com a esposa ou, o que é mais verossímil, a péssima índole desta, tornam instável a sua situação.

Em poucos anos vive em diversas vilas e povoados. Adota diversas profissões.

Nesta agitação, porém, percebe‑se a luta de um caráter que se não deixa abater. Tendo ficado sem bens de fortuna, Antônio Maciel, nesta fase preparatória de sua vida, a despeito das desordens do lar, ao chegar a qualquer nova sede de residência procura logo um emprego, um meio qualquer honesto de subsistência. Em 1859, mudando‑se para Sobral, emprega‑se como caixeiro. Demora‑se, porém, pouco ali. Segue para Campo Grande, onde desempenha as funções modestas de escrivão do juiz de paz. Daí, sem grande demora, se desloca para Ipu. Faz‑se solicitador, ou requerente no forum.

Nota‑se já em tudo isto um crescendo para profissões menos trabalhosas, exigindo cada vez menos a constância do esforço; o contínuo despear‑se da disciplina primitiva, a tendência acentuada para a atividade mais irrequieta e mais estéril, o descambar para a vadiagem franca. Ia‑se‑lhe ao mesmo tempo, na desarmonia do lar, a antiga serenidade.

Este período de vida mostra‑o, todavia, aparelhado de sentimentos dignos. Ali estavam, em torno, permanentes lutas partidárias abrindo‑lhe carreira aventurosa, em que poderia entrar como tantos outros, ligando‑se aos condutícios de qualquer conquistador de urnas, para o que tinha o prestígio tradicional da família. Evitou‑as sempre. E na descensão contínua, percebe‑se alguém que perde o terreno, mas lentamente, reagindo, numa exaustão dolorosa.

A queda

De repente, surge‑lhe revés violento. O plano inclinado daquela vida em declive termina, de golpe, em queda formidável. Foge‑lhe a mulher, em Ipu, raptada por um policial. Foi o desfecho. Fulminado de vergonha, o infeliz procura o recesso dos sertões, paragens desconhecidas, onde lhe não saibam o nome; o abrigo da absoluta obscuridade.

Desce para o sul do Ceará.

Ao passar em Paus Brancos, na estrada do Crato, fere com ímpeto de alucinado, à noite, um parente, que o hospedara. Fazem‑se breves inquirições policiais, tolhidas logo pela própria vítima reconhecendo a não culpabilidade do agressor. Salva‑se da prisão. Prossegue depois para o sul, à toa, na direção do Crato. E desaparece…

Passam‑se dez anos. O moço infeliz de Quixeramobim ficou de todo esquecido. Apenas uma ou outra vez lhe recordavam o nome e o termo escandaloso da existência, em que era magna pars um Lovelace de coturno reúno, um sargento de polícia.

Graças a este incidente, algo ridículo, ficara nas paragens natais breve resquício de sua lembrança.

Morrera por assim dizer.

Como se faz um monstro

…E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos até aos ombros, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão em que se apóia o passo tardo dos peregrinos…

É desconhecida a sua existência durante tão largo período. Um velho caboclo, preso em Canudos nos últimos dias da campanha, disse‑me algo a respeito, mas vagamente, sem precisar datas, sem pormenores característicos. Conhecera‑o nos sertões de Pernambuco, um ou dois anos depois da partida do Crato. Das palavras desta testemunha, concluí que Antônio Maciel, ainda moço, já impressionava vivamente a imaginação dos sertanejos. Aparecia por aqueles lugares sem destino fixo, errante. Nada referia sobre o passado. Praticava em frases breves e raros monossílabos. Andava sem rumo certo, de um pouso para outro, indiferente à vida e aos perigos, alimentando‑se mal e ocasionalmente, dormindo ao relento à beira dos caminhos, numa penitência demorada e rude…

Tornou‑se logo alguma coisa de fantástico ou mal‑assombrado para aquelas gentes simples. Ao abeirar‑se das rancharias dos tropeiros aquele velho singular, de pouco mais de trinta anos, fazia que cessassem os improvisos e as violas festivas.

Era natural. Ele surdia — esquálido e macerado — dentro do hábito escorrido, sem relevos, mudo, como uma sombra, das chapadas povoadas de duendes…

Passava, buscando outros lugares, deixando absortos os matutos supersticiosos.

Dominava‑os, por fim, sem o querer.

No seio de uma sociedade primitiva, que pelas qualidades étnicas e influxo das santas missões malévolas compreendia melhor a vida pelo incompreendido dos milagres, o seu viver misterioso rodeou‑o logo de não vulgar prestígio, agravando‑lhe, talvez, o temperamento delirante. A pouco e pouco todo 0 domínio que, sem cálculo, derramava em torno, parece haver refluído sobre si mesmo. Todas as conjeturas ou lendas que para logo o circundaram fizeram o ambiente propício ao germinar do próprio desvario. A sua insânia estava, ali, exteriorizada. Espelhavam‑na a admiração intensa e o respeito absoluto que o tornaram em pouco tempo árbitro incondicional de todas as divergências ou brigas, conselheiro predileto em todas as decisões. A multidão poupara‑lhe o indagar torturante acerca do próprio estado emotivo, o esforço dessas interrogativas angustiosas e dessa intuspecção delirante, entre os quais envolve a loucura nos cérebros abalados. Remodelava‑o à sua imagem. Criava‑o. Ampliava‑lhe, desmesuradamente, a vida, lançando‑lhe dentro os erros de 2 mil anos.

Precisava de alguém que lhe traduzisse a idealização indefinida, e a guiasse nas trilhas misteriosas para os céus…

O evangelizador surgiu, monstruoso, mas autômato.

Aquele dominador foi um títere. Agiu passivo, como uma sombra. Mas esta condensava o obscurantismo de três raças.

E cresceu tanto que se projetou na História…

Peregrinações e martírios

Dos sertões de Pernambuco passou aos de Sergipe, aparecendo na cidade de Itabaiana em 1874.

Ali chegou, como em toda a parte, desconhecido e suspeito, impressionando pelos trajes esquisitos — camisolão azul, sem cintura; chapéu de abas largas derrubadas, e sandálias. Às costas um surrão de couro em que trazia papel, pena e tinta, a Missão Abreviada e as Horas Marianas.

Vivia de esmolas, das quais recusava qualquer excesso, pedindo apenas o sustento de cada dia. Procurava os pousos solitários. Não aceitava leito algum, além de uma tábua nua e, na falta desta, o chão duro.

Assim pervagou largo tempo, até aparecer nos sertões, ao norte da Bahia. Ia‑lhe crescendo o prestígio. Já não seguia só. Encalçavam‑no na rota desnorteada os primeiros fiéis. Não os chamara. Chegavam‑lhe espontâneos, felizes por atravessarem com ele os mesmos dias de provações e misérias.

Eram, no geral, gente ínfima e suspeita, avessa ao trabalho, farândula de vencidos da vida, vezada à mandria e à rapina.

Um dos adeptos carregava o templo único, então, da religião minúscula e nascente: um oratório tosco, de cedro, encerrando a imagem do  Cristo.

Nas paradas pelos caminhos prendiam‑no a um galho de árvore; e, genuflexos, rezavam. Entravam com ele, triunfalmente erguido, pelos vilarejos e povoados, num coro de ladainhas.

Assim se apresentou o Conselheiro, em 1816, na vila do Itapicuru‑de‑Cima. Já tinha grande renome.

Di‑lo documento expressivo publicado aquele ano, na capital do Império.

“Apareceu no sertão do norte um indivíduo, que se diz chamar Antônio Conselheiro, e que exerce grande influencia no espírito das classes populares servindo‑se de seu exterior misterioso e costumes ascéticos, com que impõe à ignorância e à simplicidade. Deixou crescer a barba e cabelos, veste uma túnica de algodão e alimenta‑se tenuamente, sendo quase uma múmia. Acompanhado de duas professas, vive a rezar terços e ladainhas e a pregar e a dar conselhos às multidões, que reúne, onde lhe permitem os párocos; e, movendo sentimentos religiosos, vai arrebanhando o povo e guindo‑o a seu gosto. Revela ser homem inteligente, mas sem cultura”[5].

Estes dizeres rigorosamente verídicos, de um anuário impresso centenares de léguas de distancia, delatam bem a fama que ele já granjeara.

Lendas

Entretanto a vila de Itapicuru esteve para ser o fecho da sua carreira extraordinária. Foi, ali, naquele mesmo ano, entre o espanto dos fiéis, inopinadamente preso. Determinara a prisão uma falsidade, que o seu modo de vida excepcional e as antigas desordens domésticas de algum modo justificavam: diziam‑no assassino da esposa e da própria mãe.

Era uma lenda arrepiadora.

Contavam que a última, desadorando a nora, imaginara perdê‑la. Revelara, por isto, que era traído; e como este, surpreso, lhe exigisse provas do delito, propôs‑se apresentá‑las sem tardança. Aconselhou‑o a que fantasiasse qualquer viagem, permanecendo, porém, nos arredores, porque veria, à noite, invadir‑lhe o lar o sedutor que o desonrara. Aceito o alvitre, o infeliz, cavalgando e afastando‑se cerca de meia légua, torceu depois de rédeas, tornando, furtivamente, por desfreqüentados desvios, para uma espera adrede escolhida, de onde pudesse observar bem e agir de pronto.

Ali quedou longas horas, até lobrigar, de fato, noite velha, um vulto aproximando‑se de sua vivenda. Viu‑o achegar‑se cautelosamente e galgar uma das janelas. E não lhe deu tempo para entrar. Abateu‑o com um tiro.

Penetrou, em seguida, de um salto, no lar e fulminou com outra descarga a esposa infiel, adormecida.

Voltou, depois, para reconhecer o homem que matara… e viu com horror que era a sua própria mãe, que se disfarçara daquele modo para a consecução do plano diabólico.

Fugira, então, na mesma hora apavorado, doido, abandonando tudo, ao acaso, pelos sertões em fora…

A imaginação popular, como se vê, começava a romancear‑lhe a vida, com um traço vigoroso de originalidade trágica.

O asceta

Como quer que fosse, porém, o certo é que em 1870 a repressão legal o atingiu quando já se ultimara a evolução do seu espírito, imerso de todo no sonho de onde não mais despertaria. O asceta despontava, inteiriço, da rudeza disciplinar de quinze anos de penitência. Requintara nessa aprendizagem de martírios, que tanto preconizam os velhos luminares da Igreja. Vinha do tirocínio brutal da fome, da sede, das fadigas, das angústias recalcadas e das misérias fundas. Não tinha dores desconhecidas. A epiderme seca rugava‑se‑lhe como uma couraça amolgada e rota sobre a carne morta. Anestesiara‑a com a própria dor; macerara‑a e sarjara‑a de cilícios mais duros que os buréis de esparto; trouxera‑a, de rojo, pelas pedras dos caminhos; esturrara‑a nos rescaldos das secas; inteiriçara‑a nos relentos frios; adormecera‑a em transitórios repousos, nos leitos dilacerantes das caatingas…

Abeirara muitas vezes a morte nos jejuns prolongados, com requinte de ascetismo que surpreenderia Tertuliano, esse sombrio propagandista da eliminação lenta da matéria, “descarregando‑se do seu sangue, fardo pesado e importuno da alma impaciente por fugir…”[6]

Para quem estava neste tirocínio de amarguras, aquela ordem de prisão era incidente mínimo. Recebeu‑a indiferente. Proibiu aos fiéis que o defendessem. Entregou‑se. Levaram‑no à capital da Bahia. Ali, a sua fisionomia estranha: face morta, rígida como uma máscara, sem olhar e sem risos; pálpebras descidas dentro de órbitas profundas; e o seu entrajar singularíssimo; e o seu aspecto repugnante, de desenterrado, dentro do camisolão comprido, feito uma mortalha preta; e os longos cabelos corredios e poentos caindo pelos ombros, emaranhando‑se nos pelos duros da barba descuidada, que descia até à cintura — aferroaram a curiosidade geral.

Passou pelas ruas entre ovações de esconjuros e “pelos sinais” dos crentes assustados e das beatas retransidas de sustos.

Interrogaram‑no os juízes estupefatos.

Acusavam‑no de velhos crimes, cometidos no torrão nativo. Ouviu o interrogatório e as acusações, e não murmurou sequer, revestido de impassibilidade marmórea.

A escolta que o trouxera, soube‑se depois, espancara‑o covardemente nas estradas. Não formulou a mais leve queixa.

Quedou na tranqüila indiferença superior de um estóico.

Apenas — e este pormenor curioso ouvimo‑lo a pessoa insuspeita — no dia do embarque para o Ceará pediu às autoridades que o livrassem da curiosidade pública, a única coisa que o vexava.

Chegando à terra natal, reconhecida a improcedência da denúncia, é posto em liberdade. E no mesmo ano reaparece na Bahia entre os discípulos, que o aguardavam sempre.

Esta volta — coincidindo, segundo afirmam, com o dia que prefixara, no momento de ser preso—tomou aspectos de milagre.

Tresdobrou a sua influência.

Vagueia, então, algum tempo, pelos sertões de Curaçá, estacionando ( 1877 ) de preferência em Chorrochó, lugarejo de poucas centenas de habitantes, cuja feira movimentada congrega a maioria dos povoadores daquele trecho do S. Francisco. Uma capela elegante indica‑lhe, ainda hoje, a estada. E, mais venerável talvez, pequena árvore, à entrada da vila, que foi por muito tempo objeto de uma fitolatria extraordinária. À sua sombra descansara o peregrino. Era um arbusto sagrado. A sua sombra curavam‑se os crédulos doentes; as suas folhas eram panacéia infalível.

O povo começava a grande série de milagres de que não cogitava talvez o infeliz…

De 1877 a 1887 erra por aqueles sertões, em todos os sentidos, chegando mesmo até ao litoral, em Vila do Conde ( 1887 ).

Em toda esta área não há, talvez, uma cidade ou povoado onde não tenha aparecido. Alagoinhas, Inhambupe, Bom Conselho, Jeremoabo, Cumbe, Mucambo, Maçacará, Pombal, Monte Santo, Tucano e outros viram‑no chegar, acompanhado da farândola de fiéis. Em quase todas deixava um traço da passagem: aqui um cemitério arruinado, de muros reconstruídos; além uma igreja renovada; adiante uma capela que se erguia, elegante sempre.

A sua entrada nos povoados, seguido pela multidão contrita, em silencio, alevantando imagens, cruzes e bandeiras do Divino, era solene e impressionadora. Paralisavam‑se as ocupações normais. Ermavam‑se as oficinas e as culturas. A população convergia para a vila onde, em compensação, avultava o movimento das feiras; e durante alguns dias, eclipsando as autoridades locais, o penitente errante e humilde monopolizava o mando, fazia‑se autoridade única.

Erguiam‑se na praça, revestidas de folhagens, as latadas, onde à tarde entoavam, os devotos, terços e ladainhas; e quando era grande a concorrência, improvisava‑se um palanque ao lado do barracão da feira, no centro do largo, para que a palavra do profeta pudesse irradiar para todos os pontos e edificar todos os crentes.

As prédicas

Ele ali subia e pregava. Era assombroso, afirmam testemunhas existentes. Uma oratória bárbara e arrepiadora, feita de excertos truncados das Horas Marianas, desconexa, abstrusa, agravada, às vezes, pela ousadia extrema das citações latinas; transcorrendo em frases sacudidas; misto inextricável e confuso de conselhos dogmáticos, preceitos vulgares da moral cristã e de profecias esdrúxulas…

Era truanesco e era pavoroso.

Imagine‑se um bufão arrebatado numa visão do Apocalise…

Parco de gestos, falava largo tempo, olhos em terra, sem encarar a multidão abatida sob a algaravia, que derivava demoradamente, ao arrepio do bom senso, em melopéia fatigante.

Tinha, entretanto, ao que parece, a preocupação do efeito produzido por uma ou outra frase mais decisiva. Enunciava‑a e emudecia; alevantava a cabeça, descerrava de golpe as pálpebras; viam‑se‑lhe então os olhos extremamente negros e vivos, e o olhar — uma cintilação ofuscante… Ninguém ousava contemplá‑lo. A multidão sucumbida abaixava, por sua vez, as vistas, fascinada, sob o estranho hipnotismo daquela insânia formidável.

E o grande desventurado realizava, nesta ocasião, o seu único milagre: conseguia não se tornar ridículo…

Nestas prédicas, em que fazia vitoriosa concorrência aos capuchinhos vagabundos das missões, estadeava o sistema religioso incongruente e vago. Ora, quem as ouviu não se forra a aproximações históricas sugestivas. Relendo as páginas memoráveis[7]  em que Renan faz ressurgir, pelo galvanismo do seu belo estilo, os adoidados chefes de seita dos primeiros séculos, nota‑se a revivescência integral de suas aberrações extintas. Não há desejar mais completa reprodução do mesmo sistema, das mesmas imagens, das mesmas fórmulas hiperbólicas, das mesmas palavras quase. É um exemplo belíssimo da identidade dos estados evolutivos entre os povos. O retrógrado do sertão reproduz o facies dos místicos do passado. Considerando‑o, sente‑se o efeito maravilhoso de uma perspectiva através dos séculos…

Está fora do nosso tempo. Está de todo entre esses retardatários que Fouillée compara, em imagem feliz, à des coureurs sur le champ de la civilisation, de plus en plus en retard.

Preceitos de montanista

É um dissidente do molde exato de Themison. Insurge‑se contra a Igreja romana, e vibra‑lhe objurgatórias, estadeando o mesmo argumento que aquele: ela perdeu a sua glória e obedece a Satanás. Esboça uma moral que é a tradução justalinear da de Montano: a castidade exagerada ao máximo horror pela mulher, contrastando com a licença absoluta para o amor livre, atingindo quase à extinção do casamento.

O frígio pregava‑a, talvez como o cearense, pelos ressaibos remanescentes das desditas conjugais. Ambos proíbem severamente que as moças se ataviem; bramam contra as vestes realçadoras; insistem do mesmo modo, especialmente sobre o luxo dos toucados; e — o que é singularíssimo — cominam, ambos, o mesmo castigo a este pecado: o demônio dos cabelos, punindo as vaidosas com dilaceradores pentes de espinho.

A beleza era‑lhes a face tentadora de Satã. O Conselheiro extremou‑se mesmo no mostrar por ela invencível horror. Nunca mais olhou para uma mulher. Falava de costas mesmo às beatas velhas, feitas para amansarem sátiros.

Profecias

Ora, esta identidade avulta, mais frisante, quando se comparam com as do passado as concepções absurdas do esmaniado apóstolo sertanejo. Como os montanistas, ele surgia no epílogo da Terra… O mesmo milenarismo extravagante, o mesmo pavor do anti‑Cristo despontando na derrocada universal da vida. O fim do mundo próximo…

Que os fiéis abandonassem todos os haveres, tudo quanto os maculasse com um leve traço da vaidade. Todas as fortunas estavam a pique da catástrofe iminente e fora temeridade inútil conservá‑las.

Que abdicassem as venturas mais fugazes e fizessem da vida um purgatório duro; e não a manchassem nunca com o sacrilégio de um sorriso. O juízo final aproximava‑se, inflexível.

Prenunciavam‑no anos sucessivos de desgraças[8]:

“Em 1896 hade rebanhos mil correr da praia para o certão; então o certão virará praia e a praia virará certão.

Em 1897 haverá muito pasto e pouco rasto e um só pastor e um só rebanho.

Em 1898 haverá muitos chapéus e poucas cabeças.

Em 1899 ficarão as águas em sangue e o planeta hade apparecer no nascente com o raio do sol que o ramo se confrontará na terra e a terra em algum lugar se confrontará no céu…

Hade chover uma grande chuva de estrellas e ahi será o fim do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes. Deus disse no Evangelho: eu tenho um rebanho que anda fóra deste aprisco e é preciso que se reunam porque há um só pastor e um só rebanho !”

Como os antigos, o predestinado atingia a terra pela vontade divina. Fora o próprio Cristo que pressagiara a sua vinda quando

“Na hora nona, descançando no monte das Oliveiras um dos seus apóstolos perguntou: Senhor! para o fim desta edade que signaes vós deixaes ?

Ele respondeu: muitos signaes na Lua, no Sol e nas Estrellas. Hade apparecer um Anjo mandado por meu pae terno, prégando sermões pelas portas, fazendo povoações nos desertos, fazendo egrejas e capellinhas e dando seus conselhos…”

E no meio desse extravagar adoidado, rompendo dentre o messianismo religioso, o messianismo da raça levando‑o à insurreição contra a forma republicana:

“Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brazil com o Brazil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prussia com a Prussia, das ondas do mar D. Sebastião sahirá com todo o seu exercito.

Desde o princípio do mundo que encantou com todo seu exercito e o restituio em guerra.

E quando encantou‑se afincou a espada na pedra, ella foi até os copos e elle disse: Adeus mundo!

Até mil e tantos a dois mil não chegarás !

Neste dia quando sahir com o seu exercito tira a todos no fio da espada deste papel da Republica. O fim desta guerra se acabará na Santa Casa de Roma e o sangue hade ir até á junta grossa…“

Um heresiarca do século 2 em plena idade moderna

O profetismo tinha, como se vê, na sua boca, o mesmo tom com que despontou na Frígia, avançando para 0 Ocidente. Anunciava, idêntico, o juízo de Deus, a desgraça dos poderosos, o esmagamento do mundo profano, o reino de mil anos e suas delícias.

Não haverá, com efeito, nisto, um traço superior do judaísmo ?

Não há encobri‑lo. Ademais este voltar‑se à idade de ouro dos apóstolos e sibilistas, revivendo vetustas ilusões, não é uma novidade. É o permanente refluxo do cristianismo para o seu berço judaico. Montano reproduz‑se em toda a história, mais ou menos alterado consoante o caráter dos povos, mas delatando, na mesma rebeldia contra a jerarquia eclesiástica, na mesma exploração do sobrenatural, e no mesmo ansiar pelos céus, a feição primitivamente sonhadora da velha religião, antes que a deformassem os sofistas canonizados dos concílios.

A exemplo de seus comparsas do passado, Antônio Conselheiro era um pietista ansiando pelo reino de Deus, prometido, delongado sempre e, ao cabo, de todo esquecido pela Igreja ortodoxa do século II.

Abeirara‑se apenas do catolicismo mal compreendido.

Tentativas de reação legal

Coerente com a missão a que se devotara, ordenava, depois destas homílias, penitências que, de ordinário redundavam em benefício das localidades. Reconstruíam‑se templos abatidos; renovavam‑se cemitérios em abandono; erigiam‑se construções novas e elegantes. Os pedreiros e carpinteiros trabalhavam de graça; os abastados forneciam, grátis, os materiais indispensáveis; o povo carregava pedras. Durante dias seguidos, na azáfama piedosa, se agitavam os operários cujos salários se averbavam nos céus.

E terminada a empresa o predestinado abalava… para onde ? Ao acaso, tomando a primeira vereda, pelos sertões em fora, pelas chapadas multívias, sem olhar sequer para os que o encalçavam.

Não o contrariava o antagonismo de um adversário perigoso, o padre. A dar‑se crédito a testemunho valioso[9], aquele, em geral, estimulava‑lhe ou permitia‑lhe as práticas pelas quais, sem nada usufruir, promovia todos os atos de onde saem os rendimentos do clero: batizados, desobrigas, festas e novenas.

Os vigários toleravam com boa sombra os despropósitos do Santo endemoninhado que ao menos lhe acrescia a côngrua reduzida. Percebeu‑o em 1882, o arcebispo da Bahia, procurando por paradeiro a esta transigência, senão mal disfarçada proteção, por uma circular dirigida a todos os párocos.

“Chegando ao nosso conhecimento que, pelas freguesias do centro deste arcebispado, anda um indivíduo denominado Antônio Conselheiro, pregando ao povo, que se reúne para ouvi‑lo, doutrinas supersticiosas e uma moral excessivamente rígida[10] com que está perturbando as consciências e enfraquecendo, não pouco, a autoridade dos párocos destes lugares, ordenamos a V. Rev.ma, que não consinta em sua freguesia semelhante abuso, fazendo saber aos paroquianos que Ihes proibimos, absolutamente, de se reunirem para ouvir tal pregação, visto como, competindo na Igreja católica, somente aos ministros da religião, a missão santa de doutrinar os novos, um secular, quem quer que ele seja, ainda quando muito instruído e virtuoso. não tem autoridade para exercê‑lo.

Entretanto sirva isto para excitar cada vez mais o zelo que V. Rev.ma, no exercício do ministério da pregação, a fim de que os seus paroquianos, suficientemente instruídos, não se deixem levar por todo o vento de doutrina” , etc[11].

Foi inútil a intervenção da Igreja.

Antônio Conselheiro continuou sem embaraços a sua marcha de desnorteado apóstolo, pervagando nos sertões. E, como se desejasse reviver sempre a lembrança da primeira perseguição sofrida, volve constantemente ao Itapicuru, cuja autoridade policial, por fim, apelou para os poderes constituídos, em oficio onde, depois de historiar ligeiramente os antecedentes do agitador, disse[12]:

“…Fez neste termo seu acampamento e presentemente está no referido arraial construindo uma capela a expensas do povo. Conquanto esta obra seja de algum melhoramento, aliás dispensável, para o lugar, todavia os excessos e sacrifícios não compensam este bem, e, pelo modo por que estão os ânimos, é mais justo e fundado o receio de grandes desgraças. Para que V. S. saiba quem é Antônio Conselheiro, basta dizer que é acompanhado por centenas e centenas de pessoas, que ouvem‑no e cumprem suas ordens de preferência às do vigário da paróquia. O fanatismo não tem limites e assim é que, sem medo de erro, e firmado em fatos, posso afirmar que adoram‑no, como se fosse um Deus vivo. Nos dias de sermões, terços e ladainhas, o ajuntamento sobe a mil pessoas. Na construção desta capela, cuja féria semanal é de quase cem mil‑réis, décuplo do que devia ser pago, estão empregados cearenses, aos quais Antônio Conselheiro presta a mais cega proteção, tolerando e dissimulando os atentados que cometem, e esse dinheiro sai dos crédulos e ignorantes, que, além de não trabalharem, vendem o pouco que possuem e até furtam para que não haja a menor falta, sem falar nas quantias arrecadadas que tem sido remetidas para outras obras do Chorrochó, termo do Capim Grosso.”

E depois de apontar a última tropelia dos fanáticos:

“Havendo desinteligência entre o grupo de Antônio Conselheiro e o vigário de Inhambupe, está aquele municiado como se tivesse de ferir uma batalha campal, e consta que estão à espera que o vigário vá ao lugar denominado Junco para assassiná‑lo. Faz medo aos transeuntes passar por alto, vendo aqueles malvados munidos de cacetes, facas, facões, clavinotes; e ai daquele que for suspeito de ser infenso a Antônio Conselheiro.”

Ao que se figura, este apelo, feito em termos tão alarmantes, não foi correspondido. Nenhuma providencia se tomou até meados de 1887, quando a diocese da Bahia interveio de novo, oficiando o arcebispo ao presidente da província, pedindo providências que contivessem o “indivíduo Antônio Vicente Mendes Maciel que, pregando doutrinas subversivas, fazia um grande mal à religião e ao Estado, distraindo o povo de suas obrigações e arrastando‑o após si, procurando convencer de que era Espírito‑Santo etc.”

Ante o reclamo, o presidente daquela província dirigiu‑se ao ministro do Império, pedindo um lugar para o tresloucado no hospício de alienados do Rio. O ministro respondeu ao presidente contrapondo o notável argumento de não haver, naquele estabelecimento, lugar algum vago; e o presidente oficiou de novo ao prelado, tornando‑o ciente da resolução admirável do governo.

Assim se abriu e se fechou o ciclo das providências legais que se fizeram durante o Império.

Mais lendas

O Conselheiro continuou sem tropeços na missão pervertedora, avultando na imaginação popular.

Apareciam as primeiras lendas.

Não as arquivaremos todas.

Fundou o arraial do Bom Jesus; e contam as gentes assombradas que em certa ocasião, quando se construía a belíssima igreja que lá está, esforçando‑se debalde dez operários por erguerem pesado baldrame, o predestinado trepou sobre o madeiro e ordenou, em seguida, que dois homens apenas o levantem; e o que não haviam conseguido tantos, realizaram os dois rapidamente, sem esforço algum…

Outra vez — ouvi o estranho caso a pessoas que se não haviam deixado fanatizar! — chegou a Monte Santo e determinou que se fizesse uma procissão pela montanha acima, até a última capela, no alto. Iniciou‑se à tarde a cerimônia. A multidão derivou, lenta, pela encosta clivosa, entoando benditos, estacionando nos “passos”, contrita. Ele seguia na frente — grave e sinistro — descoberto, agitada pela ventania forte a cabeleira longa, arrimando‑se ao bordão inseparável. Desceu a noite. Acenderam‑se as tochas dos penitentes, e a procissão, estendida na linha de cumeadas, traçou uma estrada luminosa no dorso da montanha…

Ao chegar à Santa Cruz, no alto, Antônio Conselheiro, ofegante, senta‑se no primeiro degrau da tosca escada de pedra, e queda‑se estático, contemplando os céus, o olhar imerso nas estrelas…

A primeira onda de fiéis enche logo o âmbito restrito da capela, enquanto outros permanecem fora ajoelhados sobre a rocha aspérrima.

O contemplativo, então, levanta‑se. Mal sofreia o cansaço. Entre alas respeitosas, penetra, por sua vez, na capela, pendida para o chão a cabeça, humílimo e abatido, arfando.

Ao abeirar‑se do alta‑mor, porém, ergue o rosto pálido, emoldurado pelos cabelos em desalinho. E a multidão estremece toda, assombrada… Duas lágrimas sangrentas rolam, vagarosamente, no rosto imaculado da Virgem Santíssima…

Estas e outras lendas são ainda correntes no sertão. natural. Espécie de grande homem pelo avesso, Antônio Conselheiro reunia no misticismo doentio todos os erros e superstições que formam o coeficiente de redução da nossa nacionalidade. Arrastava o povo sertanejo não porque o dominasse, mas porque o dominavam as aberrações daquele. Favorecia‑o o meio e ele realizava, às vezes, como vimos, o absurdo de ser útil. Obedecia à finalidade irresistível de velhos impulsos ancestrais; e jugulado por ela espelhava em todos os atos a placabilidade de um evangelhista incomparável.

De feito, amortecia‑lhe a nevrose inexplicável placidez.

Certo dia o vigário de uma freguesia sertaneja vê chegar à sua porta um homem extremamente magro e sucumbido: longos cabelos despenteados pelos ombros, longas barbas descendo pelo peito; uma velha figura de peregrino a que não faltavam o crucifixo tradicional, suspenso a um lado entre as camândulas da cintura, e o manto poento e gasto, e a borracha d’água, e o bordão comprido…

Dá‑lhe o pároco com que se alimente, aceita um pedaço de pão apenas; oferece‑lhe um leito, prefere uma tábua sobre que se deita sem cobertas, vestido, sem mesmo desatacar as sandálias.

No outro dia o singularíssimo hóspede, que poucas palavras até então pronunciara, pede ao padre lhe conceda pregar por ocasião da festa que ia realizar‑se na igreja.

— Irmão não tendes ordens; a Igreja não permite que pregueis.

— Deixai‑me, então, fazer a via‑sacra.

— Também não posso, vou eu fazê‑la, contraveio mais uma vez o sacerdote.

O peregrino, então, encarou‑o fito por algum tempo, e sem dizer palavra tirou de sob a túnica um lenço. Sacudiu o pó das alpercatas. E partiu.

Era o clássico protesto inofensivo e tranqüilo dos apóstolos…

Hégira para o sertão

A reação, porém, crescendo, malignou‑lhe o animo. Dominador incondicional, principiou de se irritar ante a menor contrariedade.

Certa vez, em Natuba, estando ausente o vigário, com quem não estava em boas graças, apareceu e mandou carregar pedras para consertos da igreja. Chega o padre; vê a invasão dos domínios sagrados; irrita‑se e resolve pôr embargos à desordem. Era homem prático; apelou para o egoísmo humano.

Tendo a Câmara, dias antes, imposto aos proprietários o calçamento dos passeios das casas, cedeu ao povo, para tal fim, as pedras já acumuladas.

O Conselheiro não se limitou, desta vez, a sacudir as sandálias. Saiu‑lhe da boca a primeira maldição, às portas da cidade ingrata; e partiu.

Tempos depois, a pedido do mesmo vigário, certa influência política do local o chamou. O templo desabava em ruínas; o mato invadira todo o cemitério; e a freguesia era pobre. Só podia renová‑los quem tão bem dispunha dos matutos crédulos. O apóstolo deferiu ao convite. Mas fê‑lo através de imposições discricionárias, relembrando, com altanaria destoante da pacatez antiga, a afronta recebida.

Iam‑no tornando mau.

Viu a República com maus olhos e pregou, coerente, a rebeldia contra as novas leis. Assumiu desde 1893 uma feição combatente inteiramente nova.

Originou‑a fato de pouca monta.

Decretada a autonomia dos municípios, as Câmaras das localidades do interior da Bahia tinham afixado nas tábuas tradicionais, que substituem a imprensa, editais para a cobrança de impostos etc.

Ao surgir esta novidade Antônio Conselheiro estava em Bom Conselho. Irritou‑o a imposição; e planeou revide imediato. Reuniu o povo num dia de feira e, entre gritos sediciosos e estrepitar de foguetes, mandou queimar as tábuas numa fogueira, no largo. Levantou a voz sobre o “auto‑de‑fé”, que a fraqueza das autoridades não impedira, e pregou abertamente a insurreição contra as leis.

Avaliou, depois, a gravidade do atentado.

Deixou a vila, tomando pela estrada de Monte Santo, para o norte.

O acontecimento repercutira na capital, de onde partiu numerosa força de polícia para prender o rebelde e dissolver os grupos turbulentos. Estes naquela época não excediam a duzentos homens. A tropa alcançou‑os em Maceté, lugar desabrigado e estéril entre Tucano e Cumbe, nas cercanias dás serras do Ovó. As trinta praças, bem armadas, atacaram impetuosamente a turba de penitentes depauperados, certas de os destroçarem à primeira descarga. Deram, porém, de frente, com os jagunços destemerosos. Foram inteiramente desbaratadas, precipitando‑se na fuga, de que fora o primeiro a dar o exemplo o próprio comandante.

Esta batalha minúscula teria, infelizmente, mais tarde muitas cópias ampliadas.

Realizada a façanha, os crentes acompanharam, reatando a marcha, a hégira do profeta. Não procuravam mais os povoados, como dantes. Demandavam o deserto.

O desbarato da tropa prenunciava‑lhes perseguições mais vigorosas; e, certos do amparo da natureza selvagem, contavam com a vitória enterreirando entre as caatingas os novos contendores. Estes partiram, de fato, sem perda de tempo, da Bahia, em número de oitenta praças, de linha. Mas não prosseguiram além de Serrinha, de onde tornaram sem se aventurarem com o sertão. Antônio Conselheiro, porém, não se iludiu com o inexplicável recuo, que o salvara. Arrastou a matula de fiéis, a que se aliavam, dia a dia, dezenas de prosélitos, pelas trilhas sertanejas fora, seguindo prefixado rumo.

Conhecia o sertão. Percorrera‑o todo numa romaria ininterrupta de vinte anos. Sabia de paragens ignotas de onde o não arrancariam. Marcara‑as já, talvez prevenindo futuras vicissitudes.

Endireitou, rumo firme, em cheio para o norte.

Os crentes acompanharam‑no. Não inquiriram para onde seguiam. E atravessaram serranias íngremes, tabuleiros estéreis e chapadas rasas, longos dias, vagarosamente, na marcha cadenciada pelo toar das ladainhas e pelo passo tardo do profeta…

Capítulo V

Canudos: antecedentes

Canudos , velha fazenda de gado à beira do Vaza‑Barris, era, em 1890, uma tapera de cerca de cinqüenta capuabas de pau‑a‑pique.

Já em 1876, segundo o testemunho de um sacerdote, que ali fora, como tantos outros, e nomeadamente o vigário de Cumbe, em visita espiritual às gentes de todo despeadas da terra, lá se aglomerava, agregada à fazenda então ainda florescente, população suspeita e ociosa, “armada até aos dentes” e “cuja ocupação, quase exclusiva, consistia em beber aguardente e pitar uns esquisitos cachimbos de barro em canudos de metro de extensão”[1] , de tubos naturalmente fornecidos pelas solanáceas (canudos‑de‑pito), vicejantes em grande cópia à beira do rio.

Assim, antes da vinda do Conselheiro, já o lugarejo obscuro — e o seu nome claramente se explica — tinha, como a maioria dos que jazem desconhecidos pelos nossos sertões, muitos germens da desordem e do crime. Estava, porém, em plena decadência quando lá chegou aquele em 1893: tajupares em abandono; vazios os pousos; e, no alto de um esporão da Favela, destelhada, reduzida às paredes exteriores, a antiga vivenda senhoril, em ruínas…

Data daquele ano a sua revivescência e crescimento rápido. O aldeamento efêmero dos matutos vadios, centralizado pela igreja velha, que já existia, ia transmudar‑se, ampliando‑se, em pouco tempo, na Tróia de taipa dos jagunços.

Era o lugar sagrado, cingido de montanhas, onde não penetraria a ação do governo maldito.

A sua topografia interessante modelava‑o ante a imaginação daquelas gentes simples como o primeiro degrau, amplíssimo e alto, para os céus…

Crescimento vertiginoso

Não surpreende que para lá convergissem, partindo de todos os pontos, turmas sucessivas de povoadores convergentes das vilas e povoados mais remotos.

Diz uma testemunha[2]: “Alguns lugares desta comarca e de outras circunvizinhas, e até do Estado de Sergipe, ficaram desabitados, tal a aluvião de famílias que subiam para os Canudos, lugar escolhido por Antônio Conselheiro para o centro de suas operações. Causava dó verem‑se expostos à venda, nas feiras, extraordinária quantidade de gado cavalar, vacum, caprino etc., além de outros objetos, por preços de nonada, como terrenos, casas etc. O anelo extremo era vender, apurar algum dinheiro e ir reparti‑lo com o Santo Conselheiro.”

Assim se mudavam os lares.

Inhambupe, Tucano, Cumbe, Itapicuru, Bom Conselho, Natuba, Maçacará, Monte Santo, Jeremoabo, Uauá, e demais lugares próximos; Entre Rios, Mundo Novo, Jacobina, Itabaiana e outros sítios remotos, forneciam constantes contingentes. Os raros viajantes que se arriscavam a viagens naquele sertão topavam grupos sucessivos de fiéis que seguiam, ajoujados de fardos, carregando as mobílias toscas, as canastras e os oratórios, para o lugar eleito. Isoladas a princípio, essas turmas adunavam‑se pelos caminhos, aliando‑se a outras, chegando, afinal, conjuntas, a Canudos.

O arraial crescia vertiginosamente, coalhando as colinas.

A edificação rudimentar permitia à multidão sem lares fazer até doze casas por dia; e, à medida que se formava, a tapera colossal parecia estereografar a feição moral da sociedade ali acoitada. Era a objetivação daquela insânia imensa.

Documento iniludível permitindo o corpo de delito direto sobre os desmandos de um povo.

Aquilo se fazia a esmo, adoidadamente.

Aspecto original

A urbs monstruosa, de barro, definia bem a civitas sinistra do erro. O povoado novo surgia, dentro de algumas semanas, já feito ruínas. Nascia velho. Visto de longe, desdobrado pelos cômoros, atulhando as canhadas, cobrindo área enorme, truncado nas quebradas, revolto nos pendores — tinha o aspecto perfeito de uma cidade cujo solo houvesse sido sacudido e brutalmente dobrado por um terremoto.

Não se distinguiam as ruas. Substituía‑as dédalo desesperador de becos estreitíssimos, mal separando o baralhamento caótico dos casebres feitos ao acaso, testadas volvidas para todos os pontos, cumeeiras orientando‑se para todos os rumos, como se tudo aquilo fosse construído, febrilmente, numa noite, por uma multidão de loucos…

Feitas de pau‑a‑pique e divididas em três compartimentos minúsculos, as casas eram paródia grosseira da antiga morada romana: um vestíbulo exíguo, um atrium servindo ao mesmo tempo de cozinha, sala de jantar e de recepção; e uma alcova lateral, furna escuríssima mal revelada por uma porta estreita e baixa. Cobertas de camadas espessas de vinte centímetros, de barro, sobre ramos de icó, lembravam as choupanas dos gauleses de César. Traíam a fase transitória entre a caverna primitiva e a casa. Se as edificações em suas modalidades evolutivas objetivam a personalidade humana, o casebre de teto de argila dos jagunços equiparado ao wigwan dos peles‑vermelhas sugeria paralelo deplorável. O mesmo desconforto e, sobretudo, a mesma pobreza repugnante, traduzindo de certo modo, mais do que a miséria do homem, a decrepitude da raça.

Quando o olhar se acomodava à penumbra daqueles cômodos exíguos, lobrigava, invariavelmente, trastes raros e grosseiros: um banco tosco; dois ou três banquinhos com a forma de escabelos; igual número de caixas de cedro, ou canastras; um jirau pendido do teto; e as redes. Eram toda a mobília. Nem camas, nem mesas. Pendurados aos cantos, viam‑se insignificantes acessórios: o bogó ou borracha, espécie de balde de couro para o transporte de água; pares de caçuás ( jacás de cipó ) e os aiós, bolsa de caça, feita das fibras de caroá. Ao fundo do único quarto, um oratório tosco. Neste, copiando a mesma feição achamboada do conjunto, santos mal acabados, imagens de linhas duras, a objetivarem a religião mestiça em traços incisivos de manipansos: Santos Antônios proteiformes e africanizados, de aspecto bronco, de fetiches; Marias Santíssimas, feias como megeras…

Por fim as armas — a mesma revivescência de estádios remotos: o facão jacaré, de folha larga e forte; a parnaíba dos cangaceiros, longa como uma espada; o ferrão ou guiada. de três metros de comprido, sem a elegância das lanças, reproduzindo os piques antigos; os cacetes ocos e cheios pela metade de chumbo, pesados como montantes; as bestas e as espingardas.

Entre estas últimas, gradações completas, desde a de cano fino, carregada com escumilha, até à “legítima de Braga”, cevada com chumbo grosso, ao trabuco brutal ao modo de uma colubrina portátil, capaz de arremessar calhaus e pontas de chifre, à lazarina ligeira, ou ao bacamarte de boca‑de‑sino.

Nada mais. De nada mais necessitava aquela gente. Canudos surgia com a feição média entre a de um acampamento de guerreiros e a de um vasto kraal africano. A ausência de ruas, as praças que, à parte a das igrejas, nada mais eram que o fundo comum dos quintais, e os casebres unidos, tornavam‑no como vivenda única, amplíssima, estendida pelas colinas, e destinada a abrigar por pouco tempo o clã tumultuário de Antônio Conselheiro.

Sem a alvura reveladora das paredes caiadas e telhados encaliçados, a certa distancia era visível. Confundia‑se com o próprio chão. Aparecia, de perto, de chofre, constrito numa volta do Vaza‑Barrís, que o limitava do levante ao sul abarcando‑o.

Emoldurava‑o uma natureza morta: paisagens tristes; colinas nuas, uniformes, prolongando‑se, ondeantes, até às serranias distantes, sem uma nesga de mato; rasgadas de lascas de talcoxisto, mal revestidas, em raros pontos, de acervos de bromélias, encimadas, noutros, pelos cactos esguios e solitários. O monte da Favela, ao sul, empolava‑se mais alto, tendo no sopé, fronteiro à praça, alguns pés de quixabeiras, agrupados em horto selvagem. À meia encosta via‑se solitária, em ruínas, a antiga casa da fazenda…

A uma banda, perto e dominante, um contraforte, o morro dos Pelados, termina de chofre em barranca a prumo sobre o rio e este, dali por diante progredindo numa inflexão forte para montante, abarca o povoado em leito escavado e fundo, como um fosso. Ali vão ter quebradas de bordas a pique, abertas pelas erosões intensas por onde, no inverno, rolam acachoando afluentes efêmeros tendo os nomes falsos de rios: o Mucuim, o Umburanas, e outro, que sucessos ulteriores denominariam da Providência.

Canudos, assim circunvalado quase todo pelo Vaza‑Barris, embatia ao sul contra as vertentes da Favela e dominado no ocidente pelas lombas mais altas de flancos em escarpa em que se comprimia aquele nas enchentes, desatava‑se para o levante segundo o expandir dos plainos ondulados. As montanhas longínquas fechavam‑se em roda, formando, quase contínua, uma elipse de eixos dilatados. Feito postigos em baluarte desmedido, abriam‑se, estreitas, as gargantas em que passavam os caminhos: o do Uauá, estrangulado entre os pendores fortes do Caipã; o de Jeremoabo, insinuando‑se nos desfiladeiros de Cocorobó; o do Cambaio, em aclives, investindo com as vertentes do Calumbi; e o do Rosário.

Ora, por estas veredas, prendendo, no se ligarem a outras trilhas, o povoado nascente ao fundo dos sertões do Piauí, Ceará, Pernambuco e Sergipe — chegavam sucessivas caravanas de fiéis. Vinham de todos os pontos, carregando os haveres todos; e, transpostas as últimas voltas do caminho, quando divisavam o campanário humilde da antiga Capela, caíam genuflexos sobre o chão aspérrimo. Estava atingido o termo da romagem. Estavam salvos da pavorosa hecatombe, que vaticinavam as profecias do evangelizador. Pisavam, afinal, a terra da promissão — Canaã sagrada, que o Bom Jesus isolara do resto do mundo por uma cintura de serras…

Chegavam, estropiados da jornada longa, mas felizes. Acampavam à gandaia pelo alto dos cômoros. A noite acendiam‑se as fogueiras nos pousos dos peregrinos relentados. Uma faixa fulgurante enlaçava o arraial; e, uníssonas, entrecruzavam‑se, ressoando nos pousos e nas casas, as vozes da multidão penitente, na melopéia plangente dos benditos.

Ao clarear da manhã entregavam‑se à azáfama da construção dos casebres. Estes, a princípio apinhando‑se próximos à depressão em que se erigia a primitiva igreja, e descendo desnivelados ao viés das encostas breves até ao rio, começaram a salpintar, esparsos, o terreno rugado, mais longe.

Construções ligeiras, distantes do núcleo compacto da casaria, pareciam obedecer ao traçado de um plano de defesa. Sucediam‑se escalonadas, ladeando os caminhos. Marginavam o de Jeremoabo, eretas numa e outra margem do Vaza‑Barris, para jusante, até Trabubu e o ribeirão de Macambira. Pontilhavam o do Rosário, transpondo o rio e contornando a Favela. Espalhavam‑se pelos cerros que se sucediam inúmeros seguindo o rumo de Uauá. Inscritas em cercas impenteráveis de gravatás, plantados na borda de um fosso envolvente, cada uma era, do mesmo passo, um lar e um reduto. Dispunham‑se formando linhas irregulares de baluartes.

Porque a cidade selvagem, desde o princípio, tinha em torno, acompanhando‑a no crescimento rápido, um círculo formidável de trincheiras cavadas em todos os pendores, enfiando todas as veredas, planos de fogo volvidos, rasantes com o chão, para todos os rumos. Veladas por touceiras inextricáveis de macambiras ou lascas de pedra, não se revelavam a distancia. Vindo do levante, o viajor que as abeirasse, ao divisar, esparsas sobre os cerros, as choupanas exíguas à maneira de guaritas, acreditaria topar uma rancharia esparsa de vaqueiros inofensivos. Atingia, de repente, a casaria compacta, surpreso, como se caísse numa tocaia.

Para quem viesse do sul, porém, pelo Rosário ou Calumbi, galgado o alto da Favela, ou as ladeiras fortes que se derivam para o rio Sargento, o casario aparecia a um quilômetro, ao norte, esbatido num plano inferior, francamente exposto, de modo a se poder num lance único de vista aquilatar‑lhe as condições de defesa.

Eram na aparência deploráveis. O arraial parecia disposto para o choque das cargas fulminantes, rolando impetuosas, com a força viva de uma queda, pelos aclives abruptos. O inimigo, livre de escaladas penosas, varejá‑lo‑ia em tiros mergulhantes. Podia assediá‑lo todo, batendo todas as estradas, com uma bateria única.

Tinha, entretanto, condições táticas preexcelentes. Compreendera‑as algum Vauban inculto…

Fechado ao sul pelo morro, descendo escancelado de gargantas até ao rio, fechavam‑no, a oeste, uma muralha e um valo. De fato, infletindo naquele rumo, o Vaza‑Barris, comprimido entre as últimas casas e as escarpas a pique dos morros sobranceiros, torcia para norte feito um cañon fundo. A sua curva forte rodeava, circunvalando‑a, a depressão em que se erigia o povoado, que se trancava a leste pelas colinas, a oeste e norte pelas ladeiras das terras mais altas, que dali se entumescem até aos contrafortes extremos do Cambaio e do Caipã; e ao sul pela montanha.

Canudos era uma tapera dentro de uma furna. A praça das igrejas, rente ao rio, demarcava‑lhe a área mais baixa. Dali, segundo um eixo orientado ao norte, se expandia alteando‑se a. pouco e pouco, em plano inclinado breve, feito um valo largo, em declive. Lá dentro se apertavam os casebres, atulhando toda a baixada, subindo, mais esparsos, pelas encostas de leste, transbordando, afinal, nas exíguas vivendas que vimos salpitando, raras, o alto dos cerros minados de trincheiras. A grei revoltosa — como se vê — não se ilhava em uma eminência, assoberbando os horizontes, a cavaleiro dos assaltos. Entocara‑se. Naquela região belíssima, em que as linhas de cumeadas se rebatem no plano alto dos tabuleiros, escolhera precisamente o trecho que recorda uma vala comum enorme.. .

Regímen da “urbs”

Lá se firmou logo um regímen modelado pela religiosidade do apóstolo extravagante.

Jugulada pelo seu prestígio, a população tinha, engravecidas, todas as condições do estádio social inferior. Na falta da irmandade do sangue, a consangüinidade moral dera‑lhe a forma exata de um clã, em que as leis eram o arbítrio do chefe e a justiça as suas decisões irrevogáveis. Canudos estereotipava o facies dúbio dos primeiros agrupamentos bárbaros.

O sertanejo simples transmudava‑se, penetrando‑o, no fanático destemeroso e bruto. Absorvia‑o a psicose coletiva. E adotava, ao cabo, o nome até então consagrado aos turbulentos de feira, aos valentões das refregas eleitorais e saqueadores de cidades — jagunços.

População multiforme

De sorte que ao fim de algum tempo a população constituída dos mais dispares elementos, do crente fervoroso abdicando de si todas as comodidades da vida noutras paragens, ao bandido solto, que lá chegava de clavinote ao ombro em busca de novo campo de façanhas, se fez a comunidade homogênea e uniforme, massa inconsciente e bruta, crescendo sem evolver, sem órgãos e sem funções especializadas, pela só justaposição mecânica de levas sucessivas à maneira de um polipeiro humano. É natural que absorvesse, intactas, todas as tendências do homem extraordinário do qual a aparência protéica — de santo exilado na terra, de fetiche de carne e osso, e de bonzo claudicante —estava adrede talhada para reviver os estigmas degenerativos de três raças.

Aceitando, às cegas, tudo quanto lhe ensinara aquele; imersa de todo no sonho religioso; vivendo sob a preocupação doentia da outra vida, resumia o mundo na linha de serranias que a cingiam. Não cogitava de instituições garantidoras de um destino na terra.

Eram‑lhe inúteis. Canudos era o cosmos.

E este mesmo transitório e breve: um ponto de passagem, uma escala terminal, de onde decampariam sem demora; o último pouso na travessia de um deserto — a Terra. Os jagunços errantes ali armavam pela derradeira vez as tendas, na romaria miraculosa para os céus…

Nada queriam desta vida. Por isto a propriedade tornou‑se‑lhes uma forma exagerada do coletivismo tribal dos beduínos: a apropriação pessoal apenas de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das culturas, cujos donos recebiam exígua quota‑parte, revertendo o resto para a “companhia”. Os recém‑vindos entregavam ao Conselheiro noventa e nove por cento do que traziam, incluindo os santos destinados ao santuário comum. Reputavam‑se felizes com a migalha restante. Bastava‑lhes de sobra. O profeta ensinara‑lhes a temer o pecado mortal do bem‑estar mais breve. Voluntários da miséria e da dor, eram venturosos na medida das provações sofridas. Viam‑se bem, vendo‑se em andrajos. Este desprendimento levado às últimas conseqüências chegava a despi‑los das belas qualidades morais, longamente apuradas na existência patriarcal dos sertões. Para Antônio Conselheiro — e neste ponto ele ainda copia velhos modelos históricos — a virtude era como que o reflexo superior da vaidade. Uma quase impiedade. A tentativa de enobrecer a existência na terra implicava de certo modo a indiferença pela felicidade sobrenatural iminente, o olvido do além maravilhoso anelado.

O seu senso moral deprimido só compreendia a posse deste pelo contraste das agruras suportadas.

De todas as páginas de catecismo que soletrara ficara‑lhe preceito único:

Bem‑aventurados os que sofrem…

A extrema dor era a extrema‑unção. O sofrimento duro a absolvição plenária; e teriaga infalível para a peçonha dos maiores vícios.

Que os homens se desmandassem ou agissem virtuosamente — era questão de somenos[3]. Consentia de boa feição que errassem, mas que todas as impurezas e todas as escorralhas de uma vida infame caíssem, afinal, gota a gota, nas lágrimas vertidas.

Ao saber de caso escandaloso em que a lubricidade de um devasso maculara incauto donzela teve, certa vez, uma frase ferozmente cínica, que os sertanejos repetiam depois sem lhe aquilatarem a torpeza:

“Seguiu o destino de todas; passou por baixo da árvore do bem e do mal !”

Não é para admirar que se esboçasse logo, em Canudos, a promiscuidade de um hetairismo infrene. Os filhos espúrios não tinham à fronte o labéu indelével da origem, a situação infamante dos bancklings entre os germanos. Eram legião.

Porque o dominador, se não estimulava, tolerava o amor livre. Nos conselhos diários não cogitava da vida conjugal, traçando normas aos casais ingênuos. E era lógico. Contados os últimos dias do mundo, fora malbaratá‑los agitando preceitos vãos, quando o cataclismo iminente viria, em breve, apagar para sempre as uniões mais íntimas, dispersar os lares e confundir no mesmo vórtice todas as virtudes e todas as abominações. O que urgia era antecipá‑lo pelas provações e pelo martírio. Pregava, então, os jejuns prolongados, as agonias da fome, a lenta exaustão da vida. Dava o exemplo fazendo constar, pelos fiéis mais íntimos, que atravessava os dias alimentando‑se com um pires de farinha. Conta‑se que em certo dia foi visitado por um crente abastado das cercanias. Repartiu com ele a refeição escassa; e este — milagre que abalou o arraial inteiro ! — saiu, do banquete minúsculo, repleto, empanzinado, como se volvesse de festim soberbo.

Este regímen severo tinha efeito duplo: tornava, pela própria debilidade, mais vibrátil a enervação enferma dos crentes e preparava‑os para as aperturas dos assédios, talvez previstos. Era, talvez, intenção recôndita de Antônio Conselheiro. Nem de outro modo se compreende que permitisse assistissem no arraial indivíduos cuja índole se contrapunha à sua placabilidade humilde.

Canudos era o homízio de famigerados facínoras. Ali chegavam, de permeio com os matutos crédulos e vaqueiros iludidos, sinistros heróis da faca e da garrucha. E estes foram logo os mais quistos daquele homem singular, os seus ajudantes de ordens prediletos, garantindo‑lhe a autoridade inviolável. Eram, por um contraste natural, os seus melhores discípulos. A seita esdrúxula — caso de simbiose moral em que o belo ideal cristão surgia mostruoso dentre aberrações fetichistas — tinha os seus naturais representantes nos Batistas truculentos, capazes de carregar os bacamartes homicidas com as contas dos rosários…

Polícia de bandidos

Graças a seus braços fortes, Antônio Conselheiro dominava o arraial, corrigindo os que saíam das trilhas demarcadas. Na cadeia ali paradoxalmente instituída — a “poeira”, no dizer dos jagunços — viam‑se diariamente, presos pelos que haviam cometido a leve falta de alguns homicídios os que haviam perpetrado o crime abominável de faltar às rezas.

Inexorável para as pequenas culpas, nulíssima para os grandes atentados, a justiça era, como tudo o mais, antinômica, no clã policiado por facínoras. Visava uma delinqüência especial, traduzindo‑se na inversão completa do conceito do crime. Exercitava‑se, não raro duramente, cominando penas severíssimas sobre leves faltas.

O uso da aguardente, por exemplo, era delito sério. Ai! dipsomaníaco incorrigível que rompesse o interdito imposto!

Conta‑se que de uma feita alguns tropeiros inexpertos, vindos do Juazeiro, foram ter a Canudos, levando alguns barris do líquido inconcesso. Atraía‑os o engodo de lucro inevitável. Levavam a eterna cúmplice das horas ociosas dos matutos. Ao chegarem, porém, tiveram, depois de descarregarem na praça a carga valiosa, desagradável surpresa. Viram, ali mesmo, abertos os barris, a machado, e inutilizado o contrabando sacrílego. E volveram rápidos, desapontados, tendo às mãos, ao invés do ganho apetecido, o ardor de muitas dúzias de palmatoadas, amargos bolos com que os presenteara aquela gente ingrata.

Este caso é expressivo. Sólida experiência ensinara ao Conselheiro todos os perigos que adviriam deste haxixe nacional. Interdizia‑o menos por debelar um vício que para prevenir desordens. Mas, fora do povoado, estas podiam espalhar‑se à larga. Dali partiam bandos turbulentos arremetendo com os arredores. Toda a sorte de tropelias eram permitidas, desde que aumentassem o patrimônio da grei. Em 1894, as algaras, chefiadas por valentões de nota, tornaram‑se alarmantes. Foram em um crescendo tal, de depredações e desacatos, que despertaram a atenção dos poderes constituídos, originando mesmo calorosa e inútil discussão na Assembléia Estadual da Bahia.

Depredações

Em dilatado raio em torno de Canudos, talavam‑se fazendas, saqueavam‑se lugarejos, conquistavam‑se cidades ! No Bom Conselho, uma horda atrevida, depois de se apossar da Vila, pô‑la em estado de sítio, dispersou as autoridades, a começar pelo juiz da comarca e, como entreato hilariante na razia escandalosa, torturou o escrivão dos casamentos que se viu em palpos de aranhas para impedir que os crentes sarcásticos lhe abrissem, tosquiando‑o, uma coroa larga, que lhe justificasse o invadir as atribuições sagradas do vigário.

Os desordeiros volviam cheios de despojos para o arraial, onde ninguém Ihes tomava conta dos desmandos.

Muitas vezes, diz o testemunho unânime da população sertaneja, tais expedições eram sugeridas por intuito diverso. Alguns fiéis abastados tinham veleidades políticas. Sobrevinha a quadra eleitoral. Os grandes conquistadores de urnas que, a exemplo de milhares de comparsas disseminados neste país, transformam a fantasia do sufrágio universal na clava de Hércules da nossa dignidade, apelavam para o Conselheiro.

Canudos fazia‑se, então, provisoriamente, o quartel das guardas pretorianas dos capangas, que de lá partiam, trilhando rumos prefixos, para reforçarem, a pau e a tiro, a soberania popular, expressa na imbecilidade triunfante de um régulo qualquer; e para o estraçoamento das atas; e para as mazorcas periódicas que a lei marca, denominando‑as “eleições”, eufemismo que é entre nós o mais vivo traço das ousadias da linguagem. A nossa civilização de empréstimo arregimentava, como sempre o fez, o banditismo sertanejo.

Ora, estas arrancadas eram um ensinamento. Eram úteis. Eram exercícios práticos indispensáveis ao preparo para recontros mais valentes. Compreendera‑as, talvez, assim, o Conselheiro. Tolerava‑as. No arraial, porém , exigia, digamos em falta de outro termo — porque os léxicos não o têm para exprimir um tumulto disciplinado — ordem inalterável. Ali permaneciam, inofensivos porque eram inválidos, os seus melhores crentes: mulheres, crianças, velhos alquebrados, doentes inúteis. Viviam parasitariamente da solicitude do chefe, que Ihes era o Santo protetor, ao qual saudavam entoando versos há vinte e tantos anos correntes nos sertões:

Do céu veio uma luz

Que Jesus Cristo mandou

Santo Antônio Aparecido

Dos castigos nos livrou!

Quem ouvir e não aprender

 Quem souber e não ensinar

No dia do Juízo

A sua alma penara[4]!

Estas velhas quadras, que a tradição guardara, lembravam ao infeliz os primeiros dias da vida atormentada e avivam‑lhe, porventura, os últimos tragos da vaidade, no confronto vantajoso com o santo milagreiro por  excelência.

O certo é que abria aos desventurados os celeiros fartos pelas esmolas e produtos do trabalho comum. Compreendia que aquela massa, na aparência inútil, era o cerne vigoroso do arraial. Formavam‑na os eleitos, felizes por terem aos ombros os frangalhos imundos, esfiapados sambenitos de uma penitência, que Ihes fora a própria vida; bem‑aventurados porque o passo trôpego, remorado pelas muletas e pelas anquiloses, Ihes era a celeridade máxima, no avançar para a felicidade eterna.

O templo

Além disto ali os aguardava, no termo da jornada, a última penitência: a construção do templo.

A antiga capela não bastava. Era frágil e pequena. Mal sobranceava os colmos achatados. Retratava por demais, no aspecto modestíssimo, a  pureza principal da religião antiga.

Era necessário que se lhe contrapusesse a arx monstruosa, erigida como se fosse o molde monumental da seita combatente.

Começou a erigir‑se a igreja nova. Desde antemanhã, enquanto uns se entregavam às culturas ou tangiam os rebanhos de cabras, ou abalavam para “fazer o saco” nas vilas próximas, e outros, dispersando‑se em piquetes vigilantes, estacionavam nas cercanias, bombeando quem chegava, o resto do povo moirejava na missão sagrada.

Defrontando o antigo, o novo templo erguia‑se no outro extremo da praça. Era retangular, e vasto, e pesado. As paredes mestras, espessas, recordavam muralhas de reduto. Durante muito tempo teria esta feição anômala, antes que as duas torres muito altas, com ousadias de um gótico rude e imperfeito, o transfigurassem.

É que a catedral admirável dos jagunços tinha essa eloqüência silenciosa dos edifícios, de que nos fala Bossuet…

Devia ser como foi. Devia surgir, mole, formidável e bruta, da extrema fraqueza humana, alteada pelos músculos gastos dos velhos, pelos braços débeis das mulheres e das crianças. Cabia‑lhes a forma dúbia de santuário e de antro, de fortaleza e de templo, irmanando no mesmo âmbito, onde ressoariam mais tarde as ladainhas e as balas, a suprema piedade e os supremos rancores…

Delineara‑a o próprio Conselheiro. Velho arquiteto de igrejas, requintara no monumento que lhe cerraria a carreira. Levantava, volvida para o levante, aquela fachada estupenda, sem módulos, sem proporções, sem regras; de estilo indecifrável, mascarada de frisos grosseiros e volutas impossíveis, cabriolando num delírio de curvas incorretas; rasgada de ogivas horrorosas, esburacada de troneiras; informe e brutal, feito a testada de um hipogeu desenterrado; como se tentasse objetivar, a pedra e cal, a própria desordem do espírito delirante.

Era a sua obra‑prima. Ali passava os dias, sobre os andaimes altos e bailéus bamboantes. O povo enxameando embaixo, na azáfama do transporte dos materiais, estremecia muita vez ao vê‑lo passar, lentamente, sobre as tábuas flexuosas e oscilantes, impassível, sem um tremor no rosto bronzeado e rígido, feito uma cariátide errante sobre o edifício monstruoso.

Não faltavam braços para a tarefa. .Não cessavam reforços  e recursos à sociedade acampada no deserto. Metade, por assim dizer, das gentes de Tucano e de Itapicuru para lá abalou. De Alagoinhas, Feira de Santana e Santa Luzia, iam toda a sorte de auxílios. De Jeremoabo, Bom Conselho e Simão Dias, grandes fornecimentos de gados.

Não assombravam aos recém‑vindos os quadros que se lhes antolhavam. Tinham‑nos como obrigatória a prova desafiando‑lhes a fé inabalável.

Estrada para o céu

Os ingênuos contos sertanejos desde muito Ihes haviam revelado as estradas facinadoramente traiçoeiras que levam ao inferno. Canudos, imunda ante‑sala do paraíso, pobre peristilo dos céus, devia ser assim mesmo — repugnante, aterrador, horrendo…

Entretanto, lá tinham ido, muitos, alimentando esperanças singulares. “Os aliciadores da seita se ocupam em persuadir o povo de que todo aquele que se quiser salvar precisa vir para Canudos, porque nos outros lugares tudo está contaminado e perdido pela República. Ali, porém, nem é preciso trabalhar, é a terra da promissão, onde corre um rio de leite e são de cuscuz de milho as barrancas[5]”.

Chagavam.

Deparavam o Vaza‑Barris seco, ou empanzinado, volvendo apenas águas barrentas das enchentes, entre os flancos entorroados das colinas…

Tinham esvaecida a miragem feliz; mas não se despeavam no misticismo lamentável.

As rezas

Ao cair da tarde, a voz do sino apelidava os fiéis para a oração. Cessavam os trabalhos. O povo adensava‑se sob a latada coberta de folhagens. Derramava‑se pela praça. Ajoelhava‑se.

Difundia-se nos ares o coro da primiera reza.

A noite sobrevinha, prestes, mal  prenunciada pelo crepúsculo  sertanejo, fugitivo e breve como o dos desertos.

Fulguravam as fogueiras, que era  costume acenderem‑se acompanhando o perímetro do largo. E os seus clarões vacilantes emolduravam a cena meio afogada nas sombras.

Consoante antiga praxe, ou,  melhor, capricho de A. Conselheiro , a multidão repartia‑se,   separados os sexos, em dois agrupamentos destacados . E em cada um deles  s um baralhamento enorme de contrastes…

Agrupamentos bizarros

Ali estavam, gafadas de pecados  velhos, serodiamente  penitenciados, as beatas —  êmulas das bruxas das igrejas  — revestidas da capona preta lembrando a holandilha fúnebre da Inquisição: as “solteiras” , termo que nos sertões  tem  o pior dos significados, desenvoltas  e despejadas, “soltas” na gandaíce sem freios;  as “moças donzelas” ou “moças damas”, recatadas e tímidas; e honestas mães de famílias; nivelando‑se pelas mesmas rezas .

Faces murchas de velhas — esgrouviados viragos  em  cuja boca deve ser um pecado mortal a prece;  rostos austeros  de matronas simples; fisionomias ingênuas de raparigas crédulas, misturavam‑se em conjunto estranho.

Todas as idades, todos os tipos, todas as cores…

Grenhas maltratadas de crioulas retintas; cabelos corredios e duros, de caboclas, trunfas escandalosas, de africanas madeixas castanhas e louras de brancas  legítimas embaralhavam‑se,  sem  uma fita, sem um grampo, sem uma flor. o toucado ou a coifa mais pobre. Nos  vestuários singelos,  de algodão ou de chita, deselegantes   e escorridos, não havia lobrigar‑se   a garridice menos  pretensiosa:   um xale de lã, uma mantilha ou um lenço de   cor, atenuando a monotonia das vestes encardidas quase reduzidas a saias e camisas estraçoadas, deixando expostos os peitos  cobertos  de rosários, de verônicas,  de cruzes,   de figas, de amuletos,   de dentes  de animais, de bentinhos, ou de nôminas encerrando    “cartas   santas”,  únicos atavios que perdoava a ascese exigente do evangelizador.

Aqui, ali, extremando‑se a relanços naqueles acervos de trapos, um ou outro rosto formosíssimo, em que ressurgiam, impressionadoramente suplantando impressionadoramente a miséria  e o sombreado das outras faces rebarbativas, as linhas dessa beleza imortal que o tipo judaico conserva imutável através dos tempos. Madonas emparceiradas a fúrias, belos olhos profundos, em cujos negrumes afuzila o desvario místico; frontes adoráveis, mal escampadas sob os cabelos em desalinho, eram profanação cruel afogando‑se naquela matulagem repugnante que exsudava do mesmo passo o  fartum angulhento  das carcaças  imundas e o lento salmear dos “benditos” lúgubres como responsórios…

As reveses, as fogueiras  quase abafadas. vasquejando sob nuvens de fumo, crepitam, revivendo ao sopro da viração noturna e chofrando precípites clarões sobre a turba. Destaca‑se, então, mais compacto,  o  grupo varonil dos homens, mostrando idênticos contrastes: vaqueiros rudes e fortes, trocando, como heróis decaídos, a bela armadura de couro pelo uniforme reles de brim americano; criadores, ricos os outrora, felizes pelo abandono das boiadas e dos pousos animados; e menos numerosos, porem mais em destaque, gandaieiros  de todos os matizes , recidivos de todos os delitos.

Na claridade amortecida dos braseiros esbatem‑se os seus perfis interessantes e vários. Já são famosos alguns. Prestigia‑os o renome de arriscadas aventuras, que a imaginação popular romanceia e amplia. Lugar‑tenentes do ditador humilde, tomam armados a frente  do ajuntamento. Mas na há distinguir‑se‑lhes neste instante, na atitude e no gesto, o desgarre provocante dos valentões  incorrigíveis.

De joelhos, mãos enclavinhadas sobre o peito, o olhar tençoeiro e  mau e esvai‑se‑lhes  contemplativo e vago. . .

José Venâncio, o terror da Volta Grande. deslumbra‑se das dezoito mortes cometidas e do espantalho dos processos à revelia, dobrando, contrito, o fronte para a terra.

Ladeia‑o o afoito Pajeú, rosto de bronze vincado de apófises duras, mal aprumado o arcabouço atlético. Estático, mãos postas, volve, como as suçuaranas em noite de luar, olhar absorto para os céus. Logo após o seu ajudante de ordens  inseparável, Lalau, queda‑se igualmente humílimo, joelhos  dobrados sobre o trabuco carregado. Chiquinho e João da Mota, dois irmãos aos quais estava entregue o comando dos piquetes vigilantes nas entradas de Cocorobó e Uauá, aparecem unidos, desfiando, crédulos, as contas do mesmo rosário. Pedrão, cafuz entroncado e bruto, que com trinta homens escolhidos guardava as vertentes da Canabrava, mal se distingue, afastado, próximo de um digno êmulo de tropelias. Estêvão, negro reforçado, disforme, corpo tatuado à bala e à faca, que lograra vingar centenas de conflitos graças à disvulnerabilidade rara. Era o guarda do Cambaio.

Joaquim Tranca‑pés, outro espécimen de guerrilheiro sanhudo, que velava no Angico, ombreia com o major Sariema, de estatura mais elegante, lidador sem posição fixa, destemeroso mas irrequieto, talhado para as arrancadas subitâneas e atrevidas. Antepõe‑se‑lhe, no aspecto, o tragicômico Raimundo Boca‑torta, do Itapicuru, espécie de funâmbulo patibular, face contorcida em esgar ferino, como um traumatismo hediondo. O ágil Chico Ema, a quem se confiara coluna volante de espias, surge junto a um cabecilha de primeira linha, Norberto, predestinado à chefia suprema nos últimos dias de Canudos.

Quinquim de Coiqui, um crente abnegado que alcançaria a primeira vitória sobre a tropa legal; Antônio Fogueteiro, do Pau Ferro, incansável aliciador de prosélitos; José Gamo; Fabrício de Cocobocó…

A massa restante dos fiéis volve‑lhes, intermitentes, nos intervalos dos kyries inçados de silabadas incríveis, olhares carinhosos, refertos de esperanças.

O velho Macambira, pouco afeiçoado à luta, de “coração mole”, segundo o dizer expressivo dos matutos, mas espírito infernal no gizar tocaias incríveis; espécie de Imanus decrépito, mas perigoso ainda, tomba de bruços no chão, tendo ao lado o filho, Joaquim, criança arrojada e impávida, que figuraria em belo lance de heroísmo, mais tarde.

Alheio à credulidade geral , um explorador solerte, Vila ‑Nova, finge que ora, remascando cifras. E na frente de todos. O comandante da praça, o “chefe do povo”, o astuto João Abade, abrange no olhar dominador a turba genuflexa.

No meio destes perfis trágicos uma figura ridícula, Antônio Beato, mulato espigado, magríssimo, adelgaçado pelos jejuns, muito da privança do Conselheiro; meio sacristão, meio soldado, misseiro de bacamarte, espiando, observando, indagando, insinuando‑se jeitosamente pelas casas, esquadrinhando todos os recantos do arraial, e transmitindo a todo instante ao chefe supremo, que raro abandonava o santuário, as novidades existentes. Completa‑o, como um prolongamento, José Félix, o Taramela, quinhoneiro da mesma predileção, guarda das igrejas, chaveiro e mordomo do Conselheiro, tendo sob as ordens as beatas de vestidos azuis cingidas de cordas de linho, encarregadas da roupa, da refeição exígua daquele e de acenderem diariamente as fogueiras para as rezas.

E um tipo adorável, Manuel Quadrado, olhando para tudo aquilo com indiferença nobilitadora. Era o curandeiro; o médico. Na multidão suspeita a natureza tinha, afinal, um devoto. alheio à desordem, vivendo num investigar perene pelas drogarias primitivas das matas.

O “beija” das imagens

As rezas, em geral, prolongavam‑se. Percorridas todas as escalas das ladainhas, todas as contas dos rosários, rimados todos os benditos, restava ainda a cerimônia final do culto, remate obrigado daquelas.

Era o “beija” das imagens.

Instituíra‑o o Conselheiro, completando no ritual fetichista a transmutação do cristianismo incompreendido.

Antônio Beatinho, o altareiro, tomava de um crucifixo, contemplava‑o com o olhar diluído de um faquir em êxtase; aconchegava‑o do peito, prostrando‑se profundamente; imprimia‑lhe ósculo prolongado; e entregava‑o, com gesto amolentado, ao fiel mais próximo, que lhe copiava, sem variantes, a mímica reverente. Depois erguia uma virgem santa, reeditando os mesmos atos; depois o Bom Jesus. E lá vinham, sucessivamente, todos os santos, e registros, e verônicas, e cruzes, vagarosamente, entregues à multidão sequiosa, passando, um a um , por todas as mãos, por todas as bocas e por todos os peitos. Ouviam‑se os beijos chirriantes, inúmeros e, num crescendo, extinguindo‑lhes a assonância surda, o vozear indistinto das prédicas balbuciadas à meia voz, dos mea‑culpas ansiosamente socados nos peitos arfantes e das primeiras exclamações abafadas, reprimidas ainda, para que se não perturbasse a solenidade.

O misticismo de cada um, porém, ia‑se a pouco e pouco confundindo na nevrose coletiva. De espaço a espaço a agitação crescia, como se o tumulto invadisse a assembléia, adstrito às fórmulas de programa preestabelecido, à medida que passavam as sagradas relíquias. Por fim as últimas saíam, entregues pelo Beato, quando as primeiras alcançavam as derradeiras filas dos crentes. E cumulava‑se a ebriez e o estonteamento daquelas almas simples. Desbordavam as emoções isoladas, confundindo‑se repentinamente, avolumando‑se, presas no contágio irreprimível da mesma febre; e, como se as forças sobrenaturais, que o animismo ingênuo emprestava às imagens, penetrassem afinal as consciências, desequilibrando‑as em violentos abalos, salteava à multidão um desvairamento irreprimível. Estrugiam exclamações entre piedosas e coléricas; desatavam‑se movimentos impulsivos, de iluminados; estalavam gritos lancinantes, de desmaios. Apertando ao peito as imagens babujadas de saliva, mulheres alucinadas tombavam escabujando nas contorções violentas da histeria, crianças assustadiças desandavam em choros; e, invadido pela mesma aura de loucura, o grupo varonil dos lutadores, dentre o estrépito, e os tinidos, e o estardalhaço das armas entrebatidas, vibrava no mesmo ictus assombroso, em que explodia, desapoderadamente, o misticismo bárbaro…

Mas de repente o tumulto cessava.

Todos se quedavam ofegantes, olhares presos no extremo da latada junto à porta do santuário, aberta e enquadrando a figura singular de Antônio Conselheiro.

Este abeirava‑se de uma mesa pequena. E pregava…

Por que não pregar contra a República ?

Pregava contra a República; é certo.

O antagonismo era inevitável. Era um derivativo à exacerbação  mística; uma variante forçada ao delírio religioso.

Mas não traduzia o mais pálido intuito político; o jagunço é tão inapto para apreender a forma republicana como a monárquico‑constitucional.

Ambas lhe são abstrações inacessíveis. É espontaneamente adversário de ambas. Está na fase evolutiva em que só é conceptível o império de um chefe sacerdotal ou guerreiro.

Insistamos sobre esta verdade: a guerra de Canudos foi um refluxo em nossa história. Tivemos, inopinadamente, ressurreta e em armas em nossa frente, uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um doido. Não a conhecemos. Não podíamos conhecê‑la. Os aventureiros do século 17, porém, nela topariam relações antigas, da mesma sorte que os iluminados da Idade Média se sentiriam à vontade, neste século, entre os demonopatas de Varzenis ou entre os Stundistas da Rússia. Porque essas psicoses epidêmicas despontam em todos os tempos e em todos os lugares como anacronismos palmares, contrastes inevitáveis na evolução desigual dos povos, patentes sobretudo quando um largo movimento civilizador lhes impele vigorosamente as camadas superiores.

Os perfectionists exagerados rompem, então, lógicos, dentre o industrialismo triunfante da América do Norte, e a sombria Sturmisch, inexplicavelmente inspirada pelo gênio de Klopstock, comparte o berço da renascença alemã…

Entre nós o fenômeno foi porventura ainda mais explicável.

Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que palejam reflexos da vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a República. Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente. Iludidos por uma civilização de empréstimo; respigando, em faina cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações, tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no‑los separa um mar, separam‑no‑los três séculos…

E quando pela nossa imprevidência inegável deixamos que entre eles se formasse um núcleo de maníacos, não vimos o traço superior do acontecimento. Abreviamos o espírito ao conceito estreito de uma preocupação partidária. Tivemos um espanto comprometedor ante aquelas aberrações monstruosas; e, com arrojo digno de melhores causas, batemo‑los a carga de baionetas. reeditando por nossa vez o passado, numa “entrada” inglória, reabrindo nas paragens infelizes as trilhas apagadas das bandeiras…

Vimos no agitador sertanejo, do qual a revolta era um aspecto da própria rebeldia contra a ordem natural, adversário sério, estrênuo paladino do extinto regímen, capaz de derruir as instituições nascentes.

E Canudos era a Vendéia…

Entretanto, quando nos últimos dias do arraial foi permitido o ingresso nos casebres estraçoados, salteou o animo dos triunfadores decepção dolorosa. A vitória duramente alcançada dera‑lhes direito à devassa dos lares em ruínas. Nada se eximiu à curiosidade insaciável.

Ora, no mais pobre dos saques que registra a História, onde foram despojos opimos imagens mutiladas e rosários de coco, o que mais acirrava a cobiça dos vitoriosos eram as cartas, quaisquer escritos e, principalmente os desgraciosos versos encontrados. Pobres papéis, em que a ortografia bárbara corria parelhas com os mais ingênuos absurdos e a escrita irregular e feia parecia fotografar o pensamento torturado, eles resumiam a psicologia da luta. Valiam tudo porque nada valiam. Registravam as prédicas de Antônio Conselheiro; e, lendo‑as, põe‑se de manifesto quanto eram elas afinal inócuas, refletindo o turvamento intelectual de um infeliz. Porque o que nelas vibra em todas as linhas é a mesma religiosidade difusa e incongruente, bem pouca significação política, permitindo emprestar‑se às tendências messiânicas expostas. O rebelado arremetia com a ordem constituída porque se lhe afigurava iminente o reino de delícias prometido. Prenunciava‑o a República — pecado mortal de um povo —heresia suprema indicadora do triunfo efêmero do anti‑Cristo. Os rudes poetas, rimando‑lhe os desvairos em quadras incolores, sem a espontaneidade forte dos improvisos sertanejos, deixaram bem vivos documentos nos versos disparatados, que deletreamos pensando, como Renan, que há, rude e eloqüente, a segunda Bíblia do gênero humano, nesse gaguejar do povo.

Copiemos ao acaso alguns:

“Sahiu D. Pedro segundo

 Para o reino de Lisboa

 Acabosse a monarquia

 O Brasil ficou atôa!

A República era a impiedade:

“Garantidos pela lei

Aquelles malvados estão

Nós temos a lei de Deus

Elles tem a lei do cão!”

“ Bem desgraçados são elles

Pra fazerem a eleição

Abatendo a lei de Deus

Suspendendo a lei do cão!”

“Casamento vão fazendo

Só para o povo iludir

Vão casar o povo todo

No casamento civil!”

O governo demoníaco, porém, desaparecerá em breve:

“D. Sebastião já chegou

E traz muito regimento

Acabando com o civil

E fazendo o casamento!”

“O Anti‑Cristo nasceu

Para o Brasil governar

Mas ahi está o Conselheiro

Para delle nos livrar!”

 

“ Visita nos vem fazer

Nosso rei D. Sebastião.

Coitado daquelle pobre

Que estiver na lei do cão[6]!”

A lei do cão…

Este era o apotegma mais elevado da seita. Resumia‑lhe o programa. Dispensa todos os comentários.

Eram, realmente, fragílimos  aqueles pobres rebelados…

Requeriam outra reação. Obrigavam‑nos a outra luta.

Entretanto enviamos‑lhes o legislador Comblain; e esse argumento único, incisivo, supremo e moralizador — a bala.

Mas antes tentou‑se empresa mais nobre e mais prática.

Uma missão abortada

Em 1895, em certa manhã de maio, no alto de um contraforte da Favela, apareceu, ladeada de duas outras, figura estranha àqueles lugares. Era um missionário capuchinho.

Considerou por instantes o arraial imenso, embaixo. Desceu devagar a encosta.

Daniel vai penetrar na furna dos leões ..

Acompanhemo‑lo.

Seguido de frei Caetano de S. Léu e do vigário do Cumbe, frei João Evangelista de Monte‑Marciano passa o rio e abeira‑se dos primeiros casebres. Alcança a praça desbordante de povo “perto de mil homens armados de bacamartes, garrucha, facão etc.”; e tem a impressão de haver caído, de súbito, no meio de um acampamento de beduínos. Não se lhe entibia, porém, o ânimo blindado pela fortaleza tranqüila dos apóstolos. Passa, impassível, por diante da capela, em cuja porta se adensam mais compactos agrupamentos. Envereda logo por um beco tortuoso. Atravessa‑o, seguido dos companheiros de apostolado. Enquanto às portas os moradores surpreendidos saem a vê‑los, “ar irrequieto e o olhar ao mesmo tempo indagador e sinistro, denunciando consciências perturbadas e intenções hostis”.

Chega por fim à casa do velho vigário do Cumbe (que não se abria há mais de ano, porque a tanto remontava a sua ausência, ressentido por desacato que sofrera) e mal se refaz da jornada extenuadora. Comoviam‑no o espetáculo dos infelizes que acabava de encontrar armados até os dentes, e o quadro emocionante daquela Tebaida turbulenta.

Antolham‑se‑lhe novas impressões desagradáveis.

A breve trecho passam‑lhe à porta oito defuntos levados sem sinal algum religioso para o cemitério ao fundo da igreja velha: oito redes de caroá sob que arcavam carregadores ofegantes passando, rápidos, ansiosos por alijá‑las, como se na cidade sinistra o morto fosse um desertor do martírio, indigno da atenção mais breve.

Entrementes, correra a nova da chegada, sem que o Conselheiro se abalasse ao encontro dos emissários da Igreja. Permanecera indiferente, assistindo aos trabalhos de reconstrução da capela. Procuraram‑no, então, os padres.

Deixam a casa. Tomam de novo pela viela sinuosa. Entram na praça. Atravessam‑na, sem que o menor brado hostil os perturbe, e ao chegarem à sede dos trabalhos “os magotes de homens cerram fileiras junto à porta da capela” abrindo‑lhes extensa ala.

Do ajuntamento temeroso parte animadora saudação de paz: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristal” à qual era de praxe a resposta:

“Para sempre seja louvado tão bom Senhor!”

Entram no pequeno templo e acham‑se diante de Antônio Conselheiro, que os acolhe com boa sombra; e, com a placabilidade habitual, dirige‑lhes a mesma saudação pacífica.

Retrato do Conselheiro

“Vestia túnica de azulão, tinha a cabeça descoberta e empunhava um bordão. Os cabelos crescidos sem nenhum trato, a caírem sobre os ombros; as longas barbas grisalhas mais para brancas; os olhos fundos raramente  levantados para fitar alguém; o rosto comprido de uma palidez quase cadavérica; o porte grave e ar penitente”  impressionaram grandemente os recém‑vindos[7].

Reanima‑os, contudo, recepção quase cordial. De encontro ao que previam, o Conselheiro parece aprazer‑se da visita. Quebra a habitual reserva e o obstinado mutismo. Informa‑os do andamento dos trabalhos; convida‑os a visitá‑los; e presta‑se de boa feição a servir‑lhes de guia pelos repartimentos do edifício. E lá seguem  todos, vagarosos, guiados pelo velho solitário que orçava  nesse tempo dos sessenta anos, e cujo corpo franzino,  arcado sobre o bordão, avançava em andar remorado, sacudido de instante a instante por súbitos acessos de tosse…

Não se podiam exigir melhores preliminares à missão.

Aquele agasalho era meia vitória. Mas coube ao missionário anulá‑la, desajeitadamente. Ao atingirem o coro, como se achassem um tanto afastados do grosso dos fiéis, que os seguiam a distância, pareceu‑lhe que a oportunidade era de moldo para interpelação decisiva.

Era uma precipitação, sobre inútil, contraproducente. O  insucesso sobreveio, inevitável.

…“ aproveitei a ocasião de estarmos quase a sós e disse‑lhe que o fim a que eu ia era todo de paz e que assim muito estranhava só enxergar ali homens armados e não podia deixar de condenar que se reunissem em lugar tão pobre tantas famílias entregues à ociosidade, num abandono e misérias tais que diariamente se davam de oito a nove óbitos. Por isto, de ordem, e em nome do sr. arcebispo, ia abrir uma santa missão e aconselhar o povo a dispersar‑se e a voltar aos lares e ao trabalho no interesse de cada um e para o bem geral.”

Esta intransigência, este mal sopitado assomo, partindo a finura diplomática nas arestas rígidas do dogma, não teria, certo, o beneplácito de S. Gregório — o Grande — a quem não escandalizaram os ritos bárbaros dos saxônios; e foi um desafio imprudente.

“Enquanto isto dizia, a capela e o coro enchiam‑se de gente e ainda não acabara eu de falar e já eles a uma voz clamavam:

Nós queremos acompanhar o nosso Conselheiro !’’

Era a desordem iminente. Sobresteve‑a, porém, a placidez admirável, a mansuetude — por que não dizer cristã ? — de Antônio Conselheiro. Que o próprio missionário fale:

“Este os fez calar, e voltando‑se para mim disse:

— É para minha guarda que tenho comigo estes homens armados, porque V. V.Rev.ma há de saber que a polícia atacou‑me e quis matar‑me no lugar chamado Maceté, onde houve mortes de um e outro lado. No tempo da monarquia deixei‑me prender, porque reconhecia o governo, hoje não, porque não reconheço a República.”

Esta explicação, de forma respeitosa e clara, não satisfez o capuchinho, que tinha a coragem de um crente mas não o tato finíssimo de um apóstolo. Contraveio, parafraseando a Prima‑Petri:

“— Senhor, se é católico, deve considerar que a Igreja condena as revoltas e, aceitando todas as formas de governo. ensina que os poderes constituídos regem os povos em nome de Deus.”

Era quase, sem variantes, a própria frase de S. Paulo, em pleno reinado de Nero…

E continuou:

“É assim em toda parte: a Franca, que é uma das principais nações da Europa, foi monarquia por muitos séculos, mas há mais de vinte anos é República; e todo o povo, sem exceção dos monarquistas de lá, obedece às autoridades e às leis do governo.”

Frei Monte‑Marciano, nesse remoer nulíssimas considerações políticas, insciente da significação real da desordem sertaneja, diz por si mesmo as causas do insucesso. Desdobrou, afinal, inteira, a estatura anômala de propagandista, faltando apenas ter sob as dobras do hábito a escopeta do cura de Santa Cruz:

“Nós, mesmo aqui no Brasil, a principiar do bispo até o último católico, reconhecemos o governo atual; somente vós não vós quereis sujeitar ?

É mau pensar esse, e uma doutrina errada a vossa!”

A frase final  vibrou como uma apóstrofe. De dentro da multidão partiu  pronta, a réplica arrogante:

“V. Revma é que tem uma falsa doutrina e não o nosso Conselheiro!”

Desta vez ainda o tumulto. prestes a explodir, retraiu‑se a um gesto lento do Conselheiro que. voltando‑se para o missionário, disse

“ — Eu não desarmo a minha gente, mas também não estorvo a santa missão.”

Esta iniciava‑se agora sob maus auspícios. Apesar disto correu em paz até ao quarto dia, e concorridíssima: cerca de cinco mil assistentes, entre os quais todos os homens válidos se destacavam :

“… carregando bacamartes, garruchas, espingardas, pistolas c facões, de cartucheiras à cinta e gorro à cabeça, na atitude de quem vai à guerra.”

Assistia‑a também o Conselheiro, ao lado do altar, atento e impassível como um fiscal severo, “deixando escapar alguma vez gestos de desaprovação que os maiores da grei confimavam com incisivos protestos.”

Estes, contudo, ao que parece, não tinham gravidade alguma. Apenas um ou outro exaltado, violando velho privilégio, se permitia sulcar de apartes a oratória sagrada.

Assim que, praticando o pregador sobre o jejum, como meio de mortificar a matéria e refrear as paixões, pela sobriedade, sem entretanto exigir demoradas angústias, porque “podia‑se jejuar muitas vezes comendo carne ao jantar e tomando, pela manhã, uma chávena de café”, tolheu‑lhe o sermão irreverente  e irônica contradita:

— Ora ! isto não é jejum, é comer a fartar !”

No quarto dia da missão, porém, reincidindo o capuchinho no descabido tema político pioraram as coisas. Começou intensa propaganda contra a pregação do padre maçon protestante e republicano” “emissário do governo e que de inteligência com este ia abrir caminho à tropa que viria de surpresa prender o Conselheiro e exterminar todos eles.”

Não se temeu aquele da rebelião emergente. Afrontou‑se com  ela acirrando‑a temerariamente. Escolheu como assunto da prédica subsequente o homicídio, e, sem se furtar aos perigos da arrojada tese, falando em corda na casa do enforcado espraiou se em alusões imprudentes que temos por escusado registrar.

A reação foi imediata. Chefiava‑a João Abade, cujo apito  vibrando e na praça, congregou todos os fiéis. O caso passou em 20 de maio, sétimo da missão. Reunidos arrancaram dali em algazarra estrepitante de vivas ao Bom Jesus e ao Divino Espírito Santo, na direção da casa em que se acolhiam os visitantes, fazendo‑lhes sentir que deles não  careciam para a salvação eterna.

Estava extinta a missão. Excetuando “55 casamentos de amancebados, 102 batizados e mais de 400 confissões” , o resultado fora nulo, ou antes, negativo.

Maldição sobre a Jerusalém de taipa

O missionário “como outrora os apóstolos às portas das cidades que os repeliam, sacudiu o pó das sandálias” apelando para o veredictum tremendo da Justiça Divina..

E abalou, furtando‑se a seguro pelos becos, acompanhado dos dois sócios de reveses…

Galga a estrada coleante, entre os declives da Favela.

Atinge o alto da montanha. Pára um momento…

Considera pela última vez o povoado, embaixo…

É invadido de súbita onda de tristeza. Equipara‑se “ ao Divino Mestre diante de ,lerusalém.”

Mas amaldiçoou…

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Crédito da fotografia: Questura policial em Canudos. 02.11 (1897) / Fonte: Coleção Canudos (Flávio de Barros) / Museu da República

Seção  “O homem” do livro: “Os Sertões: Campanha de Canudos”

Editado por: Icaro Pio e Israel Dias de Oliveira

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