Os feiticeiros

publicado na Ed_05_out/dez.2017 por

Antônio é como aqueles adolescentes africanos de que fala o escritor inglês. Os adolescentes sabiam dos deuses católicos e dos seus próprios deuses, mas só veneravam o uísque e o schilling. Antônio conhece muito bem N. S.ª das Dores, está familiarizado com os orixálas da África, mas só respeita o papel-moeda e o vinho do Porto. Graças a esses dois poderosos agentes, gozei da intimidade de Antônio, negro inteligente e vivaz; graças a Antônio, conheci as casas das ruas de São Diogo, Barão de S. Felix, Hospício, Núncio e da América, onde se realizam os candomblés e vivem os pais-de-santo. E rendi graças a Deus, porque não há decerto, em toda a cidade, meio tão interessante.

Vai V.S. admirar muita coisa! – dizia Antônio a sorrir; e dizia a verdade.

Da grande quantidade de escravos africanos vindos para o Rio no tempo do Brasil colônia e do Brasil monarquia, restam uns mil negros. São todos das pequenas nações do interior da África, pertencem ao igesá, oié, ebá, aboum, haussá, itaqua, ou se consideram filhos dos ibouam, ixáu dos gêge e dos cambindas. Alguns ricos mandam a descendência brasileira à África para estudar a religião, outros deixam como dote aos filhos cruzados daqui os mistérios e as feitiçarias. Todos, porém, falam entre si um idioma comum: – o eubá.

Antônio, que estudou em Lagos, dizia:

— O eubá para os africanos é como o inglês para os povos civilizados. Quem fala o eubá pode atravessar a África e viver entre os pretos do Rio. Só os cambindas ignoram o eubá, mas esses ignoram até a própria língua, que é muito difícil.

Quando os cambindas falam, misturam todas as línguas… Agora os orixás e os alufás só falam o eubá.

— Orixás, alufás? – fiz eu, admirado.

São duas religiões inteiramente diversas. Vai ver.

Com efeito. Os negros africanos dividem-se em duas grandes crenças: os orixás e os alufás.

Os orixás, em maior número, são os mais complicados e os mais animistas.

Litólatras e fitólatras, têm um enorme arsenal de santos, confundem os santos católicos com os seus santos, e vivem a vida dupla, encontrando em cada pedra, em cada casco de tartaruga, em cada erva, uma alma e um espírito. Essa espécie de politeísmo bárbaro tem divindades que se manifestam e divindades invisíveis. Os negros guardam a idéia de um Deus absoluto como o Deus católico: Orixa-alúm. A lista dos santos é infindável. Há o orixalá, que é o mais velho, Axum, a mãe d’água doce, Ie-man- já, a sereia, Exu, o diabo, que anda sempre detrás da porta, Sapanam, o Santíssimo Sacramento dos católicos, o Irocô, cuja aparição se faz na árvore sagrada da gameleira, o Gunocô, tremendo e grande, o Ogum, S. Jorge ou o Deus da guerra, a Dadá, a Orainha, que são invisíveis, e muitos outros, como o santo do trovão e o santo das ervas. A juntar a essa coleção complicada, têm os negros ainda os espíritos maus e os heledás ou anjos da guarda.

É natural que para corresponder à hierarquia celeste seja necessária uma hierarquia eclesiástica. As criaturas vivem em poder do invisível e só quem tem estudos e preparo pode saber o que os santos querem. Há por isso grande quantidade de autoridades religiosas. Às vezes encontramos nas ruas negros retintos que mastigam sem cessar. São babalaôs, matemáticos geniais, sabedores dos segredos santos e do futuro da gente; são babás que atiram o endilogum; são babaloxás, pais-de-santos veneráveis. Nos lanhos da cara puseram o pó da salvação e na boca têm sempre o obi, noz de cola, boa para o estômago e asseguradora das pragas.

Antônio, que conversava dos progressos da magia na África, disse-me um dia que era como Renan e Shakespeare: vivia na dúvida. Isso não o impedia de acreditar nas pragas e no trabalhão que os santos africanos dão.

— V. s. não imagina! Santo tem a festa anual, aparece de repente à pessoa em que se quer meter e esta é obrigada logo a fazer festa; santo comparece ao juramento das Iauô e passa fora, do Carnaval à Semana Santa; e logo quer mais festa… Só descansa mesmo de fevereiro a abril.

— Estão veraneando.

— No carnaval os negros fazem ebó.

— Que vem a ser ebó?

Ebó é despacho. Os santos vão todos para o campo e ficam lá descansando.

— Talvez estejam em Petrópolis.

— Não. Santo deixa a cidade pelo mato, está mesmo entre as ervas.

— Mas quais são os cargos religiosos?

Há os babalaôs, os açoba, os aboré, grau máximo, as mães-pequenas, os ogan, as agibonam…

A lista é como a dos santos, muito comprida, e cada um desses personagens representa papel distinto nos sacrifícios, nos candomblés e nas feitiçarias.

Antônio mostra-me os mais notáveis, os pais-de-santo: Oluou, Eruosaim, Alamijo, Adé-Oié, os babalaôs Emídio, Oloô-teté, que significa treme-treme, e um bando de feiticeiros: Torquato requipá ou fogo pára-chuva, Obitaiô, Vagô,

Apotijá, Veridiana, Crioula Capitão, Rosenda, Nosuanan, a célebre Chica de Vavá, que um político economista protege…

— A Chica tem proteção política?

— Ora se tem! Mas que pensa o senhor? Há homens importantes que devem quantias avultadas aos alufás e babalaôs que são grau 32 da Maçonaria.

Dessa gente, poucos lêem. Outrora ainda havia sábios que destrinçavam o livro sagrado e sabiam porque Exu é mau – tudo direitinho e claro como água. Hoje a aprendizagem é feita de ouvido. O africano egoísta pai-de-santo, ensina ao aboré, as iauô quando lhes entrega a navalha, de modo que não só a arte perde muitas das suas fases curiosas como as histórias são adulteradas e esquecidas.

Também agora não é preciso saber o Saó Hauin. Negro só olhando e sabendo o nome da pessoa pode fazer mal, diz Antônio.

Os orixás são em geral polígamos. Nessas casas das ruas centrais de uma grande cidade, há homens que vivem rodeados de mulheres, e cada noite, como nos sertões da África, o leito do babaloxás é ocupado por uma das esposas. Não há ciúmes, a mais velha anuncia quem a deve substituir, e todas trabalham para a tranqüilidade do pai. Oloô-Teté, um velho que tem noventa anos no mínimo, ainda conserva a companheira nas delícias do himeneu, e os mais sacudidos transformam as filhas-de-santo em huris de serralhos.

Os alulás têm um rito diverso. São maometanos com um fundo de misticismo.

Quase todos dão para estudar a religião, e os próprios malandros que lhes usurpam o título sabem mais que os orixás.

Logo depois do suma ou batismo e da circuncisão ou kola, os alufás habilitamse à leitura do Alcorão. A sua obrigação é o kissium, a prece. Rezam ao tomar banho, lavando a ponta dos dedos, os pés e o nariz, rezam de manhã, rezam ao pôr-do-sol. Eu os vi, retintos, com a cara reluzente entre as barbas brancas, fazendo o aluma gariba, quando o crescente lunar aparecia no céu. Para essas preces, vestem o abadá, uma túnica branca de mangas perdidas, enterram na cabeça um filá vermelho, donde pende uma faixa branca, e, à noite, o kissium continua, sentados eles em pele de carneiro ou de tigre.

— Só os alufás ricos sentam-se em peles de tigre, diz-nos Antônio.

Essas criaturas contam à noite o rosário ou tessubá, têm o preceito de não comer carne de porco, escrevem as orações numas taboas, as atô, com tinta feita de arroz queimado, e jejuam como os judeus quarenta dias a fio, só tomando refeições de madrugada e ao pôr-do-sol.

Gente de cerimonial, depois do assumy, não há festa mais importante como a do ramadan, em que trocam o saká ou presentes mútuos. Tanto a sua administração religiosa como a judiciária estão por inteiro independentes da terra em que vivem.

Há em várias tribos vigários gerais ou ladamos, obedecendo ao lemano, o bispo, e a parte judiciária está a cargo dos alikaly, juízes, sagabamo, imediatos de juízes, e assivajiú, mestre de cerimônias.

Para ser alufá é preciso grande estudo, e esses pretos que se fingem sérios, que se casam com gravidade, não deixam também de fazer amuré com três e quatro mulheres.

— Quando o jovem alufá termina o seu exame, os outros dançam o opasuma e conduzem o iniciado a cavalo pelas ruas, para significar o triunfo.

— Mas essas passeatas são impossíveis aqui, brado eu.

— Não são. As cerimônias realizam-se sempre nas estações dos subúrbios, em lugares afastados, e os alufás, vestem as suas roupas brancas e o seu gorro vermelho.

Naturalmente Antônio fez-me conhecer os alufás:

Alikali; o lemano atual, um preto de pernas tortas, morador à rua Barão de S. Félix, que incute respeito e terror; o Chico Mina, cuja filha estuda violino, Alufapão, Ojó, Abacajebú, Ginjá, Manê, brasileiro de nascimento, e outros muitos.

Os alufás não gostam da gente de santo a que chamam auauadó-chum; a gente de santo despreza os bichos que não comem porco, tratando-os de malés. Mas acham-se todos relacionados pela língua, com costumes exteriores mais ou menos idênticos e vivendo da feitiçaria. Os orixás fazem sacrifícios, afogam os santos em sangue, dão-lhes comidas, enfeites e azeite-de-dendê.

Os alufás, superiores, apesar da proibição da crença, usam dos aligenum, espíritos diabólicos chamados para o bem e o mal, num livro de sortes marcado com tinta vermelha e alguns, os maiores, como Alikali, fazem até idams ou as grandes mágicas, em que a uma palavra cabalística a chuva deixa de cair e obis aparecem em pratos vazios.

Antes de estudar os feitiços, as práticas por que passam as iauô nas camarinhas e a maneira dos cultos, quis ter uma impressão vaga das casas e dos homens.

Antônio levou-me primeiro à residência de um feiticeiro alufá. Pelas mesas, livros com escrituras complicadas, ervas, coelhos, esteiras, um calamo de bambu finíssimo.

Da porta o guia gritou:

— Salamaleco.

Ninguém respondeu.

— Salamaleco!

— Maneco Lassalama!

No canto da sala, sentado numa pele de carneiro, um preto desfiava o rosário, com os olhos fixos no alto.

— Não é possível falar agora. Ele está rezando e não quer conversar. Saímos, e logo na rua encontramos o Xico Mina. Este veste, como qualquer de nós, ternos claros e usa suíças cortadas rentes. Já o conhecia de o ver nos cafés concorridos, conversando com alguns deputados. Quando nos viu, passou rápido.

— Está com medo de perguntas. Chico gosta de fingir.

Entretanto, no trajeto que fizemos do Largo da Carioca à praça da Aclamação, encontramos, a fora um esverdeado discípulo de Alikali, Omancheo, como eles dizem, duas mães-de-santo, um velho babalaô e dois babaloxás.

Nós íamos à casa do velho matemático Oloô-Teté.

As casas dos minas conservam a sua aparência de outrora, mas estão cheias de negros baianos e de mulatos. São quase sempre rótulas lobregas, onde vivem com o personagem principal cinco, seis e mais pessoas. Nas salas, móveis quebrados e sujos, esteirinhas, bancos; por cima das mesas, terrinas, pucarinhos de água, chapéus de palha, ervas, pastas de oleado onde se guarda o opelé; nas paredes, atabaques, vestuários esquisitos, vidros; e no quintal, quase sempre jabotis, galinhas pretas, galos e cabritos.

Há na atmosfera um cheiro carregado de azeite-de-dendê, pimenta-da-costa e catinga. Os pretos falam da falta de trabalho, fumando grossos cigarros de palha. Não fosse a credulidade, a vida ser-lhes-ia difícil, porque em cada um dos seus gestos revela-se uma lombeira secular.

Alguns velhos passam a vida sentados, a dormitar.

— Está pensando! – dizem os outros.

De repente, os pobres velhos ingênuos acordam, com um sonho mais forte nessa confusa existência de pedras animadas e ervas com espírito.

— Xangô diz que eu tenho de fazer sacrifício!

Xangô, o deus do trovão, ordenou no sono, e o opelê, feito de cascas de tartaruga e batizado com sangue, cai na mesa enodoada para dizer com que sacrifício se contenta Xangô.

Outros, os mais malandros, passam a existência deitados no sofá. As filhas-desanto, prostitutas algumas, concorrem para lhes descansar a existência, a gente que as vai procurar dá-lhes o supérfluo. A preocupação destes é saber mais coisas, os feitiços desconhecidos, e quando entra o que sabe todos os mistérios, ajoelham assustados e beijam-lhe a mão, soluçando:

— Diz como se faz a cantiga e eu te dou todo o meu dinheiro!

À tarde, chegam as mulheres, e os que por acaso trabalham em alguma pedreira. Os feiticeiros conversam de casos, criticam-se uns aos outros, falam com intimidade das figuras mais salientes, do país, do imperador, de que quase todos têm o retrato, de Cotegipe, do barão de Mamanguape, dos presidentes da República.

As mulheres ouvem mastigando obi e cantando melopéias sinistramente doces.

Essas melopéias são quase sempre as preces, as evocações, e repetem sem modalidade, por tempo indeterminado, a mesma frase.

Só pelos candomblés ou sessões de grande feitiçaria, em que os babalaôs estão atentos e os pais-de-santo trabalham dia e noite nas camarinhas ou fazendo evocações diante dos fogareiros com o tessubá na mão, é que a vida dessa gente deixa a sua calma amolecida de acassá com azeite-de-dendê.

Quando entramos na casa de Oloô-Teté, o matemático macróbio e sensual, uma velha mina, que cantava sonambulicamente, parou de repente.

— Pode continuar.

Ela disse qualquer coisa de incompreensível.

— Está perguntando se o senhor lhe dá dois tostões, ensina-nos Antônio.

— Não há dúvida.

A preta escancara a boca, e, batendo as mãos, põe-se a cantar:

Baba ounlô, ó xocotám, o ilélê.

— Que vem a ser isso?

— É o final das festas, quando o santo vai embora. Quer dizer: papai já foi, já fez, já acabou; vai embora!

Eu olhava a réstia estreita do quintal onde dormiam jabotis.

— O jaboti é um animal sagrado?

— Não, diz-nos o sábio Antônio. Cada santo gosta do seu animal. Xangô, por exemplo, come jaboti, galo e carneiro. Abaluaié, pai de varíola, só gosta de cabrito. Os pais-de-santo são obrigados pela sua qualidade a fazer criação de bichos para vender e tê-los sempre à disposição quando precisam de sacrifício.

O jaboti é apenas um bicho que dá felicidade. O sacrifício é simples. Lava-se bem, às vezes até com champanha, a pedra que tem o santo e põe-se dentro da terrina. O sangue do animal escorre; algumas das partes são levadas para onde o santo diz e o resto a roda come.

— Mas há sacrifícios maiores para fazer mal às pessoas?

— Há! para esses até se matam bois.

— Feitiço pega sempre, sentencia o ilustre Oloô-Tetê, com a sua prática venerável. Não há corpo-fechado. Só o que tem é que uns custam mais. Feitiço para pegar em preto é um instante, para mulato já custa, e então para cair em cima de branco a gente sua até não poder mais. Mas pega sempre. Por isso preto usa sempre o assiqui, a cobertura, o breve, e não deixa de mastigar obi, noz de cola preservativa.

Para mim, homem amável, presentes alguns companheiros seus, Oloô-Tetê tirou o opelé que há muitos anos foi batizado e prognosticou o meu futuro.

Este futuro vai ser interessante. Segundo as cascas de tartaruga que se voltavam sempre aos pares, serei felicíssimo, ascendendo com a rapidez dos automóveis a escada de Jacó das posições felizes. É verdade que um inimigozinho malandro pretende perder-me. Eu, porém, o esmagarei, viajando sempre com cargos elevados e sendo admirado.

Abracei respeitoso o matemático que resolvera o quadrado da hipotenusa do desconhecido.

— Põe dinheiro aqui – fez ele.

Dei-lhe as notas. Com as mãos trêmulas, o sábio a apalpou longamente.

— Pega agora nesta pedra e nesta concha. Pede o que tiveres vontade à concha, dizendo sim, e à pedra dizendo não.

Assim fiz. O opelé caiu de novo no encerado. A concha estava na mão direita de Antônio, a pedra na esquerda, e Oloô tremia falando ao santo, com os negros dedos trêmulos no ar.

— Abra a mão direita! ordenou.

Era a concha.

— Se acontecer, ossumcê dá presente a Oloô?

— Mas decerto.

Ele correu a consultar o opelé. Depois sorriu.

— Dá, sim, santo diz que dá. – E receitou-me os preservativos com que eu serei invulnerável.

Também eu sorria. Pobre velho malandro e ingênuo! Eu perguntara apenas, modestamente, à concha do futuro se seria imperador da China… Enquanto isso, a negra da cantiga entoava outra mais alegre, com grande gestos e risos.

O loô-ré, xa-la-ré

Camurá-ridé

O loô-ré, xa-la-ré

Camurá-ridé

— E esta, o que quer dizer?

— É uma cantiga de Orixalá. Significa: O homem do dinheiro está aí. Vamos erguê-lo…

Apertei-lhe a mão jubiloso e reconhecido. Na alusão da ode selvagem a lisonja vivia o encanto da sua vida eterna…

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Crédito da imagem: CC0 Public Domain

Capítulo do livro: “Religiões no Rio”, seção “No mundo dos feitiços”. Obra de Domínio Público.

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