As Iauô

publicado na Ed_05_out/dez.2017 por

A recordação de um fato triste — a morte de uma rapariga que fora à Bahia fazer-santo — deu-me ânimo e curiosidade para estudar um dos mais bárbaros e inexplicáveis costumes dos fetiches do Rio.

Fazer-santo é a renda direta dos babaloxás, mas ser filha-de-santo é sacrificar a liberdade, escravizar-se, sofrer, delirar.

Os transeuntes honestos, que passeiam na rua com indiferença, não imaginam sequer as cenas de Salpetrière africana passadas por trás das rótulas sujas.

As iauô abundam nesta Babel da crença, cruzam-se com a gente diariamente, sorriem aos soldados ébrios nos prostíbulos baratos, mercadejam doces nas praças, às portas dos estabelecimentos comerciais, fornecem ao Hospício a sua quota de loucura, propagam a histeria entre as senhoras honestas e as cocottes, exploram e são exploradas, vivem da crendice e alimentam o caftismo inconsciente. As iauô, são as demoníacas e as grandes farsistas da raça preta, as obsedadas e as delirantes. A história de cada uma delas, quando não é uma sinistra pantomima de álcool e mancebia, é um tecido de fatos cruéis, anormais, inéditos, feitos de invisível, de sangue e de morte. Nas iauô está a base do culto africano. Todas elas usam sinais exteriores do santo, as vestimentas simbólicas, os rosários e os colares de contas com as cores preferidas da divindade a que pertencem; todas elas estão ligadas ao rito selvagem por mistérios que as obrigam a gastar a vida em festejos, a sentir o santo e a respeitar o pai-de-santo.

Fazer-santo é colocar-se sobre o patrocínio de um fetiche qualquer, é ser batizado por ele, e por espontânea vontade dele. As negras, insensíveis a quase todas as delicadezas que produzem ataques na haute-gomme, são, entretanto, de uma impressionabilidade mórbida por tudo quanto é abusão. Da convivência com os maiores nesse horizonte de chumbo, de atmosfera de feitiçarias e pavores, nasce-lhes a necessidade iniludível de fazer também o santo; e não é possível demovê-las, umas porque a miragem da felicidade as cega, outras porque já estão votadas à loucura e ao alcoolismo. Entre as tribos do interior da África, há o sacrifício do agamum, em que se esmagam vivas as crianças de seis meses. Ao Moloch das vesânias a raça preta sacrifica aqui uma quantidade assustadora de homens e de mulheres.

Antônio, que me mostrara a maior parte das casas-de-santo, disse-me um dia:

— Vou levá-lo hoje a ver o 16.º dia de uma iauô.

Para que uma mulher saiba a vinda do santo, basta encontrar na rua um fetiche qualquer, pedra, pedaço de ferro ou concha do mar. De tal maneira estão sugestionadas, que vão logo aos babalaôs indagar do futuro. Os babalaôs, a troco de dinheiro, jogam o edilogum, os búzios, e servem-se também por aproximação dos signos do zodíaco.

— O mês do Capricórnio – diz Antônio – compreende todos os animais parecidos, a cabra, o carneiro, o cabrito, e segundo o cálculo do dia e o animal preferido pelo santo, os matemáticos descobrem quem é.

Quando já sabe o santo, babalaô atira a sorte no obelê para perguntar se é de dever fazê-lo. A natureza mesmo do culto, a necessidade de conservar as cerimônias e a avidez de ganho da própria indolência fazem o sábio obter uma resposta afirmativa.

Algumas criaturas paupérrimas batem então nas faces e pedem:

— Eu quero ter o santo assentado!

É mais fácil. Os pais-de-santo dão-lhe ervas, uma pedra bem lavada, em que está o santo, um rosário de contas que se usa no pescoço depois de purificado o corpo por um banho. Nessas ocasiões o vadio invisível contenta-se com o ebó, despacho, algumas comedorias com azeite-de-dendê, ervas e sangue, deixadas na encruzilhada dos caminhos.

Quase sempre, porém, as vitimas sujeitam-se, e não é raro, mesmo quando são pobres os pais, a aceitarem o trabalho com a condição de as vender em leilão ou serem servidos por elas durante longo tempo. Como as despesas são grandes, as futuras iauô levam meses fazendo economias, poupando, sacrificando-se. E de obrigação levar comidas, presentes, dinheiro ao pai-desanto para a sua estada no ylê ache-ó-ylê-orixá, estada que regula de 12 a 30 dias.

— Isto acontece só para as iauô dos orixás, – diz Antônio.

— Há outras?

— Há as dos negros cambindas. Também essa gente é ordinária, copia os processos dos outros e está de tal forma ignorante que até as cantigas das suas festas têm pedaços em português.

Mas entre os cambindas tudo é diferente?

— Mais ou menos. Olhe por exemplo os santos.

Orixalá é Ganga-Zumba, Obaluaci, Cangira-Mungongo, Exu, Cubango, Orixá-oco, Pombagira, Oxum, a mãe d’água, Sinhá Renga, Sapanam, Cargamela. E não é só aos santos dos orixás que os cambindas mudam o nome, é também aos santos das igrejas. Assim S. Benedito é chamado Lingongo, S. Antônio, Verequete, N. Senhora das Dores, Sinhá Samba.

Para os cambindas serve para santo qualquer pedra, os paralelepípedos, as lascas das pedreiras e esses pretos sem-vergonha adoram a flor do girassol que simboliza a lua…

Eu estava atônito. Positivamente Antônio achava muito inferiores os cambindas.

— As iauô?

— As filhas-de-santo macumbas ou cambindas chegam a ter uma porção de santos de cada vez, manifestando-se na sua cabeça. Sabe V.S. o que cantam eles quando a yauô está com a crise?

Maria Mucangué
Lava roupa de sinhá,
Lava camisa de chita,
Não é dela, é de yayá.

— Quer ouvir outra?

Bumba, bumba, ó calunga,
Tanto quebra cadeira como quebra sofá
Bumba, bumba, ó calunga.

Houve uma pausa e Antônio concluiu:

— Por negro cambinda é que se compreende que africano foi escravo de branco.

Cambinda é burro e sem-vergonha!

Disse e voltou à narrativa da iniciação das iauô.

Antes de entrar para camarinha, a mulher, predisposta pela fixidez da atenção a todas as sugestões, presta juramento de guardar o segredo do que viu, toma um banho purificador e à meia-noite começa a cerimônia. A iauô senta-se numa cadeira vestida de branco com o ojá apertando a cintura. Todos em derredor entoam a primeira cantiga a Exu.

Echu tiriri, lô-nam bará ô bebê.
Tiriri lo-nam Echu tiriri.

 O babaloxá pergunta ao santo para, onde deve ir o cabelo que vai cortar à futura filha, e, depois de ardente meditação, indica com aparato a ordem divina. Essas descobertas são fatalmente as mesmas no centro de uma cidade populosa como a nossa. Se o santo é a mãe d’agua doce, Oxum, o cabelo vai para a Tijuca, a Fábrica das Chitas; se é Ié-man-ja fica na praia do Russel, em Santa Luzia; se é outro santo qualquer, basta um trecho de praça em que as ruas se cruzem.

As rezas começam então; o pai-de-santo molha a cabeça da iauô com uma composição de ervas e com afiadíssima navalha faz-lhe uma coroa, enquanto a roda canta triste.

Orixalá otô ô yauô!

Essa parte do cabelo é guardada eternamente e a iauô não deve saber nunca onde a guardam, porque lhe acontece desgraça. Em seguida, o lúgubre barbeiro raspa-lhe circularmente o crânio, e quando a carapinha cai no alguidar, a operada já perdeu a razão.

Babaloxá, lava-lhe ainda a cabeça com o sangue dos animais esfaqueados pelos ogans, e as iauô antigas levam-na a mudar a roupa, enquanto se preparam com ervas os cabelos do alguidar.

Daí a momentos a iniciada aparece com outros fatos, pega no alguidar e sai acompanhada das outras, que a amparam e cantam baixo o ofertório ao santo.

Em chegando ao lugar indicado, a hipnotizada deixa a vaso, volta e é recebida pelo pai, que entorna em frente à porta um copo d’água.

A nova iauô vai então descansar, enquanto os outros rezam na camarinha em frente ao estado-maior.

— O estado-maior? — indago eu, assustado com o exército misterioso. O estado-maior é a coleção de terrinas e sopeiras colocadas numa espécie de prateleiras de bazar. Nas sopeiras estão todos os santos pequenos e grandes. Há desde as terrinas de granito às de porcelanas com frisos de ouro, rodeando armações de ferro, onde se guarda o Ogum, o São Jorge da África.

No dia seguinte à cerimônia, a iauô lava-se e vai à presença do pai para ver se tem espíritos contrários.

Se os espíritos existem, o pai poderoso afasta a influência nefasta por meio de ebós e ogunguns. A iauô é obrigada a não falar a ninguém: quando deseja alguma coisa, bate palmas e só a ajuda nesses dias a mãe-pequena ou Iaqueque-rê. As danças para preparo de santo realizam-se nos 1.º, 3.º, 7.º, 12.º, e no 16.º dia o santo revela-se.

— Mas que adianta isso às iauô?

— Nada. O pai-de-santo domina-as. O erô ou segredo que lhe dá, pode retirá-lo quando lhe apraz; o poder de as transformar e fazer-lhes mal está em virar o santo sempre que tem vontade.

— E quando essas criaturas morrem?

— Faz-se a obrigação raspando um pouco de cabelo para saber se o santo também vai, e o babaloxá procura um colega para lhe tirar a mão do finado.

As cerimônias das iauô renovam-se de resto de seis em seis meses, de ano em ano, até à morte. São elas que em grande parte sustentam o culto.

Quando a iauô não tem dinheiro, ou o pai vende-a em leilão ou a guarda como serva. Desta convivência é que algumas chegam a ser mães-de-santo, para o que basta dar-lhe o babaloxá uma navalha.

— E há muita mãe-de-santo?

— Umas cinqüenta, contando com as falsas. Só agora lembro-me de várias: a Josefa, a Calu Boneca, a Henriqueta da Praia, a Maria Marota, que vende à porta do Glacier, a Maria do Bonfim, a Martinha da rua do Regente, a Zebinda, a Chica de Vavá, a Aminam pé-de-boi, a Maria Luiza, que é também sedutora de senhoras honestas, a Flora Coco Podre, a Dudu do Sacramento, a Bitaiô, que está agora guiando seis ou oito filhas, a Assiata.

Esta é de força. Não tem navalha, finge de mãe-de-santo e trabalha com três ogans falsos – João Ratão, um moleque chamado Macário e certo cabra pernóstico, o Germano. A Assiata mora na rua da Alfândega, 304. Ainda outro dia houve lá um escândalo dos diabos, porque a Assiata meteu na festa de Iemanjá algumas iauô feitas por ela. Os pais-de-santo protestaram, a negra danou, e teve que pagar a multa marcada pelo santo. Essa é uma das feiticeiras de embromação.

Nesse mesmo dia Antônio veio buscar-me à tarde.

— A casa a que vai V.S. é de um grande feiticeiro; verá se não há fatos verdadeiros.

Quando chegamos, a sala estava enfeitada. Em derredor sentavam-se muitos negros e negras mastigando olobó, ou cola amargosa, com as roupas lavadas e as faces reluzentes. A um canto, os músicos, fisionomias estranhas, faziam soar, com sacolejos compassados, o xequerêe, os atabaques e ubatás, com movimentos de braços desvairadamente regulares. Não se respirava bem.

A cachaça, circulando sem cessar, ensangüentava os olhos amarelos dos assistentes.

— As vezes tudo é mentira, à custa de cachaça e fingimento – diz Antônio.

Quando o santo não vem, o pai fica desmoralizado. Mas aqui é de verdade…

Olhei o célebre pai-de-santo, cujas filhas são sem conta. Estava sentado à porta da camarinha, mas levantou-se logo, e a negra iniciada entrou, de camisola branca, com um leque de metal chocalhante. Fula, com uma extraordinária fadiga nos membros lassos, os seus olhos brilhavam satânicos sob o capacete de pinturas bizarras com que lhe tinham brochado o crânio. Diante do pai estirou-se a fio comprido, bateu com as faces no assoalho, ajoelhou e beijou-lhe a mão. Babaloxá fez um gesto de bênção, e ela foi, rojou-se de novo diante de outras pessoas. O som do agogó arrastou no ar os primeiros batuques e os arranhados do xequeré. A negra ergueu-se e, estendendo as mãos para um e para outro lado, começou a traçar passos, sorrindo idiotamente. Só então notei que tinha na cabeça uma esquisita espécie de cone.

— É o ado-chú, que faz vir o santo – explica Antônio. – É feito com sangue e ervas.

Se o ado-chú cai, santo não vem.

A negra, parecia aos poucos animar-se, sacudindo o leque de metal chocalhante.

Em derredor, a música acompanhava as cantigas, que repetiam indefinidamente a mesma frase.

As dança dessas cerimônias é mais ou menos precipitada, mas sem os pulos satânicos dos Cafres e a vertigem diabólica dos negros da Luisiania. É simples, contínua e insistente, horrendamente insistente. Os passos constantes são o alujá, em roda da casa, dando com as mãos para a direita e para a esquerda, e o jêquedê, em que ao compasso dos atabaques, com os pés juntos, os corpos se quebram aos poucos em remexidos sinistros. Não sei se o enervante som da música destilando aos poucos desespero, se a cachaça, se o exercício, o fato é que, em pouco, a iauô parecia reanimar-se, perder a fadiga numa raiva de louca. De cada xequexé-xequexé que a mão de um negro sacudia no ar, vinha um espicaçamento de urtiga, das bocas cusparinhentas dos assistentes escorria a alucinação. Aos poucos, outros negros, não podendo mais, saltaram também na dança, e foi então entre as vozes, as palmas e os instrumentos que repetiam no mesmo compasso o mesmo som, uma teoria de cara bêbedas cabriolando precedidas de uma cabeça colorida que esgareiava lugubremente. A loucura propagou-se. No meio do pandemônio vejo surgir o babaloxá com um desses vasos furados em que se assam castanhas, cheio de brasas.

— Que vai ele fazer?

— Cala, cala… é o pai, é o pai grande – balbucia Antônio.

As cantigas redobram com um furor que não se apressa. São como uma ânsia de desesperado essas cantigas, como a agonia de um mesmo gesto arrancando dos olhos a mesma lâmina de faca, são atrozes! O babaloxá coloca o cangirão ardente na cabeça da iauô, que não cessa de dançar delirante, insensível, e, alteando o braço com um gesto dominador e um sorriso que lhe prende o beiço aos ouvidos, entorna nas brasas fumegantes um alguidar cheio de azeite-dedendê.

Ouve-se o chiar do azeite nas chamas, a negra, bem no meio da sala, sacoleja-se num jequedé lancinante, e pela sua cara suada, do cangirão ardente, e que não lhe queima a pele, escorrem fios amarelos de azeite…

Ie-man-já atô cuaô.

continuava a turba.

– Não queimou, não queimou, ele é grande – fez Antônio.

Eu abrira os olhos para ver, para sentir bem o mistério da inaudita selvageria.

Havia uma hora, a negra dançava sem parar; pela face o dendê quente escorria benéfico aos santos. De repente, porém ela estacou, caiu de joelhos, deu um grande grito.

— Emim oiá bonmim’. – Bradou.

É o nome dela, o santo disse pela sua boca o nome que vai ter.

A sala rebentou num delírio infernal. O babaloxá gritava, com os olhos arregalados, palavras guturais.

— Que diz ele?

— Que é grande, que vejam como é grande!

Criaturas rojavam-se aos pés do pai, beijando-lhes os dedos, negras uivavam, com as mãos empoladas de bater palmas; dois ou três pretos aos sons dos xequerês sacudiam-se em danças com o santo, e a iauô revirava os olhos, idiota, como se acordasse de uma grande e estranha moléstia.

— Que vai ela fazer agora, Deus de misericórdia! – murmurei saindo.

— Vai trabalhar, pagar no fim de três meses a sua obrigação, ochu meta, dar dinheiro a pai-de-santo, ganhar dinheiro…

– Sempre o dinheiro! – fiz eu olhando a velha casaria.

Antônio parou e disse:

— Não se engana V.S.

E limpando o suor do rosto, o negro concluiu com esta reflexão profunda:

— Neste mundo, nem os espíritos fazem qualquer coisa sem dinheiro e sem sacrifício!

Fomos pela rua estreita com a visão sinistra da pobre mártir aos pulos, dessa cabeça pintada, entre os chocalhos e os atabaques, que dançava e gritava horrendamente…

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Crédito da imagem: CC0 Public Domain

Capítulo do livro: “Religiões no Rio”, seção “No mundo dos feitiços”. Obra de Domínio Público.

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