Umbanda: a fé através do som do atabaque

publicado na Ed_01_out/dez.2016 por

Sinos tocam. “Viva a Deus”, diz o Pai de Santo ao entrar no grande salão seguido de, aproximadamente, uns 60 médiuns. Três homens estão atrás de seus atabaques, com olhar concentrado e dando pequenos rufos no couro que indicam que o culto, ou a gira, está para começar.
Os filhos da casa estão enfileirados, todos usando roupas brancas e guias, seus colares coloridos no pescoço. As mulheres usam saias armadas de renda, com uma bata de tecido leve e transparente, além dos pontos e códigos religiosos bordados. Os homens estão com suas calças sociais brancas e uma doma (camisa utilizada por todos os homens, feita especialmente para o culto) igualmente branca, com alguns detalhes em vermelho – cor do orixá ogum, que rege a casa. Nos pés, as mulheres usam sapatilhas e os homens sapatos sociais, tudo na cor da paz. O grande espaço do terreiro se torna pequeno em meio a tantos detalhes. As paredes brancas, com o chão em azul piscina, transmitem grandiosa tranquilidade e é fácil entrar em sintonia com as pessoas que ali estão.
Uma cortina branca separa os médiuns dos que buscam a caridade. As pessoas vão ao terreiro querendo respostas, palavras amigas, energias renovadas ou até soluções impossíveis. Alguns acreditam nos orixás, outros querem testá-los. Todos aguardam sentados e em silêncio o início dos trabalhos que serão realizados naquela tarde de sábado.
A casa é a Tupã Óca– que significa Casa de Deus – do Caboclo Irajé e Pai Folha Seca, cuidadores espirituais. O terreiro está aberto há 51 anos e foi o primeiro templo umbandista da capital paulista a conseguir o alvará de funcionamento, conforme exigido pela Prefeitura. Muitosterreiros sofremcom a dificuldade de conseguirem seus direitos para legalizar o funcionamento e fecham as portas.
Com um jeito descontraído e sorridente, Pai Gerson me recebeu em sua casa antes de iniciarem os trabalhos. Ele mora na parte superior do terreiro, lugar simples e muito aconchegante. Contou-me de quando a Tupã Óca quase fechou, pois os vizinhos reclamavam do excesso de barulho.
– Quando a Prefeitura veio até aqui, disse que teríamos que fechar o terreiro por que não tínhamos alvará. Porém, teríamos muito pouco tempo para conseguir e descobrimos que nenhum terreiro de São Paulo o tinha e muitos acabavam fechando.
Com o crescimento de outras religiões, os cristãos começaram a migrar e conhecer novas ideologias e crenças. Mesmo nem sempre assumindo as mudanças de credo, as pessoas foram enxergando outras possibilidades de desenvolver a fé. Em certos casos, acaba acontecendo uma competição no ranking de seguidores. A Igreja Protestante, por exemplo, vai contra tudo o que é pregado na Umbanda e levanta bandeiras negativas da religião afrodescendente para muitos segmentos sociais e até políticos.
Muitos líderes da religião protestante tomaram cargos na política de São Paulo e dificultaram as leis para as religiões contrárias às suas ideias. Mas com umbandistas defendendo sua própria religião e se unindo cada vez mais, conquistaram espaço nos âmbitos social e político. As leis começam a se ser modificadas.
Foi esse espaço na política que ajudou a casa de meio século de caridade a continuar com as portas abertas. O vereador Laercio Benko é da religião e defende o direito de todos os umbandistas dentro da política paulistana. Aos poucos se formam grupos que lutam pelos mesmos ideais e ajudaram a “desburocratizar” o alvará para o terreiro.
Caroline Lara dos Santos, secretária da diretoria da Tupã Óca do Caboclo Irajé, comenta a conquista do documento:
– Foi uma vitória para a nossa religião. Precisamos nos unir. Só amamos a nossa religião, nossos orixás e queremos prestar a caridade.
O terreiro é um lugar de muita história, muita luta e que hoje abre suas giras todos os sábados sem cobrar nada dos que vão até lá buscar o conselho das entidades que se manifestam nos médiuns.No dia em que estou fazendo esta reportagem, oconga – altar com as imagens e velas -está florido e iluminado e todos esperam o aval do Pai de Santo para começar o trabalho espiritual. Mais um “Viva a Deus” ecoa. Abre-se a grandiosa gira, com olhares ansiosos e concentrados ao redor.
Um homem desce as escadas entrando no salão com um defumador, cheio de carvão em brasa, acompanhado por outro homem que segura uma pequena tigela de aço com ervas dentro. É a hora da defumação.
– Defuma eu babá, defuma eu para os trabalhos começar.
Todos começam a cantar. O atabaque vai soando um ritmo leve e envolvente e os médiuns vão de um lado para o outro em um sincronizado “curimbar”, a dança feita para saudar os orixás. A dança é acompanhada com palmas no mesmo ritmo da música.
– Eu vou defumar a minha gira, eu vou defumar o meu conga, eu vou pedir licença a Olorum, eu vou pedir licença a Iemanjá…
Continua o coro de vozes devotas e animadas. O líder espiritual comanda com olhares e gestos quando começa e quando termina a cantiga. Todos tem um respeito muito grande por ele e os que vão chegando se ajoelham à sua frente, beijando sua mãoe levando à testa.
Dona Elvira Moura fundou a Tupã Óca em 1964, quando se tornou a 5ª filial do Primado de Umbanda do Brasil, associação que une líderes religiosos da Umbanda e do Candomblé para trabalhar dentro de doutrinas e disciplinas, visando maior entendimento e uniformidade dos trabalhos realizados nesses templos. Antes disso, ela já tinha seus seguidores dentro da sala de sua casa. Com seu dom, que até hoje é lembrado por muitos, Elvira lia o destino das pessoas em um copo com água, além das incorporações com as suas entidades. Conquistou muitos filhos e atendeu centenas de pessoas no decorrer dos anos, até construir sua sede própria na Rua Mororó, no Bairro Chacará Santo Antônio, Zona Leste de São Paulo. Esse é o lugar onde o terreiro funciona atualmente.
Naquela época, a maioria dos terreiros carregava no nome “Templo Espírita”, “Casa Espírita”, “Tenda Espiritualista”. A religião umbandista sofria fortes preconceitos e o nome era um pouco disfarçado, já que o espiritismo tinha maior aceitação social. Os terreiros, muitas das vezes, atendiam em salas, quartinhos e fundos de quintais. Conquistar uma sede própria e o direito de erguer a bandeira de Oxalá era para poucos.
Só no Brasil, temos aproximadamente 380 terreiros que abriram suas portas entre 1888 e 2015, segundo números atualizados no blog Registros da Umbanda. Esse número corresponde aos templos que foram oficializados de alguma maneira, mas temos outros lugares que seguem a religião e podem não estar contabilizados. Entre esses, muitos já fecharam e alguns surgiram. Mas somente 15 terreiros no Estado de São Paulo têm filiação com o Primado de Umbanda, sendo sete com sede na capital paulista. Atualmente, aTupã Óca do Caboclo Irajé e do Pai Folha Seca não está mais entre eles.
Nos tempos da senhora Moura, um menino descontraído e malandro passava pelos atabaques. Adorava olhar as giras e se maravilhava por cantar e tocar aos orixás. O menino Gerson Ferreira Lourenço, neto de dona Elvira, mal sabia quão grandioso ainda seria o seu caminho espiritual, mas não queria compromissos e nem pensava em criar raízes, já que fugia das giras certas vezes. Com o passar dos anos, Elvira adoeceu por causa de sua diabetes e foi ficando cada dia mais difícil comandar as sessões espirituais. O menino se tornou um homem, amadureceu e tomou as rédeas da casa de sua vó. Em 1999 o legado foi definitivamente passado a ele, com o falecimento da mãe de santo.
Hoje o “moleque atrevido” está em frente ao conga que já foi de sua vó, tocando a gira com seriedade e adoração às leis umbandistas. Com o final da defumação, ele começa a abertura da gira.
– Me abre essa gira ogum, não deixa a demanda entrar. É hora, é hora, é hora ogum. É hora de trabalhar.
Os atabaques rufam e começa o toque que faz vibrar o coração de quem estiver por perto. Depois de todas as cantigas e orações, chega a hora de saldar o Caboclo Irajé, guia espiritual de dona Elvira. Todos se ajoelham em reverência ao grande patriarca da casa. A maioria de olhos fechados bate palmas fervorosamente e cantam ao caboclo o mantra:
– Oi salve o sol e salve a lua. Oi salve toda juremá. Oi sarava seu Irajé chefe da aldeia, oi sarava seu jacutá.
A última batida do atabaque encerra o ponto e todos abrem um grande corredor, deixando o meio do terreiro livre. Pai Gerson se levanta para a incorporação do Caboclo Folha Seca e em concentração seu corpo todo começa a chacoalhar, enquanto o ponto de chamada do caboclo ecoa por todas as vozes presentes e o toque dos atabaques faz todos vibrarem ainda mais com a emoção e energia contagiante do lugar.
O caboclo chega, ajoelha no chão e dá o seu “ilá”, grito usado como código para o espírito avisar que chegouno terreiro. A entidade é um guerreiro de ogum e, ao pegar a sua espada na mão para trabalhar, anda por todo o corredor do terreiro abençoando os filhos. O momento é de pura devoção, os médiuns abaixam os corpos e batem a cabeça ao chão, reverenciando a presença do caboclo.
Quando entramos nos terreiros estão sempre lotados e os frequentadores estão espalhados pelo Brasil e por São Paulo. A grande realidade desta religião é que poucos têm a coragem de assumir o amor pelos soar dos atabaques e pelo culto aos orixás. Quando se pergunta qual a sua crença, poucos respondem em alto e bom som que é umbandista.
Além disso, muitas pessoas costumam ter mais de uma religião. Os famosos católicos-não-frequentantes usam o catolicismo como um escudo social, do qual eles geralmente utilizam quando indagados sobre suas crenças. Porém, quase sempre há uma segunda fé envolvida. Enquanto bradam serem católicos vão ao terreiro tomar passes e fazer oferendas. Essas e outras questões prejudicam a real situação das estatísticas.
Mesmo assim, a pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Censo Demográfico de 2010, aponta crescimento dos frequentadores umbandistas assumidos no Estado de São Paulo. No Censo de 2000 cerca de 79.119 mil (19,91%) pessoas se diziam umbandistas. Já na apuração atualizada de 2010, o número chega a 103.554 (25,42%).
Voltando à realidade palpitante, o suor pinga do rosto dos médiuns. O calor era forte, mas nada parecia os cansar. Quase cinco horas de giras. Palmas batendo, cantos contínuos e incorporações com entidades que giravam feito piões. A fé é o que os mantém firmes e fortes até o final. Quando a gira vai chegando ao fim, a assistência – lugar onde ficam aqueles que buscam ajuda – já está vazia, com duas ou três pessoas. Mas os médiuns não vão embora enquanto a missão não chega ao fim.
– Eu fecho a nossa gira, com Deus e Nossa Senhora. Eu fecho a nossa gira sambolêpemba de angola.
Essas falas são repetidas. Sinos tocam. “Viva e Deus”, diz o pai de santo, dessa vez ao se despedir dos seus filhos por mais um dia de caridade prestada.
Axé!

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Crédito da fotografia: Pixabay

Capítulo do livroReligiões de S. Paulo

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