Quando Ícaro voar

publicado na Ed_03_abr/jun.2017 por

Da entrada da penitenciária até chegar na sala de aula onde ocorrem os atendimentos do ITTC, seria possível apenas andar em linha reta, pois não é lon­ge. O problema são as burocracias de segurança, portas e mais portas, conversas com a diretora, pe­didos das mulheres que estão trabalhando, visitas ao pavilhão materno, passar por portas que levam a salas vazias, desativadas. E ainda nem chegamos perto das celas. Essa parte vemos apenas de longe. Só uma janela por cela e algumas roupas pendura­das.

Quando finalmente chegamos, a agente já tem uma lista das mulheres que deve chamar. Aurora é o décimo primeiro nome. Quando ela chega, vai pri­meiro conversar com Isabela, da equipe do Projeto Estrangeiras. Elas conversam sobre fazer um pedi­do de prisão domiciliar, já que Aurora está grávida e tem o direito de cuidar do filho fora da cadeia.

Alguns minutos depois, Aurora senta na minha frente e me olha calada, quase com medo. “Ela disse que você queria conversar comigo”. Normal­mente os atendimentos demoram, pois as mulheres têm bastante coisa para contar sobre a rotina lá de dentro. Elas também costumam escrever cartas para as famílias, e quando são respondidas parece que algo se renova dentro delas. Recebem dese­nhos pintados a giz de cera e fotos de filhas, filhos, gatinhos de estimação e amigas, que fazem a sau­dade apertar um pouco menos, ou a coragem para esperar mais um pouco aumentar.

Naquele dia não tinha nada para Au­rora. Mas nem a correspondência se­ria capaz de mudar seu semblante tão sereno e ao mesmo tempo tão triste. Perguntei se ela estava bem e ela res­pondeu “si”. Então perguntei o que a trouxe ali, qual era a história dela. E evitando olhar nos meus olhos, como criança que fica com vergonha de fa­lar com estranhas, ela começa a me contar.

Ícaro

Na mitologia grega, Ícaro, filho de Dédalo, é preso com o pai no labi­rinto de Creta. Impedidos de sair dali por terra e por mar, vinte e quatro ho­ras por dia vigiados pelos guardas do Rei Minos, a única solução encontra­da para fugirem foi o céu.

Não foi pelo céu que Aurora chegou ao Brasil. Diferentemente da maioria das estrangeiras presas em São Pau­lo, que vêm de avião e são pegas no aeroporto, Aurora foi presa numa segunda-feira dentro de um ônibus que vinha de Santa Cruz, na Bolívia, com destino à capital paulista.

Quando se está com a droga presa ao corpo, o medo de ser pega acompanha, junto à cocaína, cada passo dado.

Foi em Corumbá que os policiais pararam o ôni­bus em que Aurora estava. Foram direto nela, como se soubessem exatamente onde e o que procurar. Talvez soubessem mesmo. É normal que a polícia receba denúncias anônimas, geralmente vindas da própria organização criminosa, a fim de desviar as atenções e passar a fronteira com mais droga.

No último final de semana que passou na Bolívia, ela estava em casa apenas com o marido, mas a família, na verdade, é bem maior. Seus cuidados se dividiam entre quem morava com ela, Mirian, Carla, Georgia e Carlos, as filhas e o filho, Rogério, o marido, e também quem precisava de cuidados e não tinha mais ninguém, como o pai Manuel, que tem câncer de próstata.

Pelo menos essa era a família na qual Aurora pen­ sou ao, cansada de não arranjar emprego na Bolí­via, decidir transportar drogas. Uma leve inclinada de cabeça para a esquerda combinou com os dois ombros erguidos quando disse isso, como se esti­vesse se justificando e dizendo em silêncio “era o que dava para fazer”. Pediu ajuda para uma ami­ga que estava conseguindo algum dinheiro nessas viagens e logo tudo já estava arrumado para a pró­xima segunda-feira.

Éramos cinco

Era fevereiro e fazia muito sol. Antes de entrar no ônibus, Aurora recebeu dois quilos de cocaína para levar embaixo da blusa. Quando os policiais a re­vistaram, ela suava de nervoso e de calor, por cau­sa do plástico colado ao seu corpo. Não se lembrou em qual cidade a viagem foi interrompida, mas se lembra bem das três semanas que passou na Peni­tenciária de Pirajuí antes de ir para a Penitenciária Feminina da Capital.

Aurora passou muitos dias mal e não tinha aten­dimento médico lá. Só um mês depois, já em São Paulo, conseguiu uma consulta e fez um exame de sangue. Quase não acreditou quando o resultado chegou.

A família já era grande e quase pare­cia não caber na casa alugada onde moravam. Agora seriam seis.

Agora seremos dois

A única vez que o rosto de Aurora sorriu e perdeu o medo foi quando fa­lou do filho. Já estava de cinco meses e precisava encontrar um bom nome. As amigas feitas dentro da prisão ajudaram a escolher: Ícaro. Falei que era muito bonito, ela também gostou. Mas Aurora vai pedir para Mirian, sua mais velha, escolher outro, pois ela quer que seja composto, como os das irmãs e irmãos.

Apesar do perfil calado, os olhos tris­te de Aurora gritam a saudade que ela sente da família. Bem no fundo deles também há esperança, principalmen­te por causa do filho.

Ela continua aguardando o pedido de prisão domi­ciliar. Quer que Ícaro voe para longe da cadeia.

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Advertência

Os nomes das personagens foram alterados para preservar a identidade das mulheres. Os nomes escolhidos no lugar são homenagens a três das cinco mulheres que derrubaram a ditadura militar na Bolívia em 1978. Entre elas, Domitila Barrios de Chungara, que lutou durante muito tempo da sua vida pelos direitos das mulheres.

Crédito da imagem: Autora

Capítulo do livroNosotras

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