A luta pelo direito de re“existir”

publicado na Ed_07_abr/jun.2018 por

Pimenteiras do Oeste (RO), segundo IBGE 2017, conta com uma população estimada em 2.500 habitantes. Foi anteriormente habitada por alemães aventureiros que se instalaram na região guaporeana para extrair seringa e ouro no Vale do rio Guaporé. O município faz fronteira com a Bolívia e supostamente recebeu o nome de Pimenteiras devido à cruz negra de metal na qual estava escrito o nome de um missionário alemão — Jasper von Oertzen — no ano de 1907, e onde também se lê o nome “Pimenteira”. O município, de acordo com os moradores mais antigos, teve várias etapas de povoamento, sendo a mais recente e mais importante durante a reabertura da cidade em 1960, com a chegada da família Serrath e da família Brito.

A região foi ocupada por negros oriundos de quilombos de Vila Bela da Santíssima Trindade, em Mato Grosso, fugitivos que se abrigaram às margens do rio Guaporé, dando origem à comunidade quilombola que viria a ser a cidade de Pimenteiras. A colonização da região foi consequência dessas ocupações negras no seringal de Santa Cruz, colocando em contato a cultura dos ex-escravos com culturas de indígenas, constituindo assim novas famílias identitárias. A formação destes quilombos, entretanto, não foi uniforme. Alguns surgiram de fugas, outros de alforriados ou libertos que herdaram lotes de seus antigos senhores donos de quilombos.

Foi graças aos antepassados negros do Vale do Guaporé que o quilombo de Pimenteiras brotou, e foi através do sentimento de sofrimento e escravidão que estas pessoas fizeram as suas histórias no Vale.

Dentre as representações culturais mais expressivas em Pimenteiras, se destaca a festa religiosa do Divino Espírito Santo, perpetuada por mais de 105 anos, expandindo-se de geração em geração e tornando-se uma tradição binacional por ter devotos brasileiros e bolivianos.

É muito comum ver em Pimenteiras casas de palha, nos fundos das casas ou na frente, mesmo que ocupem pouco espaço. O fogão à lenha é outro objeto culturalmente típico de quilombolas, mais precisamente de Santa Cruz, como se os moradores quisessem voltar ao passado, praticamente trazendo para o quilombo urbano um pedaço do antigo quilombo rural.



Foto 1 - Alice Serrath e sua filha Odizia Serrath

A dança é uma manifestação folclórica e religiosa de matriz africana, encenada simbolicamente uma luta travada em dois reinos, predominante na cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade. A dança lembra o tempo de escravidão, simulando a relação entre as escravas e os senhores. Jasimi Nogueira de Menezes é filha de Vila Bela, esclareceu que a dança representa as mulheres tentando seduzir e embriagar seus nobres senhores com a bebida Canjinjin( é uma bebida originária africana, é um licor com algumas ervas na verdade a receita é guardada a sete chaves) para que os mesmos pudessem tratar os seus maridos melhores. O lamento na música é o que nomeia a dança. O adorno de barro na cabeça de Odízia é só para simbolizar o aguardente que as escravas carregavam sobre suas cabeças enquanto dançavam para os seus senhores.

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A questão territorial é um dos benefícios destinados aos quilombolas quando há o reconhecimento tal como quilombola. O Incra é a autarquia responsável por fazer o reconhecimento destas propriedades, como por exemplo levantamento de dados antropológicos e geográficos sobre os limites ocupados pelos assentados. Posteriormente, quando há o reconhecimento, a divisão é feita pelo próprio Incra entre os quilombolas.

Os remanescentes estão aguardando ansiosos o processo, em trâmite, sobre a questão das terras da fazenda Santa Cruz, antiga sede do seringal. A fazenda é o território original de assentamento das famílias quilombolas até serem remanejados. A área hoje está sob a guarda de dono privado, Renato Pereira, e funciona como um park hotel distante cerca de seis quilômetros da cidade de Pimenteiras. O antigo seringal foi o primeiro local onde os quilombolas se estabelecerem enquanto grupo, e coletivamente produziram recursos culturais, sociais e físicos.

De acordo com a presidente da associação quilombola, Izabel Mendes, existem cerca de 180 famílias quilombolas cadastradas na comunidade, ultrapassando 500 pessoas no total. Há requisitos para se denominar quilombola e, como explica a líder da comunidade, a cor da pele não é o único fator considerado.

“A pessoa pode não ter a pele escura, mas se for descendente de negro pode participar e provar que você é descendente de negro. A classificação não é só pela pele negra, mas se veio de família negra você carrega no sangue a descendência negra”. Izabel Mendes.

Foto 2 - Renato Yjane, 52 anos, Clarice Rieling, 49 anos - Casal de vendedores de melancias.

Os quilombolas recebem vários benefícios dos governos Municipal, Estadual e Federal. Além do acesso à educação, saúde, assistência social comuns a todos os cidadãos, essas comunidades tradicionais quilombolas estão pleiteando junto ao Incra a demarcação das terras da fazenda Santa Cruz, esperando reaver a área historicamente ocupada por famílias negras. Caso a demarcação ocorra como esperado, a área será distribuída entre as famílias que atualmente residem no espaço urbano de Pimenteiras.

Izabel Mendes, nascida em Pedras Negras, mudou-se ainda pequena para Santa Cruz, onde se criou, e reside há quase 50 anos em Pimenteiras. Diz ela que: O negro e o índio é a classe menos favorecida, são duas etnias desvalorizadas. Criamos a comunidade para resgatar nossa história, cultura, nossa identidade o nosso credo religioso, viemos de uma luta e sofrimento de nossos ancestrais, mas ao mesmo tempo uma luta de heroísmo. Nossa cultura é bela, linda!

Antigamente nossos pais cismavam com os locais, colocavam nossas coisas dentro do barquinho, da canoa e abríamos outro lugar. Comprovar origem quilombola é uma demanda que há muitas especulações e a classe menos favorecida é o negro e os índios. O objetivo de criar a comunidade foi para resgatar a nossa história, nossa cultura, nossa identidade é através da luta que é a nossa história surge. Nossos antepassados foram heróis, e através deles que fomos vitoriosos. (Izabel Mendes, 2017).

Foto 3 - Izabel Mendes de Souza, 54 anos. Presidente da associação quilombola. De acordo com Beca, a desapropriação das terras de Santa Cruz, onde havia uma colônia de famílias, se deu pela venda das terras para outro fazendeiro, e o último dono não aceitava que as famílias ficassem lá. O primeiro dono tinha o sobrenome de Suriadaki.

O senhor João de Brito chegou a Santa Cruz no dia 18 de junho de 1961. Tinha muita família lá, sabe que duas ou três famílias têm 15 ou 20 meninos, né? Não tinha escola, era bem fraca então nós falou com o governo ele falou que construía uma escola boa, foi onde o governo construiu escola ali na frente, se não alagasse a gente tava lá. E foi aí que começaram a mudar para Pimenteiras e acabou o Santa Cruz por causa disso, se não alagasse a gente tava lá. A gente sempre sente falta do lugar onde se cria né? lá a gente andava mais que quilômetro pra achar terra alta para fazer roça. (João de Brito, 2017).

Foto 4 - João de Brito, 72 anos. Quilombola, é um dos pioneiros de Pimenteiras, trabalhou por muito tempo como seringueiro, mas se aposentou como pescador.

“Antigamente só vivia em troca de produto por mantimentos, naquele tempo se ouvia falar em dinheiro, mas ninguém pegava em dinheiro, era difícil, nem nos preocupávamos com dinheiro, era uma vida tranquila. As roupas vinham de Guajará-Mirim através dos marreteiros. O remanejo da fazenda de Santa Cruz se deu pelo fato das enchentes e por falta de estudo para as crianças, então o governo só construía a escola se mudássemos para cá, Pimenteiras”, enfatiza.

De acordo com a Fundação Cultural Palmares, o Brasil tem 2890 comunidades quilombolas, porém, destas, apenas 2465 estão legalmente certificadas, e Santa Cruz é uma destas. A certificação destas comunidades é importante para a população quilombola pois apenas através desse reconhecimento legal que eles podem ocupar as áreas que fazem parte do quilombo, entre outros benefícios específicos. O Governo Federal ampara os direitos legais pelos ordenados dos artigos nº 215 e nº 216 da Constituição Federal de 1988, enquanto é o Incra que, por meio da certificação de autodefinição, declara legítimo o reconhecimento dos territórios ocupados por quilombolas.

Dona Alice Serrath Paes, nascida em Pedras Negras e primeira moradora de Pimenteiras, é uma contadora de histórias nata. De acordo com sua narrativa, seu avô tinha uma marca nas costas feita pelos malfeitores dos quilombos em Vila Bela da Santíssima Trindade, conforme lembra: “Meu bisavô Roberto era carimbado nas costas, que ele fugiu do quilombo e eu cuidei dele ainda”.

Ao chegar à residência de dona Alice, ela estava meio desconfiada e não queria muito conceder a entrevista. Após estabelecermos uma afinidade, dona Alice contou estar cansada de pessoas irem a Pimenteiras, levar as informações e ganhar vantagens, nunca retornando com os resultados de suas pesquisas: “Quando emancipou Pimenteiras, veio um professor da Unir também esteve em Pimenteiras para desenvolver um livro, mas não nos trouxe nada de benefícios só levou nome em cima da gente”.

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Crédito da imagem: Autora

Capítulo do livro: “Pérolas negras do Vale do Guaporé”

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