“Tenho muito para contar”

publicado na Ed_06_jan/mar.2018 por

Em 8 de abril de 1975, na vila de Todos os Santos, pequena cidade, terra seca, no Ceará, nasceu Maria. Ela cresceu ao lado da mãe, Oliveira. Quando a menina tinha cinco anos ela foi deixada com os avós, Antônia e Francisco, para que a mãe pudesse morar em São Paulo. Daí em diante Maria foi criada por eles. Maria é morena, tem cabelos pretos, pele limpa, 75 quilos. Mora em São Paulo há 12 anos com a família.

Talvez você já tenha lido ou ouvido alguma história bem parecida com esta. Ela pode ser comum para muitos, mas para Maria é única e diferente. Sua infância sempre foi muita afetada pelas dificuldades da roça, pela falta de água e comida, mas isso não a fez perder os sonhos e nem desistir de sua vida sendo vivida de uma forma mais colorida, sem as rachaduras do Sertão.

Em 1984, aos sete anos, ela presenciou uma das secas mais severas do Ceará, que durou cerca de quatro anos.

— A gente não tinha nada pra comer, quem dirá pra beber. Nosso café da manhã era farinha com óleo, isso quando a farinha dava pra todos.

O Ceará passou por uma hecatombe econômica que arrasou a pecuária. Naquela época o país ficou arrasado e várias campanhas de alimentação foram feitas para salvar o Nordeste. O ditador-presidente da época, João Figueiredo, chegou a declarar que a única coisa que restava era rezar para chover.

Homens, mulheres e crianças trabalhavam pesado, quebrando e carregando pedra sob um Sol desolador e submetidos aos encarregados das obras.

Bom, é um pouco complicado escrever essa história. Eu, autora deste livro, vivi até os dez anos de idade no Ceará e a situação sempre foi complicada. Mas nunca ao ponto de faltar comida ou água. O Ceará é cercado de belezas e praias belíssimas, mas beleza não enche a barriga de quem tenta sobreviver com o pouco que tem.

E assim era com Maria. Ela cuidava dos avós, ajudava nos afazeres da casa e trabalhava no roçado, debaixo de Sol. Quando Maria tinha 11 anos a avó dela foi picada por uma cobra salamandra (espécie de cobra que pode matar ou deixar sequelas) enquanto colhia fava. Mesmo com o incidente, ela e Maria continuaram trabalhando, mas dona Antonia sentia dores fortes como de ferrões pelo corpo. No fim da tarde, ao finalizar o trabalho na roça, elas foram para casa, e a avó de Maria foi atendida pelo farmacêutico da cidade, que aplicou nela a vacina contra o veneno da cobra. Os dias foram passando e dona Antônia foi perdendo a audição. Meses depois a avó de Maria perdeu 100% da audição. Maria continuou cuidando da avó e do avô. Mas agora ela precisava trabalhar sozinha.

Quando Maria tinha treze anos ela e os avós foram morar na Vila de Marruás, que era localizada a quatro quilômetros de sua antiga casa. Eles viviam cercados de grandes dificuldades. No novo endereço, Maria ajudava sua madrinha Maria Doninha em uma lanchonete, onde fazia salgados e bolos. Maria teve uma infância conturbada, mas também tinha tempo para brincar, jogar futebol, estudar e ir à igreja católica. Aos 12 anos fez catecismo, primeira comunhão e ajudava na igreja. Na cidade de Marruás existia uma grande defasagem na estrutura escolar. Lá Maria estudou somente até a sétima série.

Adolescência conturbada

Maria conheceu o pai apenas em 1993, aos 18 anos. Nesse mesmo ano ela conheceu e passou a namorar José, que é seu marido hoje.

Atualmente, José tem 57 anos. Ele já tem cabelos grisalhos, é branco, alto e tem os olhos claros. Mesmo tanto tempo depois, muitas coisas ele não esquece. Lembra-se muito bem dos anos que viveu no Nordeste.

José nasceu em 1960, também na vila de Todos os Santos. Viveu com seus avós até os 12 anos e depois voltou a morar com a mãe, Francisca. José, assim como sua esposa, não teve uma infância, tampouco uma adolescência, como a de outras pessoas. Diferente de Maria, só estudou até a quarta série do Ensino Fundamental, e por muitos anos era a única série que ensinavam na vila. Ele gostava de jogar futebol e tinha que ajudar os avós na roça. Estudou a quarta série até quase seus 18 anos.

— Estudei a quarta série quatro vezes. Era só o que tinha naquela época. Então, acabava e eu começava de novo.

Muitas crianças que moram no interior precisam ajudar a família com os afazeres, com isso elas acabam perdendo boa parte da infância para auxiliar na roça, no açude e em casa. José teve uma vida exatamente assim.

Ao completar 18 anos, ele foi estudar em Fortaleza, mas ficou apenas seis meses e voltou para Marruás. Aos 21 anos ele se casou e teve três filhos, duas meninas e um menino. Esse foi seu primeiro relacionamento, que durou cerca de quatro anos. Após o término, ele resolveu vir a São Paulo para tentar algum emprego ou bico. Foi trabalhar numa lanchonete no centro de São Paulo.

Pouco tempo depois, sua filha do meio, com 13 anos, foi diagnosticada com leucemia e logo foi a óbito.

— Tudo aconteceu muito rápido. A mãe dela também estava aqui em São Paulo. Eu dei o dinheiro pra ela ir ver a menina e eu fiquei sem ver a minha filha.

Mais tarde ele voltou para Marruás. O trabalho que ele fazia era o mesmo de antes. Roçado e outros serviços que pediam para ele ajudar.

Muito trabalho duro

Em 1985, aos 25 anos, ele voltou a Fortaleza para trabalhar como porteiro em um condomínio até os 30 anos. Nessa época ele morava com sua tia. De 1990 a 1992 foi morar no Pará e trabalhou em uma mineradora. Perguntei a ele se alguma vez ele encontrou ouro de verdade. Talvez uma pergunta que muitas pessoas se fazem quando escutam: “Trabalho numa mineradora”.

— Achei quase nada. Só aquela areinha. Não ganhava nada.

José era alcoólatra. Bebia desde os 16 anos. No Pará, inclusive, ficou internado por dias com fraqueza generalizada. Também fumava muito e durante sua internação teve uma inflamação na garganta e o médico disse que ele precisava ficar cinco dias sem fumar, e ele obedeceu. Nunca mais ele bebeu e fumou em sua vida.

— Depois disso, nunca mais eu bebi mais nada. Até hoje. E também não fumei nunca mais. Tenho raiva do cheiro do cigarro.

Em dezembro de 1992, depois que melhorou, ele voltou para Marruás, mas sem emprego. Às vezes ele ia para a roça trabalhar; quando não estava na roça, fazia outras coisas quando aparecia trabalho. Foi aí que, em 1993, ele conheceu Maria.

Eles começaram a namorar. Maria continuou cuidando dos avós e José continuava com sua tia, e às vezes dormia também na casa da mãe dele.

Em janeiro de 1994, o casal teve sua primeira filha, a Biatrys. Maria tinha 18 anos e José, 34. Eles não eram casados, mas foram morar juntos em uma casa alugada na vila de Marruás. Um ano e nove meses depois, dia 15 de outubro de 1995, nasceu Alice, segunda filha do casal.

A situação ficou difícil para eles. Sem emprego, José teve que vir novamente a São Paulo para trabalhar. Tentar estabilizar a vida. Ele conseguiu emprego num restaurante na Avenida São João, centro da capital paulista. Com isso, Maria voltou a morar com os avós junto com as filhas. Eles ajudavam a cuidar das crianças enquanto Maria trabalhava também no roçado.

Desaparecido

Durante esse tempo, sua vida foi marcada por uma barbárie que também marcou sua família.

Em 1996, quando ela tinha 20 anos, Maria e os avós estavam em casa com as filhas, tios Mari e Luiz, e seu primo Dilei. O primo e o tio estavam discutindo sobre o possível roubo de uma faca.

— O esposo de minha tia tinha uma faca e Dilei pediu aquela faca para ele, mas Luiz não queria dar. No outro dia a faca sumiu. Por isso eles ficaram discutindo aquele dia.

Antes do almoço, seu tio saiu para buscar uma roupa no sítio em que morava. Passada uma hora, enquanto preparavam-se para almoçar, e por volta do meio dia, seu primo retornou para casa, e enquanto todos almoçavam, ele pediu uma toalha para tomar banho.

— Lembrei que ele cheirava sangue e inclusive eu lavei o banheiro com cândida e sabão pra sair o cheiro ruim. Lembro que eu perguntei pra ele de onde estava vindo e ele disse que estava vindo da rua, só.

Ele sentou e almoçou com a família. Logo saiu para a rua para assistir um jogo no bar. Sua tia estava preocupada com o esposo que não voltava e saiu para a casa da vizinha. Maria banhou suas filhas e as colocou para dormir, depois foi a uma reunião da escola, onde ajudava os professores. Em seguida, chegaram algumas pessoas que a avisaram que tinham encontrado seu Luiz, marido de sua tia, morto.

— Na hora eu logo gritei: “Foi o Dilei”. E pediram para eu falar baixo. Mas eu já senti que tinha sido ele.

Maria voltou para casa para avisar os avós. Muitas pessoas também já desconfiavam do rapaz e o seguraram no bar, amarraram-no até a polícia chegar no local. E ele foi preso. Ficou lá menos de três meses.

— Na quarta vez que iam depor contra ele, ele fugiu.

Dilei fugiu um dia antes de seu julgamento e até hoje nunca mais foi visto. Ninguém nunca soube onde se escondeu ou se está vivo ou morto. Não pagou pelo crime que cometeu e sumiu do mapa. Sem saber o que pode ter acontecido com ele Maria prefere não se lembrar do primo.

Um dia após o outro

Tudo foi acontecendo muito rápido em sua vida. José voltava sempre que podia para visitar a família. Em 1997, o avô de Maria, Francisco, faleceu de úlcera aos 85 anos. Sua filha Alice era muito apegada ao bisavô, ela o chamava de pai. Seu bisavô era a visão paterna que ela tinha, já que o pai sempre estava trabalhando longe de casa.

No início de 1998, aos 21 anos, Maria decidiu vir para São Paulo com as filhas e a avó. José enviou o dinheiro para a compra das passagens. As passagens eram de ônibus e a viagem durou três dias e duas noites de muito cansaço. Ao chegar a São Paulo, foram morar de aluguel em um bairro de Itaquera, atualmente chamado de cidade A.E. Carvalho, que era conhecido na época como bairro “sem terra” ou “invasão”.

Maria passou a trabalhar de ajudante de cozinha junto com José no restaurante que ele já trabalhava na Avenida São João. Mas a avó dela precisava de cuidados, e as filhas se revezavam no horário da escola, uma de manhã e uma à tarde para cuidar da bisavó.

Em 2000, os dois perderam o emprego e, assim, como muitas famílias nordestinas, tiveram que voltar para a cidade natal.

Dessa vez eles foram morar na cidade de Tauá e pagavam cem reais de aluguel. Maria foi trabalhar de doméstica na casa dos parentes de seu marido, enquanto ele era motorista em um mercado do bairro. Ainda em 2000, ela voltou a estudar e em 2002 concluiu o Ensino Médio, mesmo ano em que engravidou do seu terceiro filho, Emanuel.

A família continuou morando no bairro Alto Brilhante. Conseguiram juntar dinheiro e decidiram tentar a vida mais uma vez em São Paulo. José, seu marido, recebeu uma proposta de trabalho de um parente para ser motorista de um mercado de bairro. E assim o fez. Em janeiro de 2004 retornou a São Paulo. Como da primeira vez, foi antes da família. Guardou e mandou dinheiro para comprar as passagens.

Maria arrumou as malas, juntou tudo e mais uma vez veio para São Paulo.

— Aquela situação nos ônibus que vemos nos filmes por aí é idêntica. Lembro que trouxe no ônibus frango com farofa, bolachas e em algumas paradas conseguíamos comer nos restaurantes que eram mais baratos.

Em junho de 2004, Maria chegou a São Paulo com a família para morar de favor em uma casa dos parentes de seu pai, em Carapicuíba, Zona Oeste de São Paulo. Seu marido morava na Zona Leste e visitava a família aos finais de semana.

Fase ruim

— Foi difícil, sem emprego, a casa era emprestada e passei muitas dificuldades, só não passamos fome porque Deus sempre esteve ao nosso lado.

A família de seu pai vendeu a casa em que ela morava. Teve que se mudar para a Zona Leste, mesmo bairro em que morou da primeira vez que veio a São Paulo. Ela pagava 500 reais de aluguel e trabalhava como doméstica na casa de sua vizinha. Em 2006, foi trabalhar como doméstica e atendente em uma casa do Norte, no Brás. Trabalhou por cinco anos, não era registrada em carteira, nem tinha benefícios.

Suas filhas continuavam com a mesma rotina. Revezavam o horário da escola para cuidar da bisavó que, em 2007, com 94 anos, ficou doente e foi a óbito três dias após dar entrada no hospital Santa Marcelina, no bairro de Itaquera.

— Foi uma fase horrível. O apoio da minha família me ajudou muito.

Seu esposo, neste mesmo ano, conseguiu emprego como motorista em uma empresa de locação de veículos. Ele trabalha nessa mesma empresa até hoje. Maria, em 2010, conseguiu um emprego numa loja na Gasômetro, onde ficou durante oito meses e foi trabalhar de operadora de caixa em um mercado ao lado de sua casa. Também é seu atual emprego.

A vida em São Paulo não é tão simples. Na realidade, muitos nordestinos com quem conversei nesse tempo dizem a mesma coisa: que São Paulo é uma saída, ou seja, é a tentativa de recomeçar. As oportunidades de emprego e estudos são sempre os requisitos mais observados por eles. Não foi diferente na vida de Maria e José. Eles queriam dar o melhor aos filhos.

Consequências de um trabalho bem feito

Em 2012, Maria teve a oportunidade de viajar pela primeira vez de avião com os três filhos com destino ao Ceará. Eles foram rever a família. Maria ainda sonha em morar no Ceará, mas no futuro. Sua terra é vista por ela como fase de descanso.

— Quando todos os meus filhos casarem eu quero voltar pra lá. Não sei se esses são os planos de Deus. Mas se tudo der certo, quem sabe, né?

Maria também sonhava em continuar seus estudos. Sempre gostou muito de escrever, tinha um caderno com vários poemas que escrevia quando estava sozinha ou tinha inspiração. Em 2015, ela fez uma prova e conseguiu bolsa para cursar auxiliar administrativo numa obra social de seu bairro. Mesmo ano em que sua filha mais velha, Biatrys, se casou, aos 21 anos.

Maria sempre amou estudar, concluiu o curso em 2016 e não parou por aí. Ainda neste mesmo ano prestou mais uma prova e conseguiu outra bolsa para o curso gestão e saúde na Escola de Saúde Pública Professor Makiguti. Ela concluiu o curso em agosto de 2017. Hoje, um de seus grandes objetivos é trabalhar na área da saúde, conseguir cursar faculdade de psicologia ou enfermagem e, é claro, ter sua casa própria.

Atualmente, Maria, aos 42 anos, mora na mesma casa há oito anos com seu marido, José, que está com 57 anos. Ele ainda trabalha como motorista. A filha Alice está cursando faculdade de jornalismo e Emanuel cursa o Ensino Médio e faz aulas de violão durante a semana.

Na verdade grande parte dos nordestinos imagina São Paulo como sendo uma realidade inexistente, uma cidade utópica. Mas, para essa família, São Paulo foi uma chance de lutar e construir uma nova história.

typewriter

Crédito da imagem: CC0 Creative Commons

Capítulo do livro:Mais fortes do que pensam: São Paulo acolhedora dos migrantes

Imprimir

Deixe um comentário

Your email address will not be published.

*

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.