O começo da esbórnia

publicado na Ed_04_jul/set.2017 por

Final da década de 1970, em pleno auge do regime militar, diante da cortina preta de luto por uma democracia abafada por mãos e mentes acéfalas, respingadas com tons de vermelho-sangue da tortura inescrupulosa dos bota-pretas do governo João Figueiredo, surge um grupo de estudantes de jornalismo, de classe média, idade entre 20 e 23 anos, com o linguajar afiado e a revolucionária pretensão de musicar, de forma afrontosa, um dos piores momentos da história do Brasil.

Como ponto de encontro para as reuniões musicais, os corredores da faculdade Cásper Líbero, localizada no coração de São Paulo, na Avenida Paulista. A Cásper é conhecida também por integrar em seu prédio a rede de rádio e TV Gazeta.

“A tarefa da arte é introduzir o caos no homem’’, era a frase que se ouvia na sala de aula durante o quarto semestre de jornalismo da faculdade. Enquanto isso, três rapazes da mesma sala fugiam das aulas que retratavam a insatisfação do pensador alemão Theodor Adorno com a cultura popular para fazerem composições musicais que satirizavam o conturbado momento político vivido pelo Brasil. A ditadura imperava nas terras tupiniquins.

Mesmo que, curiosamente, a banda comece a contagem de seus aniversários no ano de 1980, as reuniões de Laert e seus Cúmplices, nome que a banda levava até ser batizada como Língua de Trapo, começaram em 1979.

A mudança de rumo surge quando, após uma votação na própria faculdade, o grupo de estudantes deixou de ser a banda de corredor com, nome esquisito, para tornar-se o Língua de Trapo.

— A banda nasceu na Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, em São Paulo. No início do ano de 1979, eu, Laert Julio P. J. Falci (Laert Sarrumor), Carlos Augusto Mastrodomenico (Guca Domenico) e Antonio Aquilino de Freitas Neto (Pituco) ingressamos para o curso de jornalismo na Cásper e logo nos primeiros dias de curso identificamos a predileção dos três por música e começamos a cantar e tocar informalmente nos corredores da faculdade. Em 26 de junho de 1979 acontece um sarau de música e poesia para lançar a revista literária dos alunos da Cásper, “Esquina do Grito”, e nessa apresentação surge o embrião do Língua de Trapo, com Laert e Guca apresentando músicas engraçadas. No meio do ano, entram para a faculdade Carlos Antonio de Melo e Castelo Branco (Carlos Melo) e Lizoel da Costa Leite (Lizoel Costa), e o grupo se consolida, apresentando-se no circuito universitário e em festivais de música, na capital e no interior. Em 1980, o grupo já era bastante conhecido no meio universitário, mas ainda não tinha um nome fixo.  Fizemos uma apresentação na Estação São Bento do metrô, em São Paulo, com o nome provisório de “Os Cúmplices”. Chegamos a promover um concurso na faculdade para batizar o grupo, mas não gostaram de nenhum dos nomes sugeridos. Foi quando o Carlos Melo, um dos compositores da banda, sugeriu “Língua de Trapo”, que é uma expressão antiga, que significa fofoqueiro, quem não tem papas na língua. A expressão é citada na letra da música “Dá Nela”, de Ary Barroso, que foi sucesso na voz de Francisco Alves, e que diz, no refrão: “Fala, Língua de Trapo, que da sua boca eu não escapo”. Durante um bom tempo, a banda utilizou essa gravação como prefixo, em seus shows. (Laert Sarrumor, vocalista e fundador do Língua de Trapo).

 — Nos conhecemos na sala de aula e – depois de uma proposta do centro acadêmico para alunos que tivessem interesse em exercer alguma atividade artística – resolvemos nos inscrever. E fomos lá: Laert, eu, Pituco e mais alguns colegas. Foi aí que demos início a esse embrião que com o tempo foi mudando os componentes. Até que sobrou o trio fundador da banda. A gente tocava muito no corredor da faculdade, o que fazia que houvesse grande interação dos alunos de outras salas. Foi o que nos deixou conhecidos, inicialmente, na Cásper. Íamos testando nosso repertório ali, ao vivo, com a resposta que as pessoas nos davam. (Guca Domenico, integrante e fundador do Língua de Trapo).

— Sempre disseram que eu era uma espécie B.Traven (pseudônimo de um enigmático escritor alemão) do Língua de Trapo. Aquele componente que aparece nos créditos do grupo, mas nunca é visto por ninguém. Já cheguei mesmo a ouvir, sentado anonimamente numa plateia de teatro, algo como: “o Carlos Melo não existe, é um pseudônimo do Laert Sarrumor”. De fato, não sou propriamente um artista de palco. Ao pé da letra, nem artista eu sou, se formos rigorosos com a terminologia. (Carlos Melo, compositor e fundador do Língua de Trapo).

Não demorou muito para o quinteto de veteranos agregar duas figuras importantes para a história do grupo. São eles os parceiros de composições: Ayrton Mugnaini Jr. e Cassiano Roda, que, mesmo sem fazerem parte da banda, integraram importantes composições ao conjunto. Ambos eram calouros de faculdade, e todos cursavam jornalismo.

No mesmo ano, 1980, sai do forno, em formato de fita cassete, o primeiro registro: Sutil como um Cassetete, material com baixa qualidade de áudio e nome sugestivo, que logo se tornara sucesso pelos corredores da Cásper Líbero e nas portas de shows feitos até 1981.

A fita cassete trouxe a primeira versão de canções posteriormente regravadas. É o caso de Insurreição Feminista, regravada em forma de sambarock para o álbum de 1992, Brincando com Fogo; Circular 46, regravada no Último CD da Terra (2016); dentre outras.

A fita contava com 14 faixas, divididas entre temas de críticas sociais que estavam em ascensão na época, como por exemplo: Ditadura militar, feminismo e sexualismo.

Por mais que cada um tivesse estilo próprio nas composições da banda, a base de referência era o movimento que vinha em plena ascensão no Brasil, a Jovem Guarda.

Os eventos da Cásper logo ficaram pequenos para os linguarudos e as festas de faculdades vizinhas, como PUC, Getúlio Vargas e USP, também já não comportavam mais o público que a banda levava a seus shows. Surgia então um desafio para os meninos: “onde vamos nos apresentar?’’. Não era fácil para uma banda com posicionamento político esquerdista tão forte se apresentar em plena ditadura militar.

— Apesar do humor, o termo esquerda festiva nunca se encaixou no nosso perfil. A gente era mais para a esquerda raivosa. Éramos muito irônicos, muito agressivos, muito assertivos nas nossas críticas. Batíamos forte. Apenas não estávamos atrelados a nenhuma ideologia política, nenhum partido nem nada. (Guca Domenico).

Já em 1981, com o sucesso instantâneo dentro das faculdades, a saída para a banda, que nunca poupou críticas ao sistema, era seguir a rota do underground. O caminho de nadar contra a maré estava eminente nas letras que faziam parte da fita cassete. Caso de Insurreição Feminista, sátira que relatava o apoio às feministas e ao movimento feminista, fervoroso na época: “As mulheres gritavam: lincha, esquarteja, retalha e pica!’’

Anos antes de Laert compor a música, acontecera o Bra-Burning (queima de sutiãs), movimento feminista que fez milhares de mulheres ativistas protestarem queimando sutiãs pelo mundo inteiro, lutando por direitos igualitários.

Enquanto nas rádios e na TV imperavam Rita Lee, Milton Nascimento e Roberto Carlos, entre outros, o caminho do quinteto era participar de eventos e festivais que, de certa forma, aceitassem o humor ácido e debochado das composições e interpretações teatrais do conjunto. Surgem daí as portas de um porão escuro e escondido localizado na Rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros, São Paulo, que abriu espaço para as apresentações do conjunto, e nunca mais fecharam. Era o teatro Lira Paulistana.

— A gente entrou no Lira através de um projeto que chamava ‘Virada Paulista’. Eram 44 bandas. Um projeto muito abrangente sobre o que estava se fazendo de música naquela época (1980), em São Paulo. E o pessoal do teatro (Lira Paulistana) reparou em nós e falou: ‘esses caras são malucos. Vamos trazer eles pra cá’. Daí em diante, entramos no Lira e não saímos mais. (Laert Sarrumor).

Pode-se dizer que o teatro Lira Paulistana foi um dos estopins para a carreira profissional do Língua de Trapo. Além de servir como principal oportunidade para o grupo, foram as apresentações no famoso porão que alguns rumos foram traçados. Enquanto metade da banda seguiu o caminho do jornalismo, outra parte seguiu o caminho da música, caso de Laert Sarrumor, Lizoel e Pituco.

Ao ver que a proporção do trabalho ia crescendo cada vez mais e se tornando mais séria, a banda acrescentou ao time de músicos e performances o guitarrista Sergio Gama; a dupla de irmãos Luiz e João Lucas, baixista e tecladista respectivamente; Ademir Urbina (percussionista) e Fernando Marconi (baterista); além do ator que dava todo o tom debochado e apoteótico, Paulo Elias.

A banda seguiu com seus shows no Lira Paulistana até que surge a primeira oportunidade da gravação de seu álbum de estreia. Um convite para gravar o primeiro vinil da banda. Com direito ao selo Lira Paulistana, que além do Língua de Trapo, lançou artistas como: Itamar Assumpção, Grupo Rumo e Premeditando o Breque, entre outros.

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Crédito da imagem: Primeira formação, início dos anos 80 | Arquivo pessoal de Laert Sarrumor

Capítulo do livro “Eles Não Perdoam Ninguém: Língua de Trapo!

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