A história da MediaQuatro teve não só um, mas alguns começos. O primeiro foi nosso encontro em 1992. Eu, Vinicius, era estudante de jornalismo e Maria Eugênia, de publicidade. Ela já contribuía na elaboração de campanhas publicitárias, inclusive fazendo vídeos com as grandes câmeras VHS de então, porém não tão certa se o seu trabalho em uma agência de publicidade era o que realmente queria.
Eu, por outro lado, havia abandonado o curso de História na USP e tive, pela primeira vez, um importante plano de reportagem abortado. Pretendia fotografar a guerra em Angola, mas meu contato lá, a missionária Tonica Van der Meer, teve de sumir do mapa por uns tempos por causa do recrudescimento da guerra civil, depois da tentativa de eleições naquele ano — e não pode me receber (em 2006, ela lançaria o livro Eu, Missionário?, pela Editora Ultimato, com uma foto nossa na capa).
Reserva Indígena Xavante
(Barra do Garça – Mato Grosso, 1992)
Na época, eu trabalhava no Banco do Estado de São Paulo, o Banespa, para pagar a Faculdade Cásper Líbero. Uma cliente, dona Úrsula, que fazia parte de uma ONG de proteção aos índios chamada Bartira, perguntou se eu não gostaria de usar minhas férias para levar uma carga de cobertores para os índios xavantes, no Mato Grosso. Foi uma experiência inesquecível! Fiquei alguns dias preso em Nova Xavantina, quando os sem-terra tomaram a ponte sobre o Rio das Mortes. Tive de esperar por dias em Barra do Garça a chegada, aos poucos, dos cobertores trazidos gratuitamente, em diversas viagens de um pequeno avião. Nesses dias, ouvi muito sobre como a cidade foi cercada por xavantes pintados para a guerra, anos antes, durante um desfile de 7 de setembro, e teve todo o arsenal da polícia e do exército tomados, porque os índios queriam o policial que tinha atirado em um menino. De fato, vi porcos do mato serem caçados com fuzis FAU dessa época. E, no final, tive de fugir da reserva de madrugada, com malária, por causa de um desentendimento com o cacique, sobre quem iria distribuir os cobertores entre as aldeias. Não queria acabar como uma antropóloga que dissera “não” ao cacique de outra aldeia na reserva e teve imediatamente a cabeça esfacelada por um tacape.
Na volta, fiz minha primeira exposição individual de fotografia no Tendal da Lapa, em São Paulo, num evento com apresentações teatrais, música e artes visuais, produzido por colegas da faculdade participantes de um grupo que editava o Poemia, um jornal tabloide de poesia e boemia, que cobria a cena paulistana e curitibana, e o Jornal do Banheiro, que colávamos nas portas dos toaletes, mas foi proibido pela direção da Cásper (jornalismo independente desde o princípio — anti-stablishment).
Maria Eugênia esteve no evento com um amigo, Luciano Lodis, e me convidou para uma festa na casa dele no final de semana seguinte. Foi a primeira vez que conversamos com mais tempo (já havíamos nos encontrado algumas vezes antes, já que ela é irmã de um colega de faculdade, Marcello Sá) e trocamos ideias sobre fotografia, comunicação, interesses comuns… Começamos a namorar naquela mesma noite, no apartamento em que o Luciano ainda mora na Rua da Consolação, e estamos juntos desde então – nosso casamento foi em 1994. Trabalhamos em escritórios de redação, assessorias de imprensa, jornais, revistas, produzimos juntos alguns house organs, tanto como empregados de empresas quanto como independentes. Para isso, montamos um home office, com um PC 386 e uma placa modem de 14.400 bits por segundo. Nos anos seguintes a infraestrutura evoluiu para um Macintosh Performa, e passamos a contribuir para fóruns on-line no sistema de rede anterior à internet, chamado Bulletin Board Systems, ou BBS[1]. A plataforma foi evoluindo com o tempo, assim como a variedade de artigos, fotos, boletins, mas dificilmente gerando mais recursos que os trabalhos fixos.
O trabalho de jornalismo independente e alternativo no Brasil, aliás, sempre foi muito difícil. Afinal, o mercado de imprensa no país, incluindo não somente os jornais e revistas, mas as rádios e emissoras de televisão, é historicamente dividido entre as poucas famílias que dominam os estados, praticamente desde as capitanias hereditárias. A partir dos anos 1990, com a desregulamentação trabalhista e a terceirização correndo à solta no mercado, boa parte dos jornalistas que ainda tinham carteira assinada foram demitidos e obrigados a abrir empresas para continuar trabalhando como fornecedores de serviços, muitas vezes para os mesmos patrões. Isso também aconteceu conosco. Apesar do aumento na carga de trabalho, da precarização da profissão e do enfraquecimento das redações com queda na qualidade das apurações, atuar ao mesmo tempo para uma mídia corporativa, que bancava nossos meios de subsistência, e para veículos alternativos, que não podiam ou não queriam pagar pelas contribuições, foi a saída que encontramos para exercer um jornalismo mais verdadeiro e humano.
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[1] Antes da World Wide Web conectar todo o mundo em páginas de navegação visual, havia redes locais interligando algumas centenas ou milhares de computadores. Os BBSs eram a forma de, via computador e rede telefônica, trocar arquivos, mandar mensagens e participar de chats e grupos de discussão.
Legenda da capa: O trabalho com indígenas sempre foi pauta (Fórum Social Mundial – Belém, 2009)
Crédito das imagens: Autores
Capítulo do livro: “Jornalismo independente do analógico ao digital: 15 anos da MediaQuatro“