Dos campinhos de futebol no interior de Minas às maiores maratonas do mundo

publicado na Ed_11_abr/jun.2019 por

Ninguém vira maratonista da noite para o dia. Não basta simplesmente querer, cal­çar um par de tênis e sair correndo até completar os 42.195 metros daquela que é considerada mais nobre prova de atletismo dos Jogos Olímpicos. Embora te­nha pesquisado bastante sobre o tema, não consegui localizar dados oficiais que confirmem uma estatísti­ca que enche de orgulho os corredores que já comple­taram esta marca e que foi citada pela escritora e de­signer Letícia Genesini em um texto publicado pelo portal Torcer Pelo Esporte[1] no final de 2014: o título de maratonista seria uma glória restrita a apenas 1% da população mundial.

Este livro tem como personagem central al­guém que encontrou nesta prova o grande instru­mento para uma vida saudável, ativa, intensa e reple­ta de aventuras e emoções. E isso mesmo depois de já ter ultrapassado a casa das seis décadas.

Antes, porém, de contar as façanhas esportivas deste homem que desafia o tempo – literalmente – e a tendência natural da fisiologia humana, vou tentar resumir a sua traje­tória até os primeiros passos na corrida de rua, que se deram apenas aos 41 anos. Para isso, vou recorrer às informações que ele mesmo me repassou em uma entrevista de aproxi­madamente duas horas, concedida no dia 21 de setembro de 2017. Ali, eu recebia o sinal verde para este trabalho, ao perceber que se abriam para mim não apenas a porta de um belo apartamento, mas, sobretudo, o coração e as histórias do proprietário daquele imóvel.

Primogênito dos quatro filhos varões criados com muito sacrifício por Francisca Maria Martins da Silva, Nilson Paulo de Lima é mineiro de Ituiutaba e nasceu no dia 24 de janeiro de 1953. Do genitor, sabe apenas o nome: Cicero Paulo Lima.

“Tenho três irmãos mais novos: Nivaldo, Neroaldo e Nilton. Eu era criança quando minha mãe se separou do meu pai. Então, na verdade, nem o conheci e sequer tenho o nome dele nos meus documentos. Vivi na infância e na adolescência com ela, que fazia as duas funções: mãe e pai. Sempre foi do lar e depois passou a ter um comercinho, mas vivia voltada aos serviços de casa e fazia bicos de doméstica. Era uma luta para criar os filhos e nós sempre tentávamos ajudar, mas ela nunca deixou de se preocupar com o nosso estudo também. Por isso, conciliávamos o trabalho com a escola. Era até uma questão de sobrevivência. Sinceramente, não consigo voltar ao meu passado e lembrar de uma idade qualquer em que eu não estava envolvido, de alguma maneira, trabalhando ou fazen­do alguma coisa além de estudar.”

Foto 1 - Nilson só possui uma foto antiga de sua mãe, que também fez as vezes de pai para ele e os irmãos (crédito: “arquivo pessoal”) 

Morou pouco tempo em Ituiutaba. Praticamente toda a infância e o começo da adolescência foram passados numa ci­dadezinha ali perto chamada Ipiaçu, onde ficou até por volta dos 14 anos. Não guarda fotos daquela época, só que guarda nas lembranças que foi lá que conheceu a sua primeira paixão esportiva, o futebol. Nilson comenta que foi o único dos quatro irmãos a se interessar pelo “esporte bretão”.

Foto 2 - Registro do casamento de Nilton, o irmão caçula: aqui, Nilson Lima aparece sentado, à direita (crédito: “arquivo pessoal”)

As aulas de Educação Física eram as suas prediletas na es­cola e chegou a disputar campeonatos amadores. De menor estatu­ra que os colegas de time, veloz e com muito fôlego, jogava no meio de campo e era um dos responsáveis pela criação das jogadas, mas também não se furtava a voltar para ajudar no trabalho de marca­ção aos adversários. Garante que dava conta do recado direitinho, só que nunca cogitou se tornar um futebolista profissional.

Crescendo durante os anos que marcaram a fase áurea do Santos Futebol Clube, tornou-se torcedor do alvinegro praia­no e buscava justamente nos craques da Vila Belmiro a inspira­ção para o seu estilo de jogo.

“Pelé e Ayrton Senna foram os meus grandes ídolos no esporte e também referências que sempre tive como pessoas. Com relação ao futebol, quando se é criança ou adolescente, nor­malmente são duas as formas que podem definir a escolha por um time: a influência da família, o que não foi o meu caso, ou conforme a equipe que está em evidência naquele momento que você está entendendo do esporte. Na minha época, era o San­tos, do Pelé. Nunca consegui torcer para um time grande de Belo Horizonte, mesmo sendo mineiro e morando a vida toda em Mi­nas. Torço para o Santos e para o Uberlândia Esporte Clube, que é daqui da cidade. Quanto à minha inspiração como jogador, o Pelé era a principal estrela, mas aquele time tinha outros grandes craques. Eu admirava muito, por exemplo, o Clodoaldo. Ele não aparecia muito e ficava na criação, ‘carregando o piano’.”

E foi justamente o futebol que se encarregou de levar o jovem Nilson àquela que seria a cidade onde ele criaria raízes e se transformaria em referência esportiva. Primeiro, veio um período de dois anos em Junqueirópolis, no interior de São Paulo, trabalhando em uma rede de lojas especializada em tecidos a convite de um amigo que o conheceu nos campinhos de Ipiaçu.

Entre as tarefas sob responsabilidade do rapaz, estava viajar para Minas Gerais e comprar produtos para a loja. Missão importante e delegada a alguém de confiança. Isso chamou a aten­ção de uma destas fornecedoras, a Tecidos Tita. A proposta de um novo emprego não tardou; desta vez, no Triângulo Mineiro. E o esporte também cuidou de conduzir o “uberlandino” – como são apelidados os moradores de Uberlândia que não nasceram no mu­nicípio – ao emprego ao qual dedicou mais de 35 anos.

“Vim para a Tecidos Tita em 1970 e trabalhei na empre­sa por cerca de dois anos. Em agosto de 72, fui contratado pelo Armazém Martins, sendo que, mais uma vez, o pontapé inicial ocorreu por causa do futebol. O gerente, conhecido como Zanata, foi quem me levou para lá. Nossa amizade começou e se fortale­ceu nos ‘rachinhas’ que jogávamos no Praia Clube e no Uberlân­dia Tênis Clube (UTC). Passei praticamente toda a minha vida profissional no Martins. Fiquei na empresa até 2008 e sempre participava dos eventos esportivos, principalmente os de futsal.”

Fotos 3, 4, 5 e 6 - Nas décadas de 80 e 90, Nilson era presença certa nos campeonatos de futsal do Grupo Martins (crédito “Fotos: arquivo pessoal”)

 

Foto 7 - Meio-campista, ele também desfilava talento em vários gramados, inclusive o do Parque do Sabiá (crédito: “arquivo pessoal”)

Foto 8 - Alexandre e Fernando Pires convidaram Nilson Lima e o cantor Fagner para um jogo festivo (crédito: “arquivo pessoal”)

Uberlândia representou um marco na vida profissional e também na familiar. Foi na maior cidade do Triângulo Minei­ro que Nilson Lima se casou com a cunhada de um colega de trabalho, Nadia Maria Fernandes, em 1980. O relacionamento durou 22 anos e trouxe três frutos, na seguinte ordem: Claudia, Tatiana e Simone.

Foto 9 - Início dos anos 90: viagem ao Rio de Janeiro com as filhas teve passeio no Corcovado (crédito: “arquivo pessoal”)

A primogênita completou 37 anos em 2018 e trouxe ao mundo em fevereiro de 2017 Antônio, o único neto de Nilson. Ofi­cial de Justiça do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e atualmente residindo em Teófilo Otoni, Claudia é só elogios ao genitor:

“Ele é um pai bastante amoroso e participativo. Meus pais se separaram duas vezes e, em ambas, eu e minhas irmãs fomos morar com ele. Acho que todo mundo tem seus momen­tos de raiva e explosão. Com ele, não é diferente, mas são pou­cos os momentos assim. No geral, é uma pessoa bastante tran­quila e que faz tudo para que uma briga não aconteça. Sempre foi assim; até mesmo na questão de interferir nas brigas entre as filhas. Ele é bastante apaziguador. No papel recente de vovô, tem se mostrado bem ‘babão’, todo empolgado e entusiasmado com o neto e sempre disposto a brincar e fazer as coisas com ele. Definitivamente, energia é o que não falta para o meu pai.”

Foto 10 - Antônio pode contar com um avô materno sempre disposto a passar muito tempo brincando (crédito: “arquivo pessoal”)

Claudia acredita que herdou um pouco desta disciplina que Nilson demonstra em relação ao esporte. No caso dela, é para outros assuntos. “Até cheguei a praticar várias modalidades, mas depois que saí da faculdade acabei relaxando e agora, também por conta da rotina de mãe, não tenho feito nada”, admite.

Perguntada sobre os defeitos do pai, ela aponta a distra­ção como o mais relevante: “Ele sempre foi bem distraído com as coisas, o que, às vezes, me deixa um pouco insegura, porque meu filho passa um tempinho com o avô. Eu fico com o coração na mão, preocupada se ele está fazendo tudo direitinho, se está vigiando, prestando atenção na criança.”

Peço licença, porém, para deixar um pouco de lado o tema “família” e voltar a falar sobre o foco deste livro: o atleta Nilson Lima. Foi no ano de 1994, aos 41 anos, que ele tomou a decisão de trocar o futebol pela corrida de rua. Por conta dos riscos de lesões que o futebol oferecia, preferiu não abandoná-lo definitivamente. Ainda segundo ele, os principais objetivos desta substituição no hobby esportivo eram a perda de peso e melhorias na saúde e na qualidade de vida.

O começo na nova modalidade foi tímido e despreten­sioso. Primeira meta: conseguir dar uma volta correndo na pista de 5 quilômetros em torno do Parque do Sabiá, principal car­tão-postal uberlandense. Nilson se recorda que, apesar de ser bem condicionado fisicamente por conta do futebol, levou um tempinho até conseguir cumprir esta distância sem precisar re­correr a alguns trechos de caminhada.

Cumprida a primeira missão, o novo sonho a ser alcança­do passou a ser uma medalha da tradicional Corrida Internacio­nal de São Silvestre, realizada sempre no último dia do ano, em São Paulo. Para tal, seria preciso mais do que triplicar a distância.

Pois no dia 31 de dezembro de 1995 o mineiro se via pela primeira vez no meio daquela multidão de anônimos encaran­do a temida subida de dois quilômetros na Avenida Brigadeiro Luís Antônio e cruzando a linha de chegada na Avenida Pau­lista. Gostou tanto da experiência que voltou em 96. E em 97. E também em 98. E em vários outros anos seguintes. Não pôde ir em 2010, devido a uma viagem aos Estados Unidos. Mas em 2015 estava de volta mais uma vez para buscar a sua vigésima medalha na prova mais famosa do atletismo brasileiro.

Foto 11 - Momentos de descontração sempre foram constantes nas viagens para as primeiras São Silvestres (crédito: “arquivo pessoal”)

Foto 12 - Participar da tradicional prova de 15 km era o grande sonho de Nilson quando começou a correr (crédito: “arquivo pessoal”)

São Paulo, de fato, é uma cidade que tem um significa­do especial na trajetória esportiva do hoje consultor financeiro Nilson Paulo de Lima. No dia 17 de maio de 1998, então com 45 anos de idade, ele completou na maior cidade do Brasil a sua primeira maratona. Uma longa e sofrida jornada que durou exatamente 4h17min04s e que deixou lembranças que Nilson descreve em detalhes duas décadas depois:

“O meu desejo era apenas concluir aquela prova. Que­ria, de alguma forma, chegar ao final dos 42 quilômetros. Por mais que tivesse treinado e me preparado para isso, como eu até então fazia corridas de no máximo 21 km, o que importa­va era somente cruzar a linha de chegada. Daí eu me poupei muito e segurei o ritmo na primeira parte da maratona. Lem­bro direitinho que procurava correr na grama para poder guar­dar energia, pois sabia que lá na frente viria uma conta. Numa destas de correr na grama, passei por trás de um policial que estava segurando um cachorro; o animal avançou em mim e mordeu na minha mão. Foi um ‘perrengue’ até chegar ao final. Outro detalhe é que tinham divulgado que haveria distribuição de frutas no campus da Universidade de São Paulo (USP) e eu estava nesta expectativa, mas fui tão lento que, quando cheguei lá, já não tinha mais nada; só sobraram as cascas das melancias jogadas ao chão. Então, foi uma prova marcante em todos os sentidos… (risos)… Cheguei prometendo para mim mesmo que iria voltar a correr as minhas meias maratonas e nunca mais fa­ria uma maratona. Só que esta promessa durou pouco tempo.”

Durou precisamente um ano e seis dias. Em 23 de maio de 1999, Nilson correu novamente a Maratona de São Paulo, desta vez baixando da marca das 4 horas: 3h49min02s. O tal “mosquitinho da corrida” havia feito outra vítima. E esta, cada vez mais sedenta por desafios e recordes pessoais.

Vieram mais duas maratonas naquele ano, ambas na Região Sul. Em 18 de julho estreou na Maratona de Blumenau (SC) e cravou 3h12min09s. Nada mal para um novato! Pois o mais impressionante ainda estava por vir: no dia 21 de no­vembro fez na Maratona Ecológica Internacional de Curitiba aquele que até hoje é o seu melhor tempo em uma prova de 42 quilômetros: 3h00min02s.

A marca significa que cada quilômetro foi percorrido pelo mineiro em um tempo médio de 4min16s – o equivalente a uma velocidade de 14 km/h. Segundo ele, este resultado gerou um misto interior de felicidade e frustração: “Infelizmente, esta prova não tinha chip e este foi o meu tempo bruto no resultado oficial dela[2]. Então, ficou o sentimento de uma marca abaixo de 3 horas, mas sem o devido registro.”

Uma maratona em 1998, três em 1999, mais duas em 2000 e em 2001, uma em 2002 e cinco em 2003. A longa prepara­ção e as corridas desta distância já faziam parte da rotina do mi­neiro e ele decidiu que já estava na hora de buscar desafios fora do território nacional, a partir de 2004. A Maratona das Águas, em Amparo (SP) – no dia 21 de março –, e a Maratona de Porto Alegre (RS) – em 23 de maio – foram os aperitivos para a sonha­da 17ª maratona, em Nova Iorque. “É uma festa maravilhosa e glamorosa, com gente de todas as partes do mundo. Todos que gostam de correr deveriam tentar esta experiência”, resume.

Após 3h41min51s de jornada entre a Ponte Verrazano e o Central Park, eis que o atleta identificado com o número 2898 cruzava a linha de chegada. Foi o 4.279º colocado entre os 36.562 homens inscritos na tradicional prova, uma das seis do Circuito Majors, que reúne as maratonas mais importantes do planeta – as outras cinco são as de Berlim, Boston, Chica­go, Londres e Tóquio.

Começava ali, naquele 7 de novembro de 2004, a carrei­ra de maratonista internacional de Nilson Paulo de Lima.

Foto 13 - Diante da Estátua da Liberdade, Nilson Lima não poderia imaginar quão longe o esporte o levaria (crédito: “arquivo pessoal”)
[1] Fonte: https://www.torcerpeloesporte.com.br/blog/42195km – Nota do autor: tentei entrar em contato com Letícia Genesini para checar como e onde ela obteve esta informação estatística, porém não obtive sucesso.
[2] Link para o resultado da Maratona Ecológica Internacional de Curitiba de 1999: http://www.totalsport.com.br/corrida/cr211199.txt

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Crédito das imagens: Diversos, atribuídos em legenda

Capítulo do livro:No caminho eu conto: a trajetória que transformou Nilson Lima em homem-maratona

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