A mandata quilombo de resistência

publicado na Ed_13_out/dez.2019 por

Erica Malunguinho, mulher trans, negra, periférica que não se deixa abalar

Sou só uma síntese de uma luta que é coletiva. Eu sou um indivíduo, mas estou a serviço de coletividades.

É assim que a entrevista com a deputada estadual Erica Malunguinho da Silva começa. Numa espécie de coletiva de imprensa e do programa Roda Viva, como ela sinalizou, outras pessoas queriam saber quem é esta deputada estadual recém-chegada a Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), com um pulso firme e histórias para contar. 

Natural de Pernambuco, nascida em Recife, Erica é a exceção de nossas histórias por ser de outro estado, mas sua importância não muda.

Sua família vem de “uma diáspora de Pernambuco que compreende marcas, que são marcas do Catucá[1]”, como explica.

Dentro dessa diáspora ela se presentifica e constrói uma história no bairro chamado Água Fria, o bairro mais negro de Recife, que é onde nasceu o 1º terreiro de candomblé, fundado por uma rainha nigeriana chamada Ifatimoqué (filha de Yemanjá Ubunté — que significa mãe de “todes”).

Todes faz parte de um conglomerado que busca fazer uma inclusão para todos os gêneros existentes. Chamada de linguagem não binária, é a que pretende ser isenta no seu vocabulário, abrindo espaço para quem quiser se incluir.

Erica conta também sobre um lugar chamado Caboclinho 7 flechas localizado lá em Água Fria. “É um lugar muito importante pela cultura indígena que conseguiu atravessar a urbanidade com a produção artística”.

No entanto, sua trajetória não foi toda construída nesse local. Em determinado momento precisou mudar para a região metropolitana, mais especificamente, para a cidade de Paulista que, inclusive, era onde morava uma de suas assessoras parlamentares, hoje. “Éramos vizinhas na época, mas só nos reencontramos anos depois já aqui em São Paulo”.

Aos 19 anos e já construindo produções artísticas, intervenções em moda, pensando a estética a partir da raça, de gênero e da sexualidade, Erica vem para São Paulo.

Aqui continuou a vida como artista e “migrou” para o universo da educação. Um lugar onde acredita ser “um disseminador e um modificador importante das narrativas, da sociedade”. Para ela, trata-se de mais um lugar de debate público.

Um lugar para colocar as questões do debate público e há um outro lugar que são os nossos parlamentos, os nossos espaços de construção de política, de aprendizagem e de movimentação da sociedade e de subjetividade.

Durante muitos anos deu aula para crianças muito pequenas, de 2 anos até adolescentes. Também fez formação de professores da rede pública e continuou trabalhando como artista, até que chegou um momento em sua vida, que percebeu uma certa limitação nos campos de trabalho.

Precisava de uma radicalidade, uma oposição importante, não necessariamente oposição, mas, sim colocar um discurso mais radical na esfera pública.

Foi então que, associado ao seu trabalho de artista, construiu um espaço político e cultural chamado Aparelha Luzia. Criado em 2016, é um quilombo urbano e um espaço que tece exatamente o posicionamento político e cultural.

O Aparelha Luzia é localizado na rua Apa, no bairro de Campos Elíseos, centro de São Paulo. O seu público é majoritariamente negro e há diversas atividades, como mostra de filmes, exposições, debates públicos, para reafirmar os ideais negros.

Interessante colocarmos essa questão para Erica, pois seu mandato é muito pautado pela ideia do quilombo e da vivência dos negros nos dias de hoje.

A ideia do nome para “Aparelha Luzia” remete a um passado nem tão distante assim. Aparelhos eram apartamentos ou casas onde ativistas que resistiam à Ditadura Militar brasileira se encontravam de forma clandestina, faziam reuniões ou se refugiavam. 

Luzia, por sua vez, é o nome do fóssil mais antigo já encontrado na América, datado em cerca de 13.000 anos. Descoberta em Minas Gerais, a “relíquia” trazia traços e fenótipos negros muito antes do início do tráfico de escravos por aqui, no século XVI.

Então é extremamente importante e estou muito feliz de isso ter efeito, de se entender o que significam essas narrativas, o que significa essa construção de luta política que, ao que parece, é muito diferente do que a gente viu até então na história da política brasileira.

Mandata

Sua essência política não é distinta da Erica pernambucana para a Erica paulistana. Seus ideais como pessoa não são separados dos ideais políticos que almeja para toda a população.

Erica se destaca na Alesp como a primeira parlamentar trans na história a entrar na Assembleia Legislativa. Na Bancada Ativista temos Erika Hilton, codeputada estadual[2].

O Brasil lidera o ranking do país que mais mata transexuais no mundo, segundo a ONG Transgender Europe[3]. Essa posição vem consecutiva desde 2016, contabilizando 369 homicídios até então.

Para Erica isso não significa privilégio e sim conquista de uma luta que é coletiva, de um movimento de resistência que sofreu muito no passado com o preconceito.

Em sua mandata na Assembleia, Malunguinho protocolou o projeto de lei nº 491/2019, que expande o programa TransCidadania de empregabilidade para todo o estado de São Paulo.

No meio de nossa coletiva de imprensa, a entrevistada teve que dar uma pausa para acompanhar a discussão desse projeto para a expansão do TransCidadania[4], de sua autoria, na Comissão de Constituição e Justiça da Alesp.

Inserção na política

Erica ouve sobre política institucional desde muito nova. Seus avós e sua mãe tinham uma proximidade muito forte com esse meio. Eles não estavam dentro, participando, mas entendiam como um espaço importante de reivindicação, crítica, pensar a sociedade e pensar a sua realidade vivida.

A palavra privilégio não pode ser colocada para algumas pessoas, o nome disso é conquista. Privilégio tem em quem nasceu, criou-se a partir das óstias da normatividade e no sentido de se ter benefícios disso tudo. No nosso caso foram conquistas, eu não me sinto privilegiada!

Nesse contexto, relembra a época das eleições diretas em 1989, após a Ditadura Militar brasileira, que brincava com os seus amigos simulando uma disputa eleitoral ao vivo (na época, os dois candidatos eram Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Mello).

A lógica da política brasileira é muito transferida, tal qual as capitanias hereditárias que, não compreende por exemplo, uma coisa essencial que é a política que se dá na dimensão da interferência do corpo no mundo … têm corpos que já são políticos, um corpo negro é um corpo político por si só (por ele estar vivo e presente), um corpo LGBTQ, um corpo de uma mulher cisgênero … tudo que distoa da estrutura normativa está construindo e fazendo política.

Não consegue dizer quando exatamente teve que mudar o seu rumo para entrar na política, afirma que essa mudança veio com o tempo, com sua trajetória de vida, de sua família e viu a necessidade de mudar, de fazer algo radical em prol de seu povo, como ela bem coloca.

Seu trabalho na Alesp

Em seu primeiro ano de trabalho como deputada, Silva já enfrenta alguns percalços pelo decorrer do caminho. Em abril deste ano, um deputado criou um projeto de lei que excluía a possibilidade de pessoas trans estarem em práticas esportivas profissionais, sob o argumento de que existe uma desvantagem biológica das pessoas cisgênero em relação às pessoas trans, no caso das mulheres trans para as mulheres cis.

Na situação em que o projeto foi protocolado, Erica subiu à tribuna e falou sobre sua trajetória e experiência de vida, como exemplo contrário. Porém, um terceiro deputado protestou “Vim aqui elogiar o projeto do deputado, porque para mim não importa se a pessoa tirou ou colocou o que quiser, é um absurdo, esse país está uma vergonha … no Centro Cultural existem banheiros para mulheres cis e trans … e se uma mulher trans ou travesti estiver no banheiro junto com a minha mãe e minha irmã, eu tiro na porrada e chamo a polícia em seguida”.

Outros deputados, inclusive do mesmo partido, se posicionaram de forma adversa à sua fala. Pessoas do movimento LGBTQ se uniram para expor sua orientação sexual, quando o parlamentar decidiu pedir para outra deputada falar em seu nome, se redimindo de seu ato e justificando à sua homossexualidade.

É essa política que me leva a estar nesse lugar, então eu estou sistematizando essa política que parte deste corpo — cultura para a institucionalidade — e obviamente esse corpo cultura é um corpo sensível, aberto e pensante em princípios e fundamento, em tudo isso que faz esse corpo ser esse corpo.

Mesmo sendo apenas um caso que tenha sido explícito, Erica afirma sofrer com certas rejeições dentro da casa. Embora seja uma parlamentar, seu sofrimento é coletivo pela sociedade.

Existem pessoas aqui que falam que não tem preconceito, porque me deram um beijo no rosto e apertaram a minha mão … eu não me afeto individualmente com isso, mas me sinto triste e atacada de forma coletiva.

Mandata quilombo

Mandata quilombo remete ao seu gabinete que é composto majoritariamente por assessoras parlamentares mulheres cis e transexuais e uma forte rede de atenção ao público negro, como já vimos em exemplo prático, o Aparelha Luzia. Aponta também, ser uma forma de reconstruir a linguagem por outros caminhos, para representar e alcançar o seu público.

Se a gente está falando de representatividade, foi mais que uma obrigação eu estar aqui dentro. Eu me sinto normal, é uma continuidade de uma narrativa histórica.

Filiada ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Erica confessa que existem problemas estruturais em seu partido, como em qualquer outro, por isso a necessidade de estar sempre presente e se fazer presente nos parlamentos.

Malunguinho acredita numa sociedade mais plural e mais visionária em seus princípios. Espera que todo esse quadro atual um dia mude, com novas candidaturas femininas e LGBTQ, criando estratégias, para essa construção de identidade ser contínua e crescente.

O PSOL é, sem dúvida alguma, o melhor partido para que a nossa candidatura e nossa mandata estejam presentes. Entretanto, há percalços em questões raciais e de sexualidade que dificultam os trabalhos, mas isso acontece em todos os partidos, é um problema estrutural mesmo. Mas, eu não iria para outro partido que não estivesse ligado a essa esfera política, do que a gente entende como esquerda no Brasil, por princípios e fundamentos … embora acredito que, no Brasil, não existe uma esquerda de verdade ainda, está num processo de construção … o que se tem hoje é a continuidade e a elaboração construídos no ocidente, sobretudo na Europa, e nós adaptamos à realidade brasileira.

Com toda essa intensa história de Erica, seu desejo é o de que as pessoas queiram e olhem para o amanhã, para construir pontes e teias.


[1] O quilombo do Catucá margeava a fronteira agrícola da zona da mata norte, quase subúrbio do Recife. Seu início é incerto mas suspeita-se que foi a partir da revolução de 1817 e, posteriormente, durante a Confederação do Equador em 1824, que muitos escravos se esconderam nas matas.
[2] Codeputados fazem parte de um mandato compartilhado, contendo mais de uma pessoa para trabalhar no legislativo, mas formalmente, apenas um integrante do grupo tem seu registro eleitoral e foto na urna, já que a Justiça Eleitoral ainda não aceita candidaturas coletivas. Em São Paulo, na Assembleia Legislativa temos a Bancada Ativista, representada pela parlamentar Mônica Seixas.
[3] ONG Transgender Europe (TGEU) é uma organização baseada em membros criada em 2005. Desde então, seu crescimento foi contínuo e se estabeleceu como uma voz legítima para a comunidade trans na Europa e na Ásia Central, com 112 organizações em 44 países diferentes. Hoje, a TGEU tem um escritório em Berlim, Alemanha, além de uma equipe de 10 membros da equipe e um Comitê Diretor.
[4] O Projeto Reinserção Social TransCidadania, criado em 2015 pela Prefeitura de São Paulo, é um programa que promove a colocação profissional, reintegração social e resgate da cidadania para pessoas trans (travestis, mulheres transexuais e homens trans) em situação de vulnerabilidade, acompanhadas pela Coordenação de Políticas para LGBT, órgão da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania.

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Crédito da imagem: Autora/Entrevistada

Capítulo do livro: Privilégio ou luta? A história de mulheres que não deixaram o seu sonho morrer

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