Severino Trabalhador

publicado na Ed_14_jan/mar.2020 por

“Só vou te pedir uma coisa em troca dessa entrevista: vamos manter a amizade? Ah, outra: vou querer uma cópia desse teu livro…”

Em uma noite de quinta-feira tão bela quanto à querida e doce Angélica- aquela mesmo… — eu voltava cabisbaixo e exausto de uma fracassada entrevista de emprego, quando trombei com Severino, o porteiro do prédio da faculdade. Ele estava já sem o uniforme de trabalho — terno preto e gravata vermelha — e usando camiseta azul clara, despedia-se dos colegas (outros porteiros e seguranças) com a alegria de quem “finalmente vai pra casa” estampada no rosto.

Fui até ele, falei-lhe de uma entrevista que estava há meses querendo fazer. Assim, fomos para o bar mais próximo — onde pude conhecer um pouco de sua história, em meio a esfihas de calabresa, um copão de suco de melancia e uma Schweppes…

Severino Amado da Silva, 55 anos, é o porteiro/segurança mais velho e que está há mais tempo — se comparado aos outros porteiros — trabalhando no prédio de uma faculdade que ele prefere não revelar o nome… Por ser responsável pelo setor, é Severino quem abre o prédio: chega ali por volta das 6h45 da manhã — depois de cerca de 1h e 30m antes, sair de sua casa em Morro Grande, Freguesia, Zona Norte. Severino só não é o primeiro a chegar na faculdade porque as “tias da limpeza” estão já sempre por ali, varrendo as salas de aula, esvaziando as latas de lixo ou colocando papéis higiênicos nos banheiros.

O trabalho de Severino começa às 7 da manhã e vai até às 7 da noite — um dia trabalha e no outro folga. Nesse horário todinho ele permanece de pé, passando a carteirinha na catraca para que estudantes e professores saiam ou entrem.

“Não tenho relação nenhuma com alunos e professores. — ele já deixa bem claro — É no máximo: bom dia, boa tarde e boa noite. Nada além disso.”

“Um aluno ou professor pode até tentar fazer amizade com você, mas pode ter certeza de uma coisa: ele(a) vai querer um favor seu depois e você não vai poder atender.”

“Não é o aluno quem faz amizade comigo: sou eu quem faço. Mas quando faço é por quê? Eu conheço o caráter do aluno…”, ele declara sempre desconfiado, mas bastante prestativo.

Na primeira vez em que pedi ao Severino permissão para conhecer sua história, ele declarou ter muito trabalho — na faculdade e em casa — por isso não poderia disponibilizar uma horinha do seu dia para que eu lhe entrevistasse. Depois de um tempo — após longa insistência da minha parte — ele topou e ainda disse: “Boa sorte! Escreva muito, hein?”.

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Faz 25 anos que Severino trabalha como porteiro. Só na tal faculdade já são quatro anos, e antes disso, ele trabalhou também no Hospital Santa Catarina (um prédio imenso, localizado na av. Paulista) e na Santa Casa do bairro Santa Cecília, Centro.

Severino foi ainda porteiro de prédios residenciais. Em um deles, onde ficou por mais tempo (foram nove anos e oito meses), era um condomínio de luxo no Jardins, pertinho da Paulista. Aqui, Severino pegou trauma de trabalhar em prédio residencial. “Um porteiro de condomínio tem de trabalhar no prédio por no máximo cinco anos e ser demitido dali, o mais depressa possível. Mais do que isso, ele acaba se tornando parte do prédio, parte da família…”

Severino diz que porteiro de apartamento acaba se tornando uma espécie de “pombo-correio”,“garotinho de recados”, ao trabalhar durante muito tempo no mesmo prédio. “Por que é uma fofocaiada danada! O morador do 3° andar quer falar mal de outro do 4°, mas não tem coragem o suficiente pra chegar nele e falar cara a cara. Então faz o quê? Manda pra portaria resolver…”, ele reflete e relembra.

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O primeiro emprego de Severino Amado foi em um Supermercado Pão de Açúcar, localizado na av. Angélica (oh, coincidência!) que existe até hoje, segundo ele. Na ocasião, o jovem Severino tinha apenas 16 anos e já havia perdido o pai e a mãe (ela em decorrência de um derrame, ele, baleado em um assalto no inicio da década de 1980). O serviço era de empacotador e Severino trabalhou naquele mercado durante sete meses. Poderia ter ido mais além (ele acredita), mas como estava agora sob os cuidados de sua madrasta (que se casara com o pai de Severino, pouco antes d’ele falecer) acabou prejudicado… “Ela cismou com uma coisa que não tinha o menor sentido”, opina.

Pois o que aconteceu afinal? Aconteceu que a madrasta havia pago um curso de Datilografia para o enteado e achava que trabalhar como empacotador no Pão de Açúcar não lhe traria futuro; não lhe garantiria uma boa renda. Achava que graças àquele certificado, Severino merecia trabalhar em um escritório, ganhando mais dinheiro. “Mas eu ia ganhar praticamente a mesma coisa”, afirma. Acabou que mesmo diante da insistência do então supervisor do garoto órfão — que compadecido com sua situação, estava disposto a lhe ajudar — a madrasta manteve os pés no chão e levou-o embora. “E quem acabou prejudicado fui eu: desempregado, precisando de dinheiro e vivendo de bico até ficar adulto e independente”, lembra Severino, desde sempre viciado em trabalho.

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No início da fase adulta, Severino serviu no exército durante um ano e alguns meses. Depois disso, trabalhou de atendente no McDonald’s e como ajudante na MAPPIN (loja de departamento) na Praça Ramos de Azevedo.

Em 1989, quando a filha Diana (hoje com 30 anos) estava para nascer, Severino trabalhava em uma mercearia. Gostava do trabalho, mas tinha problemas com o chefe alcoólatra. Então acabou fazendo o que hoje ele chama de “grande burrada”: “Eu também não estava muito amadurecido das ideias”, lamenta.

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Em uma noite daquele ano, Severino chegou em casa quase matando sua mulher, Rosita, de susto:

“COMO ASSIM VOCÊ ESTÁ DESEMPREGADO?! — ela se desesperou — Estou já para ter o bebê!…

“A PORTA ESTÁ ABERTA. Consigo emprego em qualquer lugar. E não é por isso que vou ficar me sujeitando a certos tipos de coisas”, disse o impávido Severino.

O que aconteceu naquela tarde — na verdade, o que começou na manhã do dia anterior… — é o que Severino chama de “grande burrada”.

Naquela empresa de marcenaria, havia o chefe que beberia até sangue de cobra se deixassem… os médicos já tinham alertado para que ele parasse de beber tanto, por causa de alguns riscos à sua saúde. “Diziam até que ele já tinha pontes de safena no coração”, recorda Severino. A esposa do rapaz, desesperada, implorava pela ajuda dos funcionários do local, pedindo que não deixassem o esposo chegar perto de qualquer garrafa de 51 que houvesse por perto. “Mas não tinha jeito! Ele era o patrão e já chegava morto de bêbado ao trabalho”, diz Severino: culpado ou inocente?…

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Naquela manhã, Severino, o empregado, estava prestes a bater ponto quando o chefão chegou por trás, berrando pra todos ouvirem: “ISSO É HORA DE CHEGAR”? Mas Severino garante que estava no horário; havia chegado, inclusive, 15 minutos antes.

Sentindo-se ridiculamente humilhado e ultrajado, o trabalhador virou para trás… Explodindo-se de raiva, berrou de volta: “NÃO COMEÇA, SEU BÊBADO! — sabendo que o cara não aguentaria…: “Vá beber num bar e NÃO ME ENCHA O SACO!

Horrorizado diante dessa reação, o chefe alcoólatra caiu para trás… “E a parada cardíaca enfim deu nele”, conclui.

Funcionários do local correram para socorrer o homem… a ambulância foi acionada e chegou meia hora depois, junto com a mulher do cara.

Mas não conseguiram reanimá-lo totalmente. Pra ser mais exato, ele, após sofrer o desmaio, acabou sucumbindo a um coma alcoólico — tamanha a quantidade de cachaça em seu organismo. Foi levado para o hospital e os trabalhadores, como sempre, foram ordenados a voltar ao trabalho.

Horas depois de todo esse suspense, a mulher do bebum convocou todos os funcionários para uma importante reunião no dia seguinte…

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Conforme combinado, a mulher chamou todos os trabalhadores à sala de reuniões. Severino – já com a carteira de trabalho no bolso – pressentia sua demissão: “Fui eu que comecei tudo!”, pensava inquieto.

Mas a mulher tinha outro anúncio importante a fazer:

“Como ele (o marido) não obedece nem a mim, nem aos médicos, permanecerá em casa, afastado. Portanto, a partir de hoje, EU assumo o controle. EU comando a empresa, a loja, a fábrica”.

A mulher então tinha tomado uma decisão. Mas Severino, havia tomado outra —  ainda mais audaciosa, talvez…

O empregado pediu pra falar a sós com quem seria sua nova chefe e já foi logo avisando:

“Quero ir embora!”

“COMO ASSIM?! — surpreendeu-se a chefe — Você não foi culpado de nada. Ele estava bêbado e não tinha nada que ter gritado daquele jeito com você.

Mas Severino parecia bem firme quanto à sua decisão… e foi aí que entrou em cena o seu lado machista e preconceituoso:

“Não, a Sra. não está entendendo! Se já era ruim antes, com seu marido mandando aqui, imagine agora: uma mulher mandando em mim?! Isso não pode dar certo.”

A mulher ficou pálida ao ouvir essa declaração. “E por eu me expressar daquele jeito — relembra Severino, 30 anos depois — ela disse calmamente: “Então tudo bem, aceito a sua demissão. Eu mesma estou te mandando embora!”

Assim, a chefe assinou a carteira que Severino trazia no bolso. Ele recebeu pelos meses trabalhados e chegando em casa (“na maior cara de pau”, diz ele) quase apanhou, contando a novidade à esposa…

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Se já não bastasse passar grande parte dos seus dias (e semanas) na faculdade onde é porteiro, Severino — diferentemente das pessoas que vão ao shopping, ao cinema ou ao teatro — trabalha ainda mais nas horas livres: de marceneiro e pedreiro. É um hábito que ele cultiva desde a adolescência — trabalhando de ajudante com tios e primos — sempre que ficava desempregado. “Fui aprimorando as manhas. Tudo o que aprendia com eles (pedreiros mais experientes) eu anotava tudinho quando chegava em casa”, conta.

Foi Severino quem montou a casa de sua filha Diana — para ela, o marido e os filhos — e atualmente, ele está terminando de reformar a casa onde mora (“porque já é meio velha”) e de preparar a do filho Ariel (27 anos) nos fundos da mesma. “Quero deixá-la toda pra eles”, ele diz se referindo à casa onde já mora desde que nasceu.

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Severino também constrói com muita paixão, o habitat de alguns bichos que cria em casa: gaiolas de passarinho e caixinhas para conter os enxames de abelha — que às vezes, se acumulam nas árvores e em outros esconderijos da casa. Ele diz que ainda cria sete gatos…

Em certo momento da entrevista, Severino perguntou:

“Você gosta de gatos?”. Respondi com sinceridade: “Prefiro os cães”. Ele pareceu torcer a cara… e disse: “Pois eu já ia te oferecer um, rapaz. Mas tudo bem, estava apenas querendo fazer propaganda dos bichinhos”.

Severino ainda é mestre no xadrez — aliás, passou aos filhos algumas técnicas do complexo jogo de tabuleiro. Ele também gosta de aprender hebraico pela internet e até pouco tempo atrás, amava tocar seu violino (“que está um pouco enferrujado”, diz ele). Mas por causa de alguns problemas nos dedos e em uma das mãos (de tanto ele os desgastar em serviços braçais), Severino teve de abandonar o instrumento clássico, não tocando-o há mais de três anos.

“Para que os meus dedos voltem ao normal — e eu possa voltar a tocar violino — teria de ficar alguns meses parado, sem fazer nada e isso eu não consigo”, afirma.

Crédito imagem da capa: Pixabay License

Capítulo do livro: Cidade: Centro & Periferia

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