A janela do azul infinito

publicado na Ed_07_abr/jun.2018 por

O município de Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro, é uma janela que se abre para um azul infinito, calmo, longe de toda a agitação das grandes metrópoles, das cobranças, dos prazos e dos problemas ordinários da vida. Sinto que a paz invadiu ô, amigo, tem como cê dá um espacinho pr’eu tirá uma foto aí onde cê tá, só um instantinho? Gradicido.

Arraial do Cabo é a cidade onde todos parecem se conhecer. Jurema foi com tia Tânia para a Praia do Pontal, que viu Luciana que já estava indo embora. Tia Tânia, então, perguntou sobre Francisco e Luciana disse ah!, na mesma e não sei o quê. Jurema e tia Tânia esperaram Elzo que foi pegar insulina para o sobrinho que estava com a diabetes alta — o garoto passa bem e já voltou para Macaé. Tia Tânia tem ligado para Lecilda, mas o celular só dava ocupado. Aí tentou ligar outra vez e chamou, chamou, mas ninguém atendeu; tentou outra vez e a mesma coisa. Ai falou com Luciara que disse ah!, tia Doca deve ter colocado pra carregar. O homem do doce passa e tia Tânia avisa que é só chamar por Souza que ele pára! E antes de ir a quitanda de Marcinho, passa no depósito e compra um maço de Hollywood Azul pra mim. Se não tiver, passa em Rafael.

Uma cidade onde casais discutem o relacionamento por causa de selfies mal enquadradas na Praia do Forno. “Não é questão de não gostar, nego, é que olha a ambientação. Se você tirar deitado, pega mais cenário, na vertical não” — ao que parece, só um deles tomou nota das aulas do tio Bonner. É a cidade dos primeiros encontros, onde ele diz que é eletricista, e ela pergunta: “Essa água não tá batizada não, né?”.

Arraial do Cabo é a cidade onde curiosos profissionais esbarram com o bigodudo Umberto, um paulista aposentado que vez ou outra veda embarcações próximo ao cais da Praia dos Anjos; com Rodrigo, carpinteiro talentoso que conserta o barco amado em sete dias; com o velho Orizete, vendedor de picolé que labuta sob a lua do meio-dia e não tá fácil não, viu; dos irmãos Deusa e Emanuel que adoram posar para a câmera de estranhos; é a cidade onde um grupo improvável formado por um poeta, um explorador italiano, um índio tamoio, um guarda imperial e uma freira simpática, oferecem um touristórico gratuito a quem interessar possa; é a cidade onde marqueteiros anunciam em barris de lixo que o filho Dele vive — mal sabem eles que Jesus repousa tranquilamente sob as areias da praia; e é a cidade de tia Fátima que se pergunta o que deu errado no bolo de aipim, era pra ser bolo, mas saiu pudim — acho que bati demais, ela concluiria.

Arraial do Cabo é a cidade dos paus de selfie, dos Guaravitas perdidos, e de vidas anônimas que importam.

***

É na Praia dos Anjos que os garotos observam as pipas lá, lá no alto, atentos àquelas que perecerão ao primeiro toque de cerol. Quando menos se espera, partem em disparada aos berros. Sai!, sai!, gritam em coro. É meu, é meu, menó!, diz o garoto com a pipa na mão. Pouco importa quem perde ou ganha: a pipa estará no alto dali a pouco e perecerá como todas as outras nas brancas areias da praia.

A poucos metros dali, há um coqueiro. Ao lado do coqueiro, um garoto magricela. Ele também observava as pipas e a correria dos colegas, mas estava concentrado em outro empreendimento: subir naquele coqueiro e por a baixo um daqueles cocos. Mas antes, uma pausa para o sacolé, pois ninguém é de ferro naquela lua das cinco da tarde. Saciado, o garoto se posiciona em frente ao coqueiro. Davi contra Golias. Ele tenta subir uma!, duas!, três vezes!, mas sem sucesso. Pára no meio do caminho, sem forças nos bracinhos raquíticos. Mas como diria o clássico dos anos 80: retroceder nunca, render-se jamais. Não tão longe dali, quatro garotos vinham ao seu encontro. Numa cena digna de Cães de Aluguel, eles se aproximaram do coqueiro onde o amigo magricela tentava subir. Um deles, comovido com o esforço do magricela, ofereceu ajuda empurrando-o com os braços igualmente raquíticos. Momentos depois, outra pipa cai. Os garotos se dispersam aos berros, sai!, sai!, e deixam o magricela a meio caminho do coco.

O cais da Praia dos Anjos ainda reserva preciosidades como João Pedro, Angela Mar, Ezer Mello, Karla, Cici, Ricardão, Luis Fillipi, Mulato e Talarico; alguns gringos como Luarryme, May Filli, Marlin, Michel Divers, Marjeann, Blue Fish e El Canal; sábios como o Mestre Amado, Albatroz Mestre, Mestre Chiquinho e o Velho Shan; amantes da vida marinha como Lula, Falcão Azul, Mariposinha dos Mares e as Tartarugas; os esquisitos 4 Amigos, Xingrito, Kome Keto, Veneno, Rapalinha, RPM Mar, o crente Vou com Deus e até um tal Uber Black; os numéricos Atlântico I e Atlântico II, Meu Devaneio e Meu Devaneio I, Torpedo III e Torpedo IV.

Ótimos nomes para barcos, vocês hão de concordar.

O caso Monalisa

Arraial do Cabo é a cidade do pescador Onildo que, em março de 1984, passou cinco dias e quatro noites perdido no mar com mais dois tripulantes. O tempo podou certos detalhes da memória do já sexagenário Onildo, que sugeriu: “Passa lá no cais amanhã e eu te mostro a reportagem”. Permito-me, então, narrar essa história com trechos extraídos do texto de um jornalista que cobriu o caso à época e parece ter valorizado habilmente o episódio em sua reportagem. A matéria abre com um parágrafo dramático: “Durante seis dias, açoitados pelos ventos e pelas tempestades, arrastados pela forte corrente marítima, atemorizados pelos tubarões e peixes de grande porte, a 240 milhas da costa brasileira, três pescadores de Arraial do Cabo viram a morte de perto” ‒ se essa não é melhor abertura de matéria que você leu na vida, não sei mais como surpreendê-lo.

Nós saímos da Praia dos Anjos, passamos pela Ilha do Farol e seguimos mar adentro na Costa de Cabo Frio. Era o dia 20 de março. A pescaria começou azarada. Dois dias antes o motor da Monalisa apresentou defeito e tivemos de adiar o trabalho. Pensávamos em retornar ao Arraial no dia seguinte, no começo da tarde. Levamos um punhado de farofa, três litros d’água, as roupas do corpo, e só. Nem bússola tínhamos. Imaginamos que a pescaria seria proveitosa. Possivelmente quando voltávamos, o motor pifou e a forte correnteza nos arrastou para o alto-mar ‒ o jornalista apurou que o barco ficou à deriva após quebrar o eixo de comando do motor ainda na costa de Cabo Frio.

Onildo, o quase náufrago

Durante dois dias fomos levados em direção ao desconhecido. Os ventos fortíssimos ameaçavam virar o barco e, “de quando em quando, as sombras azuladas dos tubarões podiam ser vistas, assim como as barbatanas triangulares riscando o oceano” ‒ se permitiu brevemente ao literário o repórter. O intrépido narrador continua: “Sem provisões e vestidos apenas com roupas leves, com o motor do pequeno barco quebrado, tinham perdido as esperanças de voltar às suas casas, quando foram avistados pela tripulação de um navio de bandeira argentina, que se dirigia a Montevidéu, vindo da África”. Os três pescadores foram socorridos, alimentados e tratados pelos tripulantes daquele navio, enquanto o capitão entrava em contato com o Comando do 5º Distrito Naval, sediado em Rio Grande, no Rio Grande do Sul.

Segundo apurou o jornalista, “em Arraial do Cabo, já está programada uma festa de arromba para recepcionar os três aventureiros”. Perguntei a Onildo se Arraial do Cabo realmente programou um “festa de arromba” e o que mudou na vida dele após o incidente. O homem me encarou com um leve sorriso no rosto e disse: “Se teve uma festa, não fiquei sabendo. Mudança, mudança, só um divórcio mesmo”.

História de pescador, só a do jornalista.

Buraco na praça

Ali na entrada de Arraial, mais precisamente na Praça da Independência, entre as ruas Dom Pedro I e José Pinto de Macedo, o buraco se faz presente. Não um buraco, buraco, mas o buraco-jogo, buraco-carteado. Eram oito homens da primeira vez que os vi ali reunidos; das outras vezes, mais de 20 deles se dividiam entre as quatro mesas de concreto, com quatro assentos cada. Todas ocupadas. Há sempre alguém em volta, observando, palpitando, brincando com os jogadores à mesa. Homens comuns que matam o tempo embaralhando cartas, revendo os amigos, bebendo cervejas e falando bobagens.

Numa das mesas, Marquinho revelou a Peninha que a irmã do Abacaxi pegou ele no esporro. Puxou ele pr’ajudar a pegar umas sacolas lá atrás. E Nando também foi embora. Vieram buscar ele. Estava pagando muita cerveja pro pessoal. Em outra mesa, um negro alto de camiseta lilas parecia exaltado com o colega que fumava ao lado. “Guarda esse troço no bolso, rapá!”. O colega não deu atenção, já que minutos depois estava com outro cigarro na boca. “Acendeu esse caralho de novo?! Vê só”, dizia aos outros da mesa, “acabou de apagar um e acendeu outro; não quero fumar com você não, rapá!”, esbravejou, cada vez mais lilás de raiva. O colega parecia não ligar. Pleno, como da última vez, sacou uma carta do baralho e repetia com certo lirismo: “Bela carteta, bela carteta”.

Voltei à mesa onde estavam Peninha, Marquinho e companhia. Como dignos representantes da turma, foram me apresentando a tantas pessoas quanto as que eu consigo lembrar o nome agora. Por que Abacaxi?, perguntei. Ele não gosta não, me alertaram. Quer ver o Abacaxi puto, chama de Abacaxi. Dizem que ele comeu Abacaxi e passou mal. Ninguém entende nada o que ele fala. Ninguém consegue traduzir. Nem ele sabe o que tá falando, emendou outro cara. Do jeito que o Abacaxi saiu daqui hoje, ia precisar de um tradutor pro menino. Chegou o corninho lá de cima, aquele boizinho, aí começou a falar bêbado também e fodeu tudo, completou Marquinho. E Nando? Ah, Nando é o verdadeiro Corcunda de Notre Dame. Só vendo pra crer. Nando é falador, Nando é artista!

Dias depois, voltei à praça do buraco. Peninha era o guia de sempre. Aquele lá tocou com o Serguei, ó!, disse, enquanto apontava para um homem sentado num dos bancos da praça. Quando, enfim, avistou Nando, me puxou para perto e foi logo nos apresentando. Caolho, manco e com um estranho TOC na língua, como se lambesse algo no ar a cada três segundos (ele só se continha quando estava concentrado no jogo), Nando era um quase Quasimodo. Ele faz as marchinha tudo, rapaz!, comentou Peninha. Não precisou de muito tempo para que eu percebesse isso. Tão logo me cumprimentou, Nando começou a versar. Olha só: botei a minha sogra na rifa, a minha sogra comecei a rifar; enganei o povo, carro importado na rifa comecei a botar; vendi toda a cartela, a rifa começou a esgotar; teve o sorteio, a minha sogra (o carro) começou a sortear; o cara tirou a cartela, a chave do carro comecei a entregar; sabe o que eu disse pro cara?, no teu carro a minha sogra você vai carregar!, hé!, hé!, hé!, hé!, hé!

Nando, o falador

— Escuta, rapaz, quer fazer uma troca comigo?

— T-troca? Que troca?

— É, sabe o quê? Você compra um isopor, leva uma praia daqui pra São Paulo e dá o Rio Tietê pra mim, hé!, hé!, hé!, hé!, hé!

— Acho que você não vai querer o Rio Tietê.

— Eu conheço São Paulo, conheço ali São Paulo. A 25 de Março. Tinha mais chinês que paulista, né?, hé!, hé!, hé!, hé!, hé!

Incansável, Nando fez uma piada sobre caixas d’água e o Palácio do Planalto. Fiquei sem entender, mas fiz questão de acompanhar o hé!, hé!, hé!, hé!, hé!

— Eu cheguei na banca de jornal e perguntei: “Menina, tem raspadinha?”. A menina: “Tem”. “Quanto custa?”, perguntei de novo. “Um real”, ela me disse. “E da cabeluda?”, hé!, hé!, hé!, hé!, hé!. Essa foi boa, essa é boa, hé!, hé!, hé!, hé!, hé!

Tendeu, tendeu?, perguntou um homem que estava na roda. Era o Abacaxi. Dirigindo-se a Nando, ele disse nsequê, nsequê, nsequê, pr’eu tomá uma cerveja ali? Nando, contrariado, respondeu: “Rapá, eu tô de saco cheio de te pagá cerveja!”. Volta para Abacaxi que diz nsequê, nsequê, nsequê, vou ficá em pé aí caralho pô!

Abacaxi, o fanho

Abacaxi é um simpático fanho e bêbado. A mistura disso era um idioma difícil até mesmo para os já iniciados compreenderem. Era um quase gringo-cabista‒ de fato, só o entendíamos quando balbuciava as palavras “cerveja” e “caralho”. O “caralho” não sai da boca dele, disseram os colegas ‒ Abacaxi respondeu com outro caralho. Caralhos eram as vírgulas das frases soltas de Abacaxi. O esforço era tão grande para pronunciar as palavras, que não raro pedia-nos tempo para tomar fôlego.

Si si si dinhêro cê vive? Claro que vive! Se o coração parar, você não morre não?! Que dinheiro?, que dinheiro? Não, quem manda é o coração! Pra que dinheiro e o coração parar? I i i nsequê, nsequê, nsequê, di di dinhêro ajuda, di dinhêro ajuda, o dinhêro nu ajuda? Dinheiro ajuda em muita coisa. I i i mu mulhé, ajuda? Mulher?! Pra que eu vou querer mulher? Pra que mulher se vai dar apurrinhação, rapaz?, disse o amigo de Abacaxi que, assim como eu, estava mais perdido quanto cachorro em tiroteio. Abacaxi apanha algumas moedas dele e entra em uma pequena banca de jornais a poucos passos dali. Ele sai com dois latões de cerveja nas mãos e grita com perfeição: “ME-SEGURA-PAPAI!”.

Que Deus nos ajude.

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Crédito das imagens: Autor

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