Negação

publicado na Ed_11_abr/jun.2019 por

Era 26 de outubro de 2018. Acordei cansado naquela sexta-feira, pois tinha passado por uma semana cansativa com os meus compromissos. Entretanto, Letícia, 20 anos, me aguardaria na Rua Pamplona, 518, às 13h, para conversarmos sobre a sua experiência com a morte. Por isso, eu não podia deixar o cansaço prevalecer.

Após enfrentar o trânsito da Avenida Tiradentes, saindo do bairro de Santana sentido Avenida Paulista, chego ao endereço combinado às 12h26. Aproveito para enviar uma mensagem para Lê avisando que estava pronto para nos encontrarmos.

Cinco minutos depois, ela adentra o prédio e subimos conversando até o 4º andar. Deixo minha mochila no armário da empresa, pego meu crachá e descemos para a recepção. Para ter um local adequado à nossa conversa, nos dirigimos ao shopping em frente e sentamos em uma mesa do Starbucks.

Após uma rápida conversa para descontrair, questiono-a sobre como foi a sua experiência de perda. Então, a jovem inicia a sua história.

A família de Letícia

A família de nossa protagonista é composta por sua mãe, Tânia, uma irmã mais nova, Beatriz, seus avós, Darci e Antônio, e três tios — Fábio, Julio e Felipe, do mais velho para o mais novo.

Toda a sua família, originalmente, é de Osvaldo Cruz, cidade interiorana de São Paulo, e, no começo, sua mãe e seu pai vieram para a capital em busca de novas oportunidades de trabalho.

Após estar há alguns meses na cidade grande, Tânia prosperou, enquanto seu pai, não. Como consequência, muitas brigas entre os dois foram iniciadas até que, em dado momento, o casal decidiu se separar. Lê, então, tinha seis anos de idade.

A partir desse momento, os tios de Letícia sempre estiveram muito presentes na vida da jovem. Eles foram as figuras masculinas que compuseram o seu crescimento.

— Desde essa época eu sempre tive meus tios muito presentes. Eles eram as minhas figuras paternas, as minhas figuras masculinas em casa — conta a jovem.

Ela caracteriza seus tios como sendo mais ciumentos do que a própria mãe. Eles a acompanhavam na escola, ajudaram-na a estudar para a faculdade e sempre estiveram presentes quando ela necessitava.

Hoje, Letícia não tem mais contato com o pai. Os dois brigaram quando ele arranjou uma namorada que mostrou desprezo por suas filhas. O ciúme é tão grande, que ela obrigou o pai da jovem a apagar o telefone e o perfil do Facebook da filha mais velha. Por fim, seu pai acatou as ordens de sua nova namorada, largou tudo que tinha no Brasil e foi morar com ela em Portugal.

— Eu não tenho contato com o meu pai e eu realmente não faço questão, não é algo que me faça falta. Porém, minha irmã ainda tem contato com ele.

Beatriz, por ser mais jovem e ter apenas 17 anos, ainda recebe pensão alimentícia e, por isso, ela mantém contato com o pai.

Fábio e Letícia

— Ele era muito protetor. Era meu pai. — Afirma Letícia ao comentar sobre Fábio.

O time pelo qual Letícia torce hoje, Corinthians, foi determinado pela convivência com seu tio. Ele, de fato, exercera uma influência na vida da sobrinha que, sem a figura paterna, precisaria de uma figura masculina para suprir a perda.

Eles eram muito próximos e amigos. Letícia afirma que conseguia conversar com ele sobre tudo.

— Foi ele que tentou me ensinar a andar de moto, mas não deu certo — conta a jovem, com certa felicidade.

Fábio era o verdadeiro irmão camarada de Letícia. Os dois saiam, por exemplo, para comerem uma porção de batatas fritas e jogarem conversa fora, passeavam e se divertiam ao longo dos tempos.

— Não sei se era exatamente uma relação de pai e filha, mas sim, talvez, de um primo bem mais velho. Ele cuidava realmente de mim.

Seu tio era o seu grande apoiador. Quando decidiu estudar na faculdade Cásper Libero, ele foi o primeiro a motivá-la. Além disso, qualquer coisa que Lê quisesse ele dava um jeito de arranjar, nem que fosse uma sapatilha.

O caminho para a morte

Seu tio Fábio era um empreendedor em crescimento. Após estudar TI na faculdade de Marília, ele desenvolveu um sistema que não só tornava possível, como também aperfeiçoava o funcionamento do mercado de Osvaldo Cruz. Uma vez que começou a ganhar dinheiro com seu sistema, seu tio iniciou seus investimentos em algumas empresas, tornando-se sócio delas. Em suma, ele começou a crescer na pequena cidade e a rentabilidade de seus negócios só aumentava: o seu sucesso financeiro era cada vez mais notório.

Entretanto, no auge dos seus 35 anos, descobriu que tinha câncer no rim e, apesar da notícia, decidiu fazer vista grossa para o acontecimento. Ele afirmou que não operaria ainda, mas sim que esperaria, pois ele se sentia bem, não tinha dor e deu pouca importância para os exames.

Sua negligência lhe custou caro: quando Fábio começou a sentir a dor do câncer já era tarde demais. Seu estágio estava avançado e a doença havia se espalhado pela corrente sanguínea.

A família de Leticia não lhe contava o que estava acontecendo e impedia que a jovem visse seu tio nos momentos mais conturbados da doença.

Fábio não queria que sua sobrinha lhe visse mal e, no dia a dia, brincava com ela e afirmava que estava bem.

— Ele era meu tio e se ele falava que tava bem, era porque estava bem.

A jovem, então, entrou na faculdade e, nessa época, Fábio começou a ir atrás de tratamentos alternativos para o câncer.

Tânia, segundo Letícia, era a mais apegada dos irmãos com Fábio. Por ser a irmã mais velha e ele ser o segundo na linhagem, ela sempre procurou cuidar bastante do irmão:

— Ela foi para a faculdade com ele, cresceu com ele. (…) Minha mãe ficou muito em cima: ligava bastante, perguntava como estava se sentindo e mandava tratamentos para ele se cuidar.

Sua mãe fora a mais empenhada no processo de tratamento do câncer de Fábio. Ela pressionava o irmão, dia após dia, para que ele fosse atrás de cuidados médicos e não negligenciasse mais a doença que tinha.

— A minha mãe, junto com a minha avó, ficaram mais atentas a ele. Tentaram trazê-lo para São Paulo, porque aqui a tecnologia é melhor, e no interior não tem nada — lembra Lê.

Apesar de todo o esforço, Fábio apenas viajou para São Paulo nos últimos meses de vida para tentar reverter o quadro.

As perdas

Por ser um empresário bem sucedido, Fábio tentou de tudo um pouco. Desde tratamentos simples até os mais complexos, com os maiores e melhores profissionais do Brasil. Entretanto, apesar de todo o dinheiro de que dispunha, sua luta contra o câncer não foi o suficiente.

— Ele passou por um processo canceroso e tudo o que podia fazer, fez — conta com tristeza — Meu tio tomou a pílula da USP (pílula do câncer) e chegou a melhorar rapidamente, mas, em seguida, desandou tudo de novo.

Quanto mais caminhava para a morte, mais Fábio apresentava a piora dos sintomas. Letícia busca a memória dolorosa:

— Ele tinha muitos tumores, que eram grandes. Quando você olhava pela camiseta, dava para ver na barriga dele as bolas.

Quando completou 40 anos, Fábio fez uma grande festa, com o tema preto e branco, na qual toda a cidade de Osvaldo Cruz compareceu devido à sua popularidade.

Exatamente um ano depois, em seu aniversário seguinte, ele já não tinha mais forças para cortar o próprio bolo.

Letícia conta que seu tio não tinha mais força para abrir uma garrafa, para levantar um copo e, cada dia mais, piorava.

Enquanto estava mal, durante os finais de semana e feriados, a família se deslocava de São Paulo até Osvaldo Cruz para poder passar um tempo junto de seu tio.

— Era muito cansativo viajar oito horas de carro até lá. Como eu não acompanhava meu tio diariamente, para mim foi muito perceptível o cabelo dele caindo, quase todo branco e sua magreza extrema — conta com pesar.

Seu definhamento foi originário da doença, mas, principalmente, após ter feito uma quimioterapia. A família não tem certeza qual dos dois fatores influenciou mais, mas ambos contribuíram.

Em dado momento, durante um feriado em São Paulo, a família foi para Osvaldo Cruz e Fábio estava careca, magro e cansado. Seu corpo se deteriorava por dentro, inclusive, produzindo um odor de podridão que era perceptível por quem se aproximasse. Seu maior desejo era se matar, pois não aguentava mais viver naquela situação. A partir daquele ponto, Tânia informou às filhas que as duas não participariam mais daquele cenário.

— Minha mãe falou para mim e minha irmã que não tínhamos que ver aquilo, mas sim que deveríamos guardar as boas lembranças dele.

A jovem conta que seu tio lhe abraçou, agradeceu por ela ter ido visitá-lo e disse que sentia a sua falta.

— Acho que foi aí que caiu mesmo a ficha: quando a minha mãe falou que o estágio em que ele estava não seria legal para mim e minha irmã acompanharmos. E que, dali em diante, não o veríamos mais. Foi a última vez que encontrei com ele — relata, com a voz chorosa.

Uma semana após esse episódio, seu tio foi internado em um hospital em Barretos e apenas Tânia ia visitá-lo. Darci e a esposa de Fábio ficaram ao seu lado até os últimos minutos. Até que ele partisse.

Letícia relata que tudo aconteceu muito rápido e que, em questão de um ano, seu tio viria a falecer quando tinha 41 anos.

Como se não fosse difícil o bastante ter perdido um dos homens que inspiravam Letícia, três meses após a primeira morte, seu segundo tio também veio a falecer.

— Três meses depois eu perdi meu segundo tio, o Felipe. Então foi um fato que mexeu bastante e até hoje mexe comigo.

Ele era o tio mais novo de Letícia. No caso, mais novo do que a própria jovem: ele tinha 14 anos e ela, 18.

Lê conta que Felipe era um jovem atleta: corria sem parar e se exercitava diariamente. As ruas em Osvaldo Cruz são muito calmas e, dentre elas, há uma estrada em que Felipe caminhava sempre. Um dia, enquanto caminhava com alguns amigos, um carro atropelou ele. Um senhor, que tinha passado mal no volante, acabou acertando o jovem em cheio e o matou na hora.

 Vida após a perda

A primeira perda, porém, foi a mais marcante, pois o processo canceroso se estendeu por muito tempo e Fábio ajudou a criá-la. Seu tio morreu na sexta-feira e seu velório se deu no sábado, dia esse em que Letícia teria prova na faculdade.

No dia em que recebeu a notícia, a jovem estava atuando em um trabalho da faculdade e, ao chegar em casa, sua mãe lhe deu a notícia.

— Olha, Lê, seu tio faleceu e a gente sabia que isso ia acontecer. Agora, precisamos ir lá — disse sua mãe.

A moça, então, faltou na prova que teria, pegou uma muda de roupa e partiu para a estrada como se nada tivesse acontecido e fosse apenas mais uma ida para visitar seu tio.

Seu pai, nesse momento, tentou se aproximar, mas Letícia não quis.

— Meu pai é uma pessoa complicada e, se deixar levar tanto por uma mulher, como ele fez com a namorada, não faz sentido para mim. Acho chato uma mulher querer competir com duas meninas que são filhas dele. Foi uma opção minha não querer ter contato com eles.

Em seguida, a jovem compartilha mais uma memória terrível:

— Quando eu cheguei lá e vi o corpo, ele não era mais meu tio. Ele estava todo deformado.

Como Fábio era uma pessoa influente na cidade, tinham várias rosas e muitas pessoas presentes. Durante o velório, Letícia não demonstrou reação até o momento em que fecharam o caixão e começaram a levar o corpo para enterrar. Nesse momento a jovem não suportou e começou a chorar: as lágrimas escorriam por suas bochechas.

Já no velório seguinte, do tio muito mais jovem, Felipe, que ocorreu três meses depois, Lê comenta que foi quando percebeu o que tinha ocorrido.

— Foi aí que eu percebi que acabou. A minha família, que antes era grande e eu tinha um monte de gente que podia ligar e conversar, agora eu não tinha mais.

Ela tinha três tios e ficou com apenas um. A ficha então caiu — tanto da morte de Fábio quanto de Felipe — e ela entendeu o que tinha acontecido.

A jovem se questionou, por diversas vezes, a respeito de quais seriam os possíveis cenários se Fábio tivesse procurado ajuda mais cedo, mas não obteve respostas para as suas perguntas.

Ela nunca tentou trocar a morte de seus tios por outras vidas. Sempre acreditou que tudo acontece por um motivo e, por isso, nunca questionou.

De Felipe, por outro lado, ela ficou com raiva do acontecido. Ele estava com um grupo de amigos mais velhos e um treinador que tinha mais de trinta anos.

— Eu fiquei pensando “por que o Felipe?”. Ele era muito novo, tinha 14 anos. Ele estava comemorando que tinha acabado de entrar no ensino médio e tinha uma vida pela frente. Era uma criança. Eu fiquei com raiva — afirma, com veemência.

Letícia deixa claro que sentiu raiva da situação e do motorista e se perguntou o porquê de ele estar a 80 km/h em vez de 50 km/h, que era o limite permitido. Talvez, se estivesse em uma velocidade mais baixa, Felipe tivesse sobrevivido à batida.

A negação da morte

Letícia relata que, ao chegarem ao velório de Fábio, o clima que predominava era negativo e pesado. Seus avós estavam mal: o avô, Antônio, tinha acabado de operar do coração e Letícia, durante esses momentos, ficou um pouco mais afastada.

— A minha mãe ficava o tempo todo querendo resolver tudo. Ela estava sempre presente, principalmente com os meus avós, e tentava chegar perto de mim. Mas eu preferi ficar mais fechada.

No entanto, apesar dessa sensação de negatividade, em verdade, parecia que tudo estava bem. Ela sentia que, em breve, acordaria e que seu tio estaria ali novamente e tudo ficaria normal.

Lê ficou desanimada, mas durante o final de semana restante e o feriado que se deu naquela segunda e terça-feira, ela assistiu séries na TV e continuou com o seu dia a dia. Para ela, nada tinha acontecido. Sentia que Fábio estava apenas internado e que, em breve, ele sairia do hospital.

A jovem conta que não queria acreditar que seu tio estava morrendo. Será que viveu um momento de negação profunda por conta da morte do tio querido?

— Sim. E durou muito tempo — afirma, sem pestanejar.

A negação se deu como uma verdade para Letícia. Ela não tinha noção de que fazia isso. A moça apenas acreditava que ele voltaria; afinal de contas, já tinha ido algumas vezes antes para o hospital.

Para complementar a sua fala, Lê comenta um detalhe sobre a sua relação com o tio:

— Ela era a pessoa com quem eu podia contar em todos os momentos. Independente se eu brigasse com a minha mãe, era com ele que eu ia conversar. Eu não queria mesmo acreditar.

A religião

Letícia afirma que é católica, meio espírita; porém, a religião não fez diferença em sua vida durante o luto. Sua mãe, por outro lado, se apoiou na religião para conseguir passar pelas perdas e, inclusive, tentou levar Letícia para a Igreja e afins.

— Eu acho que a psicóloga me ajudou muito mais.

Os avós de Lê, por outro lado, foram influenciados positivamente pela Igreja. Aposentados, Darci, ora recepcionista de hospital, começou a dar aula de catequese. E Antônio, ora mecânico, ajudava a vender produtos da Igreja para arrecadar fundos.

Ajuda psicológica

Ao longo dos dias, Letícia cumpria com seus compromissos antes da morte de Felipe, uma forma de negar que Fábio havia morrido. Mas, após a perda do seu segundo tio, a jovem ficava triste, chorava direto e, então, procurou a ajuda de uma psicóloga: descobriu que estava com depressão.

Após começar a terapia, Letícia afirma que melhorou. Ela tomou remédio para ansiedade e depressão — esse segundo, até hoje.

— A ajuda de uma profissional me proporcionou voltar a ter uma vida — comenta com firmeza.

A psicóloga lhe indicou que trabalhasse, pois isso ocuparia o seu tempo e lhe permitiria ter um espaço para ela própria. A jovem, então, começou um estágio em regime home office.

Além disso, indicou-lhe, também, que tivesse um animal de estimação, algo que Letícia, com avidez, cumpriu em dobro: hoje tem um cachorro e um gato.

— Ela falou que achava melhor eu ter uma companhia em casa enquanto ficava sozinha, pois eu me sentia muito mal durante esse período. Por isso, indicou que eu tivesse um animal de estimação.

Hoje Lê tem um vira-lata que veio de uma adoção que fizeram em Sorocaba e o gato de uma caixa de papelão que sua mãe encontrou perto de casa.

Letícia comenta que tem alguns dias que são piores do que outros, mas que, depois de um ano, ela melhorou bastante.

— Achei que os remédios no começo eram muito fortes e eu ficava dopada. Mas agora tudo se encaixou e está bem — afirma com clareza.

Hoje a jovem, ao lembrar-se das situações vividas e pela perda de seus tios, pondera que tudo podia ser diferente — talvez um resquício inevitável da negação pela perda de entes tão queridos.

Felipe poderia ter pensado em treinar em outro lugar, não estar lá naquele momento: assim, a situação poderia ser evitada. Fábio, por sua vez, poderia ter procurado um tratamento mais cedo.

Hoje ela conversa sobre o tema sem chorar.

— Acho que eu estou bem melhor.

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Crédito das imagens: Hiago Catirsi

Capítulo do livro:Luto: O processo após a morte de alguém querido

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