O nome do pai

publicado na Ed_14_jan/mar.2020 por

Nome completo, RG, CPF, data de nascimento, endereço, nome da mãe, nome do pai. Estes são dados básicos solicitados em muitos dos cadastros que fazemos durante a nossa vida e que parecem descomplicados aos olhos da maioria.

Mas, e quando não é possível preencher um desses dados? Já pensou em como seria olhar para o campo de número de RG e pensar: “não sei” ou “não tenho”? Será que não chegaria uma hora que essa ausência de informação te incomodaria?

Valdelice de Matos Santos tem 51 anos de idade e nunca preencheu o campo “nome do pai”. Nascida na cidade de Araci, no interior da Bahia, dona Val perdeu a mãe assim que nasceu, e o pai também não a criou. Talvez por questões da época, parece que os familiares do pai de dona Val não aceitaram muito bem o fato de ela ser sua filha.

Araci, que em tupi significa “mãe do dia”, é um município situado ao nordeste de um grande estado nordestino, mas, por sua vez, é cidade pequena. Faz parte da região Sisaleira da Bahia (área historicamente produtora da planta do sisal). Tem uma população estimada em pouco mais de 54 mil habitantes (de acordo com o IBGE de 2019) e fica localizada a cerca de 210 quilômetros de Salvador. 

Dona Val, que não tinha mãe, nem pai, foi criada por várias pessoas da cidade “mãe do dia”, indo de casa em casa, enfrentando a vida difícil do sertão:

— Eu nunca acostumei a chamar ninguém de mãe ou de pai.

Só aos 12 anos de idade, encontrou uma mulher que a acolheu como filha e que pôde ter apego como se fosse sua mãe.

Essa mulher é dona Maria, tia do seu Sandro, homem que há 24 anos é marido de dona Val e pai de suas duas filhas. Dona Val contou que eles são todos primos. Dona Maria não teve filhos, e recebeu dona Val de braços abertos. Dona Maria era uma pessoa que queria ser mãe, e a menina Valdelice precisava de uma família.

Anos depois, quando dona Val, já casada, ficou grávida de sua primogênita, procurou a segurança da casa e da presença de dona Maria para dar à luz, gesto sublime de confiança.

Dona Val fala sobre dona Maria com todo o carinho de uma filha que fala sobre a mãe:

— Ela foi uma mãezona e é uma avó para elas (suas filhas) maravilhosa.

Dona Maria tem cerca de 75 anos de idade. Seu marido também foi um pai para dona Val, a chamava de filha, e sempre dava todo o apoio que precisava. Mesmo tardiamente, dona Val teve o carinho e aconchego de ter o seu primeiro porto seguro para chamar de família.

Dona Val começou a trabalhar bem cedo e a frequentar a escola tarde. Só aos 12 anos pisou numa sala de aula, com o apoio de dona Maria. Aos 15, já migrava para São Paulo para trabalhar como doméstica, passava períodos de cerca de dez meses na cidade grande e depois voltava à sua terra natal. Aos trancos e barrancos, estudou até o quinto ano do ensino fundamental.

Até cerca de 10 anos atrás ela não tinha contato com o pai. O pai, por sua vez, encontrou uma mulher a quem passou a amar e constituiu uma família, com sete filhos. A aproximação de dona Val com o pai aconteceu por intermédio da dona Maria, a mãe de consideração de dona Val, e de uma afilhada de dona Maria, que, veja só, é irmã biológica de dona Val. Como toda boa cidade pequena do interior brasileiro, todo mundo é um pouco “parente” em Araci.  

Primeiro, dona Val se aproximou dos irmãos, e com o tempo, o pai também começou a ter contato com ela. Hoje todos têm uma relação muito boa, e ela passou a ser a oitava filha de seu Alfredo. Dona Val mora em São Paulo e sempre que pode, vai à Bahia visitar a família.

Sempre que se despede de seu pai porque precisa voltar para casa, ele chora.

Talvez seja devido às dificuldades da vida ou mesmo por toda a simplicidade de dona Val, mas o fato de não ter sido registrada não a afetou. Com um sorriso no rosto, ela contou toda a sua história, que pode ser encarada como difícil e triste, mas transparece muito mais como uma lembrança amena quando narrada com toda a leveza da voz de dona Val:

— Até agora, graças a Deus, é só alegria, porque ele nem precisou me registrar, porque ele já sabia que era filha. Ele só não encarava assim de enfrentar como filha porque ele tinha a família dele, e acho que, claro, a família deveria não aceitar muito. Mas agora tenho os melhores irmãos do mundo. Mudou muito a minha vida e das minhas filhas.

É assim que dona Val reflete sobre o que passou.

Cinco milhões e meio. Esse número representa a quantidade de crianças brasileiras sem o registro do nome do pai na certidão de nascimento, de acordo com o Censo Escolar[1] de 2011, último que divulgou estas estatísticas. O país ganhou mais de um milhão de famílias compostas por mãe solo – ou seja, de famílias nas quais a mãe é a única responsável pela criação e sustento do filho -, em dez anos, esse é o número apresentado pelo IBGE (Instituto Nacional de Geografia e Estatística) de 2015.

Em 2018, 750 mil pessoas com idade de 0 a 30 anos não tinham um nome para preencher aquele campo de “nome do pai”, isso só no estado de São Paulo. Nas escolas públicas também de SP, 4% dos alunos não tem o nome do pai. Esse número aumenta para 14% dentre os presidiários do sistema carcerário do mesmo estado. São números altos e que, veja bem, não abrangem todas as idades, nem todos os universos.

No país, não há dados oficiais sobre a quantidade de adultos que não possuem o registro paterno na certidão de nascimento e não houve atualizações sobre as crianças desde 2011. Sem falar nos filhos que até possuem um nome que preencha a solicitação de “nome do pai”, mas que o pai tenha ido embora.

Dona Val é uma em milhões, e infelizmente, muitos desses milhões não têm um recomeço e um final feliz como o dela.

Dr. Maximiliano Roberto Ernesto Fuhrer é um promotor de justiça que atua em São Bernardo do Campo, região metropolitana de São Paulo. Possui 30 anos de carreira, e de tanto ver processos e documentos sem a informação “nome do pai”, ficou intrigado.

Comentou sobre o que pensava quando percebeu que deveriam ser muitas as pessoas com o nome do pai em branco nos documentos:

— Puxa, deve ter umas duzentas pessoas aqui nessa cidade sem o nome do pai!

Decidiu procurar o Secretário de Educação da época (por volta de 2005), para tentar fazer um levantamento de quantos alunos não tinham o registro paterno, e chegaram à conclusão assustadora de que cerca de 10 mil crianças e adolescentes em idade escolar estavam nessa situação.

Isso apenas em São Bernardo do Campo. Uma cidade rica, no estado mais rico do país.

— Se você enfileirar 10 mil meninos na via Anchieta, chega em Santos. É um exército, é um contingente parecido com o da Polícia Militar, uma coisa absurda.

O Dr. Maximiliano achava que tinha algo errado com esse número, mas não, era isso mesmo. E notou que além de não estar errado, era um problema de todo o estado, que, como mencionei, tem uma quantidade assustadora de 750 mil pessoas de até 30 anos sem o registro do nome do pai.

Já foram inventadas diversas vacinas: para poliomielite, sarampo, tétano, rubéola, febre amarela, meningite. Diversas doenças epidêmicas foram dizimadas. Mas há cura para uma epidemia social?

— 750 mil pessoas só no estado de São Paulo. Isso é maior que qualquer epidemia que a gente tenha tido notícias, é uma epidemia social, descreve com precisão o promotor.

Dr. Maximiliano começou um projeto para reverter esse quadro, o “Encontre seu pai aqui”. Com uma sábia mente jurídica e por não ter passado por isso, o promotor via a necessidade legal do registro do nome do pai: visando ter pensão alimentícia, direito de sucessão e usar o seu sobrenome.

O conhecimento sobre a necessidade emocional veio quando ele começou a ouvir as histórias das mães que estavam sozinhas para criar os filhos, e dos próprios filhos. Foi então que percebeu que os aspectos jurídicos são os menos importantes.

No primeiro ano do projeto, o promotor intimava as mães para comparecerem ao fórum de São Bernardo do Campo, mas era um procedimento que gerava um certo constrangimento para elas e para seus filhos, pois há diversos fatores e sentimentos envolvidos quando se envolve uma situação de abandono: expectativa, tristeza, esperança, solidão. Receber uma intimação não era uma forma muito convidativa para que as mães comparecessem, e ainda assim, foram mais de mil reconhecimentos em um ano.

Para melhorar o atendimento e reduzir o constrangimento das mães, o promotor procurou o Poupatempo[2], que tanto aceitou o projeto como espalhou para todos os postos do estado de São Paulo. Os atendimentos são feitos em salas mais reservadas, para tentar dar mais privacidade às pessoas que procuram o programa. Hoje, o projeto também abrange a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e o sistema carcerário do estado de São Paulo.

A surpresa do promotor foi que ele criou esse projeto pensando nas crianças (que as mães procurariam o “Encontre seu pai aqui” para registrar os filhos pequenos), mas 60% das pessoas que procuram os postos do Poupatempo são adultos.

Segundo o próprio promotor, dentre esses adultos, 80%, quando preenchem o formulário para requerer o reconhecimento paterno, têm lágrimas nos olhos.

Ter os nomes do pai e da mãe, saber de onde viemos, faz parte de saber a nossa própria história. Por sua vez, o oposto pode significar uma parte em branco. O projeto criado pelo Dr. Maximiliano se originou por causa de toda a questão jurídica de pessoas não terem o registro do pai, mas acabou indo além, e hoje representa esperança para quem procura conhecer suas próprias origens.

Mas ter um pai vai muito além de ter o seu sobrenome, de ser herdeiro ou de ter a pensão paga. A paternidade é uma parte primordial na vida de todos os filhos, é tão importante quanto a presença materna para o desenvolvimento da personalidade da criança, para enfrentar as dificuldades da adolescência e para o sentimento de segurança de um adulto. A ausência do pai acarreta em danos que vão muito além da questão financeira ou burocrática.

É muito mais que um nome em branco. 


[1] Pesquisa estatística educacional brasileira, que coleta informações de alunos da educação básica

[2] Programa implementado em todo o estado de São Paulo para facilitar o acesso dos cidadãos às informações e serviços públicos, que reúne diversas empresas e órgãos prestadores de serviços de natureza pública.

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Crédito da imagem: Autora

Capítulo do livro: Você que não me viu crescer: Os efeitos do abandono paterno na vida dos filhos adultos

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