Regras para uma polêmica contribuição

publicado na Ed_06_jan/mar.2018 por

Art. 14 do Código Civil Brasileiro in verbis: “é válida, com o objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte para depois da morte.

Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.”

Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002

Ao conversar com Renato Artero, advogado civil de São Paulo, logo percebi que as normas registradas sobre uma doação do próprio corpo são básicas, pois se trata de uma situação que deve ser resolvida entre os envolvidos – doador e receptor.

Depois de avaliar os detalhes jurídicos, a palavra “polêmica” é a primeira a ser dita pelo advogado. Para começar esse assunto, Artero apontou que algumas questões básicas devem ser abordadas para que eu entenda sobre o desejo de doar. “A Constituição Federal do Brasil de 1988 trouxe aos brasileiros e aos indivíduos que aqui residem vários direitos concentrados, principalmente no art. 5º. Segundo ele, o caput do referido artigo já revela os principais direitos assegurados ao homem, em que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Estamos falando de pesquisa e ensino com o corpo humano, por isso é importante saber que há alguns limites a serem respeitados, que estão relacionados a valores éticos e morais do homem, sendo claramente expressos na lei, principalmente referentes à inviolabilidade da dignidade humana, por meio do art. 5º da Constituição.”

Quando perguntei se existe uma lei criada especialmente para a doação voluntária, o advogado fez uma pausa e confirmou que sim, mas não uma lei específica. Ao perceber minha dúvida, ele explicou: “Na Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que é do próprio Código Civil, estão reunidas todas as informações sobre direitos e deveres de um indivíduo como cidadão.”

Artero destacou, então, do capítulo II sobre direitos de personalidade, o art.14: “É válida, com o objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte para depois da morte. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo’”, complementando que se a questão estiver inserida no contexto da permissão, a lei não é um obstáculo para a doar nem mesmo quando acontece a desistência dessa ideia. “Porém, o Código Civil não se refere à doação do corpo especificamente, e sim das relações civis das pessoas singulares e jurídicas. Por isso, apresenta o tema de forma muito ampla e, na minha opinião, deixa lacunas em relação ao assunto. Assim, não é possível saber até onde vai a legalidade e a justiça da permissão de doar. Isso se dá pelo fato de não existir uma lei específica que realmente ampare a doação de corpos para pesquisa e estudo. É algo que precisa ser discutido com urgência. Já existem projetos de lei tramitando no Congresso Nacional para regulamentar a ideia, como o de 2016, de autoria do deputado Ricardo Izar (PP-SP), que busca ampliar a doação voluntária de corpos para a sociedade”, revelou.

Os anatomistas já haviam me informado, mas Artero explicou os termos jurídicos dos procedimentos de uma doação voluntária. O indivíduo que deseja ceder seu corpo a uma instituição educacional precisa assinar um termo de compromisso, manifestando sua vontade. Nesse documento, ele precisará de duas testemunhas – é aconselhável que sejam familiares e também é recomendável que seja registrado em um cartório. Ele reforçou que o documento é fundamental, pois a família jamais poderá ceder o cadáver a uma universidade sem esse termo, que comprova a vontade do falecido. Caso exista o desejo de realizar um velório, a lei não faz nenhum tipo de obstáculo e o ato poderá acontecer antes do transporte do corpo para a instituição de ensino que receberá o cadáver.

Mas o advogado chamou a atenção para um fator essencial. “É importante lembrar que nenhuma universidade aceita um corpo doado sem um documento fundamental: a certidão de óbito. O art. 77 da Lei no 6.015, de 21 de dezembro de 1973 – denominada Lei dos Registros Públicos –, diz que ‘nenhum sepultamento será feito sem certidão do oficial de registro do lugar do falecimento, extraída após a lavratura do assento de óbito, em vista do atestado de médico, se houver no lugar, ou, em caso contrário, de duas pessoas qualificadas que tiverem presenciado ou verificado a morte’. Essa lei também é utilizada para o processo da doação do próprio corpo”, esclareceu. Quanto ao momento de realizar o transporte do corpo para uma universidade, Artero falou sobre mais uma conduta. O Estado precisa ter controle sobre os cadáveres, por isso, pela Constituição Federal, art. 30, serviços públicos como o Serviço de Verificação de Óbito (SVO) e funerárias municipais realizam diretamente ou sobre a forma de concessão, o transporte do cadáver doado.

Comecei a imaginar o motivo de essa burocracia nos procedimentos de uma doação causar tanto estresse. São detalhes que vão da falta de conhecimento até a desistência do ato por parte de familiares. Artero informou que a presença de um advogado desde o momento da disposição do indivíduo de doar o próprio corpo até o ato posterior da morte não é obrigatória, mas ajuda a formalizar um processo que é originalmente resolvido internamente, entre os envolvidos. “A meu ver, a grande falha nesse processo é que, embora exista um termo de compromisso registrado corretamente, a família pode se negar a doar e bloquear o processo após o falecimento do doador. A vontade da família, na teoria, não deveria ser contrária à do doador, mas na grande maioria dos casos é. Na minha opinião, o termo deveria ser assinado também pelos familiares, pois assim, após o óbito, a doação acontecerá de qualquer forma”, acrescentou.

Quando o doador se torna vítima de uma morte violenta, o processo é interrompido e a doação não pode ser feita, pois a ordem legal está acima do ato altruísta, necessitando que o corpo seja avaliado no Instituto Médico Legal (IML). Com isso, mesmo após todas as avaliações, a doação não ocorrerá. Pensei no fato de que todos esses procedimentos são realizados e respeitados sem a existência de uma lei específica. O trâmite de uma doação após o óbito é considerado o maior problema relatado por anatomistas. Artero reafirmou que o procedimento é falho. “Isso acontece pela falta de uma legislação mais clara sobre a ideia e, além disso, em cada estado há uma resolução diferente sobre o tema. O Brasil necessita de uma lei mais clara e elaborada sobre a doação de corpos, justamente para facilitar o trâmite, e que seja igualitário em qualquer universidade do país.”

Como foi visto, o único fator jurídico que pode ser relacionado à prática de doar voluntariamente o corpo é o art.14 do Código Civil Brasileiro. Talvez por esse motivo, normalmente, quando a mídia divulga alguma informação sobre doação de corpo para estudos em universidades, não cita informações jurídicas como base para a legitimidade do ato.

No entanto, o advogado esclareceu que existe uma lei para a doação do corpo que é muito mais conhecida e elaborada, mas que não trata da doação voluntária do cadáver: é a Lei no 8.501, de 30 de novembro de 1992, que tem como foco a doação do cadáver não reclamado pelos familiares, os chamados informalmente de “indigentes”. Nela existem regras que precisam ser cumpridas pela instituição de ensino. O indivíduo falecido deve estar sem qualquer documentação e inexistir informações relativas a endereços de parentes ou responsáveis legais. As autoridades devem manter os dados de suas características gerais, fotos do corpo, ficha datiloscópica, resultado da necropsia, dentre outros pertinentes. O prazo para que a instituição possa utilizar o cadáver é de 30 dias após o falecimento, e o corpo não pode ser reclamado às autoridades públicas. Dentro desse período, a universidade deverá publicar nos principais jornais locais da cidade, a título de utilidade pública, a notícia do falecimento. Caso a família reclame o corpo dentro do prazo estabelecido, terá acesso a todos os documentos citados, assim como um representante legal que estiver acompanhando o caso.

Por fim, Artero admitiu que a prática, por ser um tabu na sociedade brasileira, faz com que a lei atual ainda não tenha registros mais específicos e, consequentemente, que não haja um conhecimento maior por parte dos advogados, que precisam mergulhar no assunto para realmente confirmar se não há nada maior além de um artigo no Código Civil. Para ele, o homem deve ter o livre-arbítrio de escolher o que acontece com seu corpo enquanto estiver vivo, mas também após sua morte. Se um homem tem o direito de viver conforme suas ideologias e pensamentos filosóficos e religiosos, também deve existir o direito de escolher o que acontecerá após o próprio óbito.

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Crédito da imagem: Autora

Capítulo do livro:O que você quer ser quando morrer?

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